Por MARINA PAULA OLIVEIRA*
Uma geração inteira está por toda vida marcada pelas consequências da mineração predatória, que continua colocando o lucro acima da vida
Já transcorreu um ano e seis meses do rompimento criminoso da barragem da mineradora VALE S.A. em Brumadinho-MG.
Como não falar dos traumas das crianças atingidas? Contam-se mais de 100 órfãos de pai ou de mãe ou de ambos. São filhos e sobrinhos de agricultores que costumavam brincar no aspersor que irrigava as plantações que hoje estão debaixo da lama.
São crianças que antes jogavam bola, descalças, na rua e que hoje não o podem mais fazê-lo devido ao fluxo de caminhões, envolvidos nas obras de contenção de danos, carregando rejeitos tóxicos em suas rodas e levando a lama para ambientes, antes considerados seguros.
São crianças traumatizadas que tiveram que correr com toda a pressa da lama. Crianças com medo de ficar em suas casas, mas que também têm medo de sair delas.
“Tia, aqui tem barragem?” “Na Bahia tem barragem? A minha vó mora lá”, “Tia, quando a lama chegar aqui, vai destruir tudo, não vai?”.
Essas são algumas das perguntas que se escutam por aqui. As palavras morrem na garganta porque não tenho como responder.
Ainda sem mencionar crianças, filhas e filhos de lideranças que tiveram suas vidas completamente impactadas, através de infindáveis reuniões que seus pais tiveram que participar e, por fim, dar sua adesão para trilhar a longa e infindável caminhada pela luta por justiça, dignidade, memória das vítimas e reparação integral das perdas e dos danos. Não sobra muito tempo pra as crianças brincarem quando o pai e a mãe estão sempre ocupados, tentando resgatar direitos que lhes foram violentamente sequestrados.
Nunca consigo esquecer e sempre me vêm lágrimas aos olhos quando lembro da celebração, em janeiro, por ocasião da memória de um ano do desastre criminoso, com a presença de parentes de desaparecidos e de seus filhos e filhas pequenos, lançando ao ar 272 balões em memória dos 272 desaparecidos, com a inscrição: “dói demais o jeito que vocês foram embora”. Alguém precisa ser muito insensível e desumano para não conter as lágrimas e também mostra indignação.
Vários jovens na idade de 14 anos tentaram suicídio. Crianças de 10 anos tomam medicamentos anti-depressivos. E são apenas crianças. Quantas crianças não podem mais brincar na rua de suas casas porque suas pequenas comunidades foram ocupadas por centenas de pessoas estranhas, trabalhadores, voluntários, entre outros. O ambiente que antes era familiar, hoje se caracteriza por um sentimento de insegurança e de estranhamento, sem nada entender.
Há crianças indígenas que antes brincavam livremente no rio Paraopeba e que hoje não têm permissão de entrar nas suas águas, sequer tocá-las em razão do alto grau de contaminação de metais pesados ainda desconhecidos pelas comunidades.
“Tia, o rio já curou?”, “Hoje se pode nadar?”.
Muitas mães reclamam do crescimento das doenças e problemas respiratórios de seus filhos, em consequência do aumento da poeira tóxica em suas comunidades.
Crianças que se sentem culpadas por brincar pois comentam entre si: “a cidade toda está triste, né tia?”.
É inimaginável o sofrimento das mães quando suas filhas perguntam: “em que dia o papai vai voltar”? Quem pode lhes responder? A avós receiam ter que explicar para seus netos que seu pai ou sua mãe estão entre os “desaparecidos”.
Muitas crianças até hoje desenham helicópteros sobrevoando seus bairros que carregavam corpos ou parte deles. Um dia desses, uma criança comentou: “meu pai, pobrezinho, morreu na lama”. O que isso significa para a cabeça dessa criança? Há alguma explicação para isso?
Será que as crianças esquecem? Por aqui, o caminho mais óbvio parece ser o de criar bolhas para essas crianças, bolhas como se sua infância não tivesse sido arrancada por vis interesses econômicos. Talvez elas nunca irão compreender essa maldade.
O sofrimento infantil, por sua vez, parece estar escancarado: “Bombeiro, obrigada por encontrar o corpo de meu pai; ele nunca mais voltara”.
Uma geração inteira está por toda vida marcada pelas consequências da mineração predatória, que continua colocando o lucro acima da vida.
Quem se propõe a falar com estas crianças atingidas cujas almas foram destroçadas por essa mineração cruel que sacrifica vidas no altar da ganância por lucro?
Ai me lembrei de uma frase de Dostoievsky que ouvi certa vez:”todos os avanços da ciência não valem o choro de uma criança.”
Sinto-me impotente mas profundamente solidária com elas. Por isso as abraço e as beijo para que se sintam acolhidas. E se deem conta de que o dom mais precioso que existe, foi poupado, a vida delas, que deve continuar e ser feliz.
*Marina Paula Oliveira, uma das atingidas pelo rompimento da barragem, é coordenadora de Projetos da Arquidiocese de Belo Horizonte.