Por ANDRÉ LEMOS*
É importante reconhecer que as comunidades tradicionais de matrizes afro-brasileiras, incorporadas de suas religiões, possuem componentes que as legitimam como espaços sociais de cuidado e saúde
No dia 19 de março de 2025 a Prefeitura do Rio de Janeiro publicou, no Diário Oficial, a resolução conjunta das Secretarias de Meio Ambiente e Clima e Saúde (nº. 2), pelo reconhecimento das práticas e as comunidades de matrizes africanas como promotoras da saúde e de cura complementares ao SUS. Porém, uma semana depois, em 25 de março, a mesma prefeitura a revogou via Decreto (nº. 55824) sem muitas explicações. Tudo indica que foi uma articulação política institucional (apoiada por movimentos sociais) que foi barrada no âmbito da execução e gestão.
Somente pela iniciativa a data é histórica, a capital carioca seria a primeira cidade do Brasil a implementar tal feito. Estando em acordo com Resolução n° 715/2023 do Conselho Nacional de Saúde (CNS), a partir da Orientação 46: reconhece as manifestações da cultura popular dos povos tradicionais de matriz africana e as Unidades Territoriais Tradicionais de Matriz Africana como equipamentos promotores de saúde e cura complementares do SUS. E ratificando no plano municipal a Portaria Ministerial n°. 992/2009, que institui a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra.
Conforme, o Artigo 1 da Resolução Conjunta SMAC/SMS n°. 02, basicamente as manifestações da cultura popular dos povos tradicionais de matriz africana reconhecidas seriam: Banhos – utilização de plantas ancestrais quinadas, maceradas ou fervidas com água, óleos essenciais e demais elementos; Defumação – conjunto de ervas, incensos ou madeiras aromáticas queimadas que produzem fumaças visando a proteção e a purificação; Benzedeiras – mulheres que utilizam água, óleos essenciais e ervas ancestrais com preces que conectam a espiritualidade e o humano; Chás – bebidas produzidas por meio da infusão de folhas e ervas secas com água; Escalda – solução com água, sal, ervas e óleos essenciais para os pés; Limpezas realizadas no corpo e nos ambientes, com velas, água, defumação, ervas, alimentos e especiarias; e oferendas de comidas e alimentos à cabeça.
Visivelmente tais manifestações são elementos socioculturais ancestrais, trabalhados e exercitados nas comunidades tradicionais de matrizes afro-brasileiras (especialmente nos Terreiros). Possuindo adesão de parte da sociedade brasileira que tem acesso à informação e rompeu a barreira da intolerância religiosa e da discriminação. Doravante, em níveis estruturais de cidadania comportam na sua amplitude os princípios de universalidade, integralidade e equidade dos SUS, principalmente nas diretrizes relativas aos cuidados paliativos e preventivos (complementares). Com comprovada eficiência, mediante experiências em cuidados e prevenção de enfermidades, comorbidades e procedimentos. Além disso, parte das próprias especiarias, ou matéria prima, se tornaram fitoterápicos populares.
Neste sentido, é importante reconhecer que as comunidades tradicionais de matrizes afro-brasileiras, incorporadas de suas religiões, possuem componentes que as legitimam como espaços sociais de cuidado e saúde. E com isso estão em condição de reivindicar pleitos de participação social em forma de lei para que se regulamente a grande contribuição em saúde que podem oferecer ao conjunto da população. Contexto e debate que dialoga com uma passagem, de Clóvis Moura (2020, p. 183), em relação aos afrodescendentes no Brasil: “(…) reavivando a sua identidade étnica, fato que determina um nível de consciência dos seus direitos etnopolíticos bem mais dinâmicos e abrangentes.”
Contudo, é preciso admitir que a abrangência do SUS garante a possibilidade de pôr em prática políticas públicas com tais características, em especial na Atenção Primária à Saúde (APS) que atua diretamente na ponta, ou seja, junto à população, e que deveria aprofundar mecanismos de reconhecimento territorial e cultural. Os limites, porém, estariam no âmbito político e regulatório que deixam a desejar em outras demandas da saúde pública, e que estão além do endosso e fortalecimento de grandes programas.
Tal problemática traz à tona uma tensão entre a regulação do SUS e a saúde suplementar (privada), com impacto negativo como descrito: “Ao contrário do Sistema Único de Saúde, onde a regulação se comporta como uma ferramenta de compatibilização entre a oferta de serviços e as necessidades de saúde do cidadão, na saúde suplementar as ações regulatórias dão-se muito mais no sentido de resguardar os direitos do consumidor, do que no de trabalhar numa lógica de diminuição de desigualdades de acesso ou de promover uma coordenação articulada entre as diferentes redes de atenção à saúde, de modo a estabelecer com agilidade e eficiência um trajeto a ser percorrido pelo cidadão que apresenta necessidades específicas de cuidados de saúde.” (Barros; Amaral, 2017, p. 43)
Conforme Barros e Amaral (2017), a regulação em saúde produz um sistema (SUS) e subsistemas (Saúde Suplementar), fazendo com que em muitas situações a Saúde Complementar veja o SUS como concorrente e tenha um comportamento não cooperativo. Impactando na APS negativamente, pois a concorrência prejudica o SUS não só na regulação, mas também no financiamento, questões que poderiam parecer inerentes como capacitação de especialistas em regulação e estímulo da permanência do médico (nota-se grande rotatividade/volatilidade), na APS, não ocorrem de maneira satisfatória.
Dada situação, com certeza prejudica a possibilidade do SUS ampliar seu escopo de ação, como facilitar com que os gestores tenham maior receptividade para iniciativas de absorção de experiências do tipo das práticas das comunidades das matrizes afro-brasileiras em saúde, por exemplo.
Mas, é possível que tal demanda seja fortalecida ao se somar às outras demandas, tendo basicamente os dois exemplos acima. Inclusive de maneira complementar, como lideranças das comunidades se especializando em regulação, ao tempo que as práticas de matrizes afro-brasileiras gerem condições mais favoráveis para os próprios profissionais em saúde, para além dos usuários.
Em 2019, no início da gestão negacionista do (des) governo de Jair Bolsonaro que entre outras coisas negligenciou o SUS, especialistas (Castro et al., 2019) debatiam o quanto a APS é determinante para a ampliação da própria rede de serviços de saúde. E o quanto sua qualidade é inerente ao modelo de financiamento e regulação.
Atualmente o quadro de governança mudou, mas isso não significa que os desafios e as problematizações tenham se extinguido. Ainda mais quando se busca a consolidação de políticas públicas emancipadas e emancipatórias, o fortalecimento dos princípios do SUS e o aprofundamento do conceito de saúde coletiva.
*André Lemos é sociólogo e mestre em educação.
Referências
Barros F, Amaral T. Os desafios da regulação em saúde no Brasil. Anais do Instituto de Higiene e Medicina Tropical Regulação na Saúde, 2017.
Castro M, Massuda A, Almeida G, Filho M, Andrade M, Noronha K, Rocha R et al Sistema Único de Saúde do Brasil: os primeiros 30 anos e perspectivas para o futuro. The Lancet, 2019.
Moura, C. Dialética radical do Brasil negro. São Paulo, SP: Anita Garibaldi, 2020.
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