Por LUIZ MARQUES*
Em importantes municipalidades, as eleições de 2024 funcionarão como uma espécie de plebiscito sobre o modelo neoliberal de cidade
Nos Estados Unidos, há quem postule que a governabilidade resulta do pacto de diferentes elites, em situações de conflito e de compromisso, e que o pluralismo político anda junto com o pluralismo social. Essa “poliarquia” (governo de muitos) exprime ordenamentos sociais regados com eleições competitivas e inclusivas. Se não coincidem exatamente com uma soberania popular, ajuda na atmosfera colaborativa baseada no binômio “competição com negociação”.
Há ainda quem defenda a governabilidade orquestrada por uma “elite do poder” unitária, em um “complexo político-industrial-militar”, e queira transformar o Estado em uma comunidade real para aprofundar a democracia. A menção às elites e não às classes sociais, em ambas as prospecções, é uma sequela do macarthismo mais do que uma opção teórica ou metodológica.
Na América Latina e no Brasil, a discussão é menos sobre quem é o poder e mais sobre como se pratica o exercício do poder. Para o pensador marxista Fredric Jameson, em A cultura do dinheiro, “estamos prestando mais atenção aos investimentos e ao mercado de ações do que à produção industrial, que está prestes a desaparecer”. Como um barco que perdeu o leme.
A boa notícia é que, se a ideia de cortar impostos dos ricos (Ronald Reagan, Margaret Thatcher) marca uma inflexão neoliberal no mundo, nos anos 1980; na contracorrente das finanças, o presidente Lula e o ministro Fernando Haddad inscrevem na agenda contemporânea a tributação das grandes fortunas. A proposta solidária com o Estado de bem-estar chega ao G20 e ao Papa Francisco – o pólen germina.
Uma ditadura rentista
No princípio do século XX o dinheiro se concentrava nas urbes e as mudanças invadiam as cidades populosas. Atualmente o dinheiro dirige-se ao mercado de ações. O fim do estágio produtivo do capitalismo abre a porta aos lucros fáceis nas próprias transações financeiras, Dinheiro / Mercadoria / Dinheiro (DMD), pelo efeito bola de neve. Inverte-se a fórmula do comércio da venda de uma mercadoria para a compra de outra, para fazer circular a economia (MDM).
Surgem então os novos parasitas, onde antes se achava a aristocracia. A fuga de capitais para as geografias com taxas maiores de retorno do investimento ou mão de obra barata fica para trás. O dinheiro não vem do chão da fábrica, nicho de extração ou tecnologias com alta rentabilidade, mas das Bolsas de Valores. O capital financeiro separa o dinheiro do solo concreto, para voar feito borboleta após se metamorfosear na crisálida e agitar as asas na globalização.
A vida social vira refém do rentismo. A desindustrialização provoca a acelerada desocupação dos territórios da produção. Nos antigos centros históricos, pavilhões fabris, galpões e escritórios de importação e exportação de mercadorias tornam-se desertos. Prédios transparentes surgem em um cenário degradado, com o que foi denominado “urbanização corporativa”. A revitalização não traz de volta as atividades produtivas, somente depósitos e institutos neoliberais. Como em uma novela policial, de quinta categoria, o assassino sempre retorna ao local de seu crime.
Sobrenomes de megaconstrutoras (Melnick / Porto Alegre e Patriani / ABC paulista) singularizam o movimento de “destruição criativa” dos espaços urbanos. A especulação imobiliária descobre outras modalidades de lucro com a intervenção em Planos Diretores. Edifícios são construídos, não para as pessoas morarem nos apartamentos, senão investir e lucrar. A economia produtiva no Brasil afunda, enquanto a orquestra toca.
Levantamentos apontam que as famílias e as empresas pagam cerca de um trilhão de reais por ano, em juros e tarifas diversas por serviços financeiros improdutivos. Trata-se do pedágio hospedeiro sobre a economia real. A extrema direita tira proveito da contrarrevolução do nonsense. La bête humaine violenta, obscurantista e corrupta espreita a anomia.
A imaginação ao poder
O drama da crise climática no Rio Grande do Sul, fruto do negacionismo e da incúria evidente do governador do estado (PSDB) e do prefeito da capital (MDB), acionaram um alerta aos navegantes dessas águas turvas. O desgaste é menor do que seria razoável, perante a responsabilidade óbvia dos mandatários pela extensão do cataclismo. Da Guernica brasileira resta a imagem resiliente de um cavalo no telhado para escapar da enchente – e a urgência de uma reflexão sobre as circunstâncias da política, em nosso tempo. O século XXI cobra da esquerda a imaginação ao poder para formular sínteses entre a economia, a cultura e a natureza, antecipando vivências da utopia.
Em importantes municipalidades, as eleições de 2024 funcionarão como uma espécie de plebiscito sobre o modelo neoliberal de cidade. A alternativa racional passa pelas forças políticas progressistas em associação com o Partido dos Trabalhadores. O PT possui experiências exitosas paradigmáticas de administração municipal, em várias regiões do país. Institucionalizada em nível federal, a marca ideológica da participação social revela o caminho para a soberania popular. A dimensão libertária e igualitária da política deve ser exercida pelo povo, na condição de sujeito da história.
Os eleitores se confrontarão com duas visões para viver. Uma remete à financeirização especulativa da esfera pública, em que a convivialidade dos comuns é descartada: “a sociedade não existe”. Por limitação cognitiva e déficit humano, a urbanidade é interpretada a partir de sua majestade, o carro, e de condomínios fechados. A alteridade configura o inimigo, e arma preconceitos atrás dos muros coloniais. A liberdade individual entra em contradição frontal com a felicidade coletiva. “Enquanto gira inteira a noite / sobre a pátria desigual”, para evocar os versos de Ferreira Gullar.
A visão alternativa defende a valorização da diversidade e da solidariedade em contexto multicolor, protegido pela presença dos jovens e lidas culturais, esportivas e de lazer. Sem o que a democracia republicana converte-se na monstruosa caricatura de si mesma. Mas para vencer há que juntar lutas econômicas pela redistribuição na sociedade às pautas por reconhecimento identitário. O voto já não se explica unicamente pela economia. Se fosse assim, a aprovação nas pesquisas do governo federal bateria recordes, com o saldo positivo do PIB. As questões de gênero, orientação sexual, etnia, meio ambiente e religião incidem também nos corações e nas urnas. O momento exige muita criatividade, coragem e ousadia. O novo deve mostrar a sua cara, sem nenhum medo de ser feliz.
*Luiz Marques é professor de ciência política na UFRGS. Foi secretário estadual de cultura do Rio Grande do Sul no governo Olívio Dutra.
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