Por WALNICE NOGUEIRA GALVÃO*
Com o passar do tempo, as séries foram substituindo o casal por duas mulheres, dando lugar à sororidade, às vezes cheia de alfinetadas e farpas ferinas bem divertidas
1.
Quem é aficionado de séries policiais não deixou de perceber o quanto são sensíveis às alterações nas relações entre os gêneros. Assim vêm, devagarinho, ao mesmo tempo espelhando e promovendo sua transformação.
O protótipo, fixado pelo cinema mudo, era Os perigos de Paulina, mais filme de aventuras que policial, em que a imagem-mor é a da heroína amarrada como uma trouxa, abandonada sobre trilhos de trem. Dessa sina cruel, naturalmente, um espadaúdo herói virá salvá-la. Bons e inocentes tempos… Inocentes? Esse era o modelo ideal apresentado para o comportamento feminino.
Em outra direção já iria a veterana das séries policiais contemporâneas, a campeã de popularidade Law and Order SVU, que subsiste há mais de 20 anos. A protagonista Olívia Benson, antes de galgar as alturas, começou como auxiliar do parceiro masculino: auxiliar secundária, ou subalterna, papel reservado à mulher nas décadas anteriores. O enredo acompanha a carreira dela, que entrou pelo posto mais baixo e foi ganhando as patentes, até terminar como chefe de divisão.
Com o passar do tempo, as séries foram substituindo o casal por duas mulheres, dando lugar à sororidade, às vezes cheia de alfinetadas e farpas ferinas bem divertidas. Começaram a surgir séries femininas, com títulos como As investigadoras, ou semelhantes, ou então com os nomes das duas (Rizzoli & Isles). Entre as recentes, Bright minds e Deadly tropics. Nelas, no lugar do casal central há um par de mulheres.
A exemplo do cinema, em filmes que antes eram raríssimos e chocantes, veríamos ainda o advento de séries policiais com um detetive gay, que depois evoluiriam para duplas gays, homens ou mulheres.
Já já, seguindo a curva da tendência no cinema, anuncia-se para a série policial o happy end de praxe, mas inteiramente subvertido, em que duas mulheres se casam de papel passado. Ou dois homens.
2.
Por outro lado, quem são as protagonistas modernas? Dentre várias, todas interessantes por diferentes razões, selecionamos a sueca Saga Sorén, de A ponte, a italiana Petra da série que leva seu nome e a francesa Candice Renoir que também é título. Enquanto personagens, têm em comum a inteligência superior, que ultrapassa todos ao redor, e um forte senso de justiça. Para alegria das espectadoras, as séries capricham no humor, enquanto não menosprezam nossa inteligência.
Saga é a detetive-chefe da divisão de Malmö, na Suécia. Sua contrapartida é Martin, o policial de escalão equivalente em Copenhague, na Dinamarca. A série intitula-se A Ponte, elo de ligação entre os dois países onde um crime é cometido, por isso cabendo a ambos a jurisdição. O entrecho acentua o contraste entre os dois policiais. Revertendo o estereótipo, Saga, que é de difícil convívio, mantem-se celibatária e praticante do sexo casual. Já Martin se casa várias vezes, tem vários filhos e trai todas as esposas.
Petra é italiana, de Gênova, e tem no parceiro, Monte, um bom amigo. Aqui também se aciona o mesmo contraste: ela é adepta do sexo casual, inclusive teorizando a respeito, e o parceiro, viúvo, apaixona-se com frequência e até se casa.
Ela procura não chamar a atenção. Veste-se com trajes indistintos quando à cor e ao corte (calças compridas, casacos longos, cor escura beirando o negro), penteia-se, ou melhor, não se penteia, deixando os cabelos soltos sem artifícios. Vive sozinha, a não ser pela presença de uma tarântula de estimação, que cria há vários anos. Talvez seja maldade desconfiar de que é metáfora para um companheiro, que substitui…
Quando então surge a francesa Candice, superando tudo isso, a alegria das espectadoras aumenta. De inteligência ímpar, como sempre nestas novas protagonistas, é exuberantemente feminina: rechonchuda, tem quatro filhos (sem marido, é claro, marido só atrapalha), é namoradeira mas não enjeita amores de passagem. Tem preferência por cor-de-rosa nas roupas e nos acessórios: celular, chaveiro, carteira profissional, tudo cor-de-rosa. Em sua casa, só ela não cozinha: as panelas ficam por conta do ex-marido, do namorado, do filho.
Chegadas a esse patamar, mal podemos esperar pelo que o futuro das séries policiais nos reserva.
*Walnice Nogueira Galvão é professora Emérita da FFLCH da USP. Autora, entre outros livros, de Lendo e relendo (Sesc\Ouro sobre Azul). [amzn.to/3ZboOZj]
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