Autoritarismo micropolítico

Imagem: Anderson Antonangelo
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Por RODOLPHO VENTURINI*

O sentido do governo bolsonaro, antes da concentração do poder, é a dispersão da forma autoritária como uma espécie de micropolítica da força

Tradicionalmente, o autoritarismo é pensado como um fenômeno de concentração. Desse ponto de vista, por exemplo, “autoritário” é o governante que concentra, ou busca concentrar, os meios de exercício do poder em suas próprias mãos a fim de, por um lado, se manter no poder e, por outro, impor sua vontade sobre os governados.

Pensado como fenômeno de concentração, o autoritarismo pode ser facilmente reconhecido naquelas situações em que há concentração de poderes na figura de um único indivíduo. Nelas, o governante age de modo a fortalecer sua própria posição e impor sua vontade. Nesse sentido, a concentração aparece como um fim em si.

Certamente, as experiências totalitárias do século XX, notadamente o nazismo e o stalinismo, podem ser pensadas largamente como processos pelos quais o poder social e político passou por uma concentração cujo ponto de convergência seria a figura do líder. Sob a forma do totalitarismo, a concentração autoritária é levada às últimas consequências, de modo que a própria vida dos indivíduos se torna submetida àquele que concentra o poder.

As experiências totalitárias, no entanto, devem ser consideradas como formas extremas da concentração autoritária. Governos podem seguramente ser autoritários sem que haja esse centro claramente delimitado pela figura de um líder. O núcleo da concentração pode muito bem ser um grupo ou uma instituição. Esse seria, por exemplo, o caso das ditaduras na América Latina, em que o centro da concentração do poder foram os grupos e instituições militares, mais do que um indivíduo.

Além disso, nada impede que esse processo de concentração se dê de modo velado, isto é, no interior de um arcabouço institucional cuja carapaça ainda é democrática, mas cujo conteúdo converge para um centro que, por assim dizer, às escondidas, concentra esse poder. Em outras palavras, é plenamente possível uma convergência entre forma democrática e concentração autoritária, e esse seria o caso, mesmo que tendencial, dos cadáveres democráticos cuja necrópsia foi realizada recentemente[1].

Dito isso, dificilmente seria possível negar o viés autoritário do governo Bolsonaro. Os movimentos do presidente no sentido de garantir o seu domínio pessoal, primeiro, sobre as forças policiais e, depois, sobre as forças militares são a face mais visível desse autoritarismo, isto é, do esforço de concentrar os meios de exercício do poder (no caso, da violência) em suas próprias mãos. O episódio em que ministro da defesa pôs o cargo à disposição, sendo acompanhado pelos comandantes das forças militares, ao que tudo indica, tem como fundamento justamente esse esforço de concentração por parte do presidente.

Gostaria de sugerir, porém, que a forma da “concentração” não só não esgota o sentido da experiência autoritária, mas também que ela não é a dimensão mais profunda do autoritarismo característico do governo Bolsonaro. Para além do fenômeno de concentração (característico das experiências autoritárias do século XX), o autoritarismo também pode assumir a forma de um processo de dispersão. Ou seja, é possível falar em dois tipos de autoritarismo, se se quiser, um, centrípeto, outro, centrífugo.

A maneira pela qual Bolsonaro busca atrair para si de forma direta ou indireta o comando pessoal das forças policiais e militares claramente representa um fenômeno de concentração e, por si só, é algo absolutamente preocupante. No entanto, ainda assim, o “risco autoritário” do governo Bolsonaro não pode ser pensado apenas nos termos de concentração de poderes, mas deve ser tomado também da perspectiva de uma dispersão generalizada do autoritarismo, ou seja, uma “dispersão autoritária”.

O que poderia caracterizar um autoritarismo que se apresenta, não como concentração, mas como dispersão? Se a “concentração autoritária” é a concentração do poder, da força, da autoridade, em um núcleo fixo, a “dispersão autoritária” pode ser pensada como a difusão e espraiamento da forma autoritária pela sociedade, uma dispersão da força. Como dispersão, o autoritarismo opera pela produção de condições sociais e políticas a partir das quais a forma autoritária pode encontrar expressão nos pontos mais distantes do núcleo que a irradia.

É por essa razão, por tentar fazer com que o autoritarismo viceje nas regiões mais distantes possíveis, que esse tipo de autoritarismo poderia muito bem ser definido como um autoritarismo micropolítico. Para essa forma de autoritarismo, o fundamental não é a concentração do poder nas mãos de um grupo restrito ou de um líder, mas a criação de condições nas quais o autoritarismo possa se expressar, como manifestação de força e violência, nas situações mais cotidianas, nas disputas familiares, nas brigas de trânsito, entre vizinhos, nas conversas de bar, nos bancos escolares e nas brincadeiras infantis, assumindo inclusive formas mais espetaculares como as do linchamento espontâneo, ou mais ou menos organizadas como o vigilantismo e, obviamente, a milícia[2].

Trata-se de produzir situações em que uma personalidade autoritária pode se manifestar e se afirmar sem peias. Para essa forma micropolítica de autoritarismo, a concentração do poder não está excluída, mas é apenas um meio, um instrumento para se atingir o fim maior que é a disseminação da forma autoritária e daquela que é sua experiência fundamental, a força. A concentração, aqui é secundária. Ela se dá apenas na medida em que é possível criar um circuito no qual a concentração política possa alimentar essa dispersão da forma autoritária e do uso da força em um nível micro.

O desgoverno, a desordem, a construção do caos, a confusão e a contradição, claramente, não são o simples resultado de uma incapacidade[3]. São antes ferramentas úteis e mesmo fundamentais para a dispersão autoritária. Elas são justamente o mecanismo que produz as condições ideais de proliferação do autoritarismo. As tentativas de intervenção nas instituições policiais e militares certamente são preocupantes, mesmo urgentes, mas é a dispersão, e não a concentração, a face mais fundamental e talvez mais perigosa do tipo de autoritarismo representado por Bolsonaro[4].

Talvez resida aí a dificuldade em se descrever o bolsonarismo como uma forma de fascismo. O fascismo, como experiência histórica, foi sobretudo marcado pela concentração do poder. O bolsonarismo, por sua vez, pode muito bem prescindir da concentração, ou pode instrumentalizá-la. De qualquer modo, essa concentração, seguramente, não pode ser tratada como a finalidade última do projeto que Bolsonaro está levando a cabo no Brasil. Seu sentido, antes da concentração do poder, é a dispersão da forma autoritária como uma espécie de micropolítica da força.

*Rodolpho Venturini é doutorando em filosofia na UFMG.

Notas


[1] Vide, por exemplo, as análises de Levtisky e Ziblat em Como as Democracias Morrem (2018).

[2] Essa quase organização, porém, nada tem a ver com um processo de institucionalização ou vinculação dessas instituições ao aparelho estatal como foi o caso, por exemplo, da SS na Alemanha. Sob a forma do autoritarismo micropolítico, dispersivo, essa organização é frágil, fugaz, espontânea e sem vínculo com o poder estatal. A dispersão não se dá como institucionalização.

[3] O autoritarismo micropolítico, portanto, pode prescindir inclusive do apelo à “ordem” como valor, característico da concentração autoritária.

[4] A questão acerca de se as instituições serão ou não capazes de “conter” os esforços de concentração de Bolsonaro, portanto, seria também secundária.

 

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