Por RONALD LEÓN NÚÑEZ*
Uma greve iniciada pelos trabalhadores da construção civil em Berlim Oriental levou a uma rebelião que se espalhou pela antiga República Democrática Alemã
A invasão russa na Ucrânia entrou no seu segundo ano. Se a guerra é a continuação da política por outros meios, como argumentou Clausewitz, o estudo da história é indispensável para compreender a política que conduziu a este conflito.
Esta é uma guerra de conquista de um povo historicamente oprimido pela segunda maior potência militar do mundo. As tropas russas deixam um rastro de morte, destruição e atrocidades contra os civis em seu caminho. O povo ucraniano oferece uma firme, quase desesperada, resistência. A causa ucraniana é justa e, como tal, merece o apoio incansável não apenas dos socialistas, mas de todos os defensores dos direitos humanos e democratas.
O nacionalismo expansionista russo tem raízes históricas. O império czarista era uma “prisão dos povos”. Em seus primeiros anos, a Revolução Russa de outubro de 1917 rompeu com esta política opressora e garantiu o direito de autodeterminação para todas as nações, isto é, o direito de se separar se a nação oprimida assim o determinasse. Assim, a URSS foi formada em 1922 com base em uma união voluntária de povos. Entretanto, a contrarrevolução estalinista rompeu com esta política e retomou, com nova brutalidade, a opressão russa sobre as nacionalidades oprimidas e o controle dos Estados que Moscou considerava parte de sua esfera de influência.
Quando Vladimir Putin, um antigo agente da KGB, justificou sua ofensiva negando à Ucrânia seu direito à existência nacional, já que aquele país não seria mais do que uma “criação” russa, tão somente reafirmou a antiga posição do chauvinismo russo.
O regime estalinista – do qual vieram Boris Ieltsin, Vladimir Putin e o punhado de oligarcas que se enriqueceu com a restauração capitalista e agora controla o Estado russo com punho de ferro – tem uma longa história de agressão militar contra os povos do chamado “bloco soviético”, que, no século XX, ousaram questionar a autoridade de Moscou.
O Kremlin afogou em sangue todas as tentativas de revoluções políticas, ou seja, processos sociais que se opunham ao poder ditatorial da burocracia soviética, mas sem questionar os fundamentos econômico-sociais não capitalistas da ex-URSS e dos países do Pacto de Varsóvia. Os estalinistas russos invadiram nações e massacraram civis com a mesma maldade que testemunhamos agora na Ucrânia.
Nossa intenção é lidar, em partes, com os processos de luta antiburocrática ocorridos na antiga Berlim Oriental em 1953, na Hungria em 1956, na antiga Tchecoslováquia em 1968 e no impressionante movimento operário que, apesar da forte repressão, mudou o curso da Polônia entre 1980 e 1989.
Resgatar a memória destas rebeliões ajudará a compreender duas questões candentes de nosso tempo: a essência do expansionismo russo e a resistência dos povos da Europa Oriental à opressão nacional.
Comecemos contextualizando o primeiro grande confronto contra o Termidor Soviético: a revolta dos trabalhadores de Berlim Oriental, em 1953.
As “democracias populares”
O fim da Segunda Guerra Mundial, como é bem conhecido, impôs um reordenamento no sistema internacional de Estados, selado pelos acordos estabelecidos nas conferências de Yalta e Potsdam em 1945, entre Roosevelt-Truman (EUA), Churchill (Grã-Bretanha) e Stalin (URSS).
A burocracia soviética, seguindo a lógica da coexistência pacífica, concordou com o imperialismo em uma nova divisão do mundo. As potências imperialistas, por um lado, reconheceram o direito da URSS de estabelecer um bloco de nações aliadas na Europa Central e Oriental. Por outro lado, Stalin comprometeu-se a impedir a revolução no mundo, especialmente naqueles países onde a resistência ao nazismo era liderada por partidos comunistas. Este compromisso impediu a ascensão dos trabalhadores ao poder em países como a França, a Itália e a Grécia. O interesse do Kremlin era consolidar uma área de influência que, de acordo com sua teoria, coexistiria pacificamente com o mundo capitalista. Assim, nasceu a divisão oficial entre “dois campos”, “dois sistemas”: os “Estados imperialistas” e os “Estados amantes da paz”.
Durante o avanço militar soviético para Berlim, o Exército Vermelho liberou do jugo nazista uma faixa de países na qual, após o fim da II Guerra Mundial, manteve uma ocupação militar. Este foi o ponto de partida para a formação do chamado Bloco Oriental, ou glacis soviético, uma cadeia de Estados controlados, manu militari, pela burocracia estalinista: Alemanha Oriental, Polônia, Tchecoslováquia, Hungria, Romênia, Bulgária, Iugoslávia (até 1948) e Albânia (até 1960).
Entre 1945 e 1948, Stalin promoveu as chamadas “novas democracias”, ou seja, governos de unidade com facções burguesas (frentes populares), preservando as formas de um regime multipartidário e o ritual das eleições parlamentares, mas sob a tutela do exército soviético. A propriedade privada dos meios de produção permaneceu em grande parte intacta.
No entanto, esta política mudou em 1948, devido principalmente à pressão imperialista por meio da Doutrina Truman e do Plano Marshall. Moscou encorajou os partidos comunistas locais a tomar todo o poder e pressionou para a expropriação da burguesia. Isto deu origem a regimes de partido único, conforme o modelo estalinista russo[i]. Ou seja, no contexto de condições objetivas excepcionais e contrárias a suas intenções originais, o Kremlin ampliou a estrutura social e o regime totalitário em vigor na ex-URSS; contudo, esta mudança não foi produto de uma revolução operária (como a de outubro de 1917 na Rússia), mas, essencialmente, da ocupação militar do Exército Vermelho naqueles países da Europa Central e Oriental.[ii]
Assim, surgiram novos Estados operários, mas burocratizados desde sua gênese.[iii] Enquanto os capitalistas eram expropriados e estas economias eram planejadas, o poder político permanecia nas mãos de uma burocracia privilegiada, ferrenha inimiga de um regime baseado na democracia operária.
Este é o início das chamadas “democracias populares”, um bloco de países economicamente explorados e oprimidos pelo chauvinismo russo. Eram Estados dominados por uma ocupação militar estrangeira permanente. A opressão de Moscou, como veremos, afirmará várias vezes o candente problema nacional. A burocracia soviética passara a extrair o excedente social de outras nações. Em troca da extensão de sua área de influência, Stalin renunciava à revolução nos países capitalistas centrais. Esta é a essência dos pactos que marcaram o pós-segunda guerra. Nos países ocupados, o Kremlin impôs governantes completamente submissos após sucessivos expurgos locais.
Este breve resumo do cenário do pós-guerra na Europa Oriental nos ajudará a entender os processos que emergiram da crise mundial do aparato estalinista[iv]. O primeiro marco desta crise foi, sem dúvida, a morte de Stalin em 5 de março de 1953. Após três décadas de culto à personalidade, o desaparecimento do infalível “guia genial dos povos” não poderia deixar de abalar o poder burocrático. Não foi por acaso que, alguns meses depois, o primeiro processo de revolução política começou.
A revolta operária em Berlim Oriental
Entre 16 e 17 de junho de 1953, uma greve iniciada pelos trabalhadores da construção civil em Berlim Oriental levou a uma rebelião que se espalhou pela antiga República Democrática Alemã (RDA). Cerca de meio milhão de trabalhadores dobraram seus braços e cerca de um milhão de alemães do leste saíram às ruas em 700 cidades e vilas.
A gota d’água foi a determinação de aumento do ritmo de produção sem aumento salarial. No final de maio, o governo da RDA decidiu por um aumento de 10% na cota de produção. Se os trabalhadores de um determinado ramo industrial não cumprissem as metas estabelecidas pela burocracia, seus salários seriam reduzidos.
Não é difícil imaginar como o aumento de produtividade foi odioso para a classe trabalhadora de um país em ruínas, onde não havia liberdade democrática efetiva. Entre a população, ademais, havia a consciência generalizada de que os objetivos de acelerar o desenvolvimento da indústria pesada na RDA faziam parte de um plano econômico projetado para atender às exigências da economia soviética, e não às necessidades básicas dos trabalhadores alemães.
Dado o caráter totalitário do regime, nem as cotas de produção nem quaisquer medidas econômicas foram decididas pelos trabalhadores, mas pelos burocratas, primeiramente os de Moscou. Eletricidade, carvão, aquecimento – tudo foi racionado. A nova meta de produção representava um ataque às já castigadas condições de vida. No setor da construção civil, significava um corte salarial de 10 a 15% para trabalhadores não qualificados e de metade ou mais para trabalhadores qualificados.
A ofensiva da burocracia contra os trabalhadores fazia parte da política do “novo rumo”, oficializada em 9 de junho de 1953 pelo Comitê Central do SED,[v] o partido estalinista governista. Justificada pelos pobres indicadores econômicos, a nova política acarretou uma série de concessões à burguesia, à pequeno-burguesia e às igrejas, em detrimento das condições de vida da classe trabalhadora.
A política de crescimento desproporcional da indústria pesada, em prejuízo da produção de bens de consumo básicos, resultou em escassez e desabastecimento para os alemães orientais.
Em 16 de junho, os pedreiros de todas as obras da Rua Stalin (Stalinallee) decidiram democraticamente entrar em greve e marchar até a Casa dos Ministérios para exigir que o governo abolisse a nova cota de produção.
No início, os grevistas não tinham outra intenção senão entregar suas exigências por escrito às autoridades. Eles marcharam sob uma bandeira vermelha que dizia: “Exigimos uma redução da cota”. Enquanto os pedreiros avançavam, milhares de outros trabalhadores se somaram à coluna cantando outras exigências: “Trabalhadores, unam-se!”, “Unidade é força!”, “Queremos eleições livres!”, “Queremos ser livres, não escravos!”.
Quando a marcha chegou ao seu destino, não foi recebida pelo “camarada” Walter Ulbricht, secretário geral do SED, mas por funcionários secundários. Tal fato enfureceu os presentes. Diante de uma multidão de cerca de 10.000 pessoas, um orador apresentou uma lista de reivindicações: cancelamento do aumento das cotas de produção; redução de 40% nos preços das lojas estatais; aumento geral do nível de vida dos trabalhadores; abandono da tentativa de criar um exército; eleições livres na Alemanha; democratização do partido e dos sindicatos.
“Não estamos aqui apenas pelas cotas”, disse um trabalhador. “Não queremos punição para os grevistas e queremos a libertação dos presos políticos. Queremos eleições e a reunificação da Alemanha”.[vi]
Dada a indiferença da burocracia, os trabalhadores decidiram convocar uma greve geral para o dia seguinte. Uma crônica da época menciona como os trabalhadores enfurecidos enfrentaram seu interlocutor estalinista, gritando: “Nós somos os verdadeiros comunistas, não você”.[vii] Durante a noite, foram realizadas assembleias em diversos lugares e foram formados comitês de fábrica. As discussões abordaram questões como a exigência de que os dias de greve fossem pagos e que não houvesse represálias contra os membros dos comitês; redução dos salários da polícia; liberdade para os presos políticos; renúncia do governo; estabelecimento de eleições secretas, gerais e livres, que garantiriam a vitória dos operários em uma Alemanha reunificada. A dinâmica do conflito transformou o protesto de demandas puramente econômicas em um movimento político em poucas horas.
A participação na greve geral de 17 de junho foi um sucesso retumbante. Mais de 150.000 trabalhadores, principalmente metalúrgicos, pedreiros e trabalhadores dos transportes, ocuparam as ruas do setor soviético de Berlim. Delegações de trabalhadores da Alemanha Ocidental juntaram-se à luta. Em todos os centros industriais da RDA, surgiram assembleias, moções de solidariedade, protestos de todo tipo. Comitês de fábrica e até mesmo sovietes (conselhos de trabalhadores) embrionários foram criados. A greve se tornou um verdadeiro levante revolucionário pela revolução política e pela reunificação da Alemanha, abalando a burocracia estalinista.
No entanto, a greve como tal não se espalhou para o setor ocidental. A burocracia operária no Ocidente conseguiu impedir a unificação da luta.
Walter Ulbricht perdera o controle da situação. Em pânico, os líderes do SED apelaram a Moscou por ajuda. Mais de 20.000 soldados russos, apoiados por tanques do Exército Vermelho estacionados na Alemanha Oriental, junto a mais 8.000 policiais locais (Volkspolizei), invadiram as ruas para esmagar a revolta. Tanques abriram caminho entre a multidão, que atirava pedras ou qualquer outra coisa que conseguisse achar. Os russos não hesitaram em abrir fogo para dispersar a manifestação. O relatório oficial admite que mais de 50 pessoas foram mortas. Outras estimativas colocam o número de mortos pela repressão em centenas. A rebelião operária era esmagada por uma força estrangeira.
Ocorreram prisões em massa sob o amparo da lei marcial. Tanto aqueles que participaram da revolta quanto aqueles que expressaram apoio à causa dos trabalhadores foram acusados de serem contrarrevolucionários ou agentes do Ocidente. Nos dias que se seguiram ao massacre, o sistema judicial da ex-RDA e os tribunais militares soviéticos julgaram centenas de pessoas. Houve execuções sumárias e torturas nas prisões da temida polícia política, a Stasi. Quase 15.000 pessoas foram presas, e no final de janeiro de 1954 mais de 1.500 haviam sido condenadas. Pela primeira vez, a burocracia fechou o setor oriental, isolando-o do resto da cidade. Este foi o prelúdio para o futuro Muro de Berlim.
Mesmo assim, houve greves e protestos em muitas localidades após o dia 17 de junho. Todavia, a derrota fora selada em Berlim. A intervenção militar russa impôs um padrão que seria repetido na Hungria três anos depois e na Tchecoslováquia em 1968. O esmagamento dos protestos da Praça Tiananmen, na China, em 1989, seguiria a mesma lógica.
A greve geral na antiga RDA ocorreu em meio à disputa entre Khrushchev, Malenkov, e o chefe do aparelho repressor soviético, Lavrenti Beria, pela sucessão de Stalin. A execução deste último, em dezembro de 1953, foi parcialmente justificada pela crise na Alemanha.
O governo estalinista de Grotewohl-Ulbricht foi salvo pela intervenção de tanques russos. Mas a rebelião marcou os manifestantes. Nos anos seguintes, ativistas operários e camponeses falariam da necessidade de um “novo 17 de junho”. O primeiro ato de revolução política, por mais breve que fosse, serviria de exemplo para os povos de outros países da Europa oriental, ao mostrar que a burocracia soviética não era onipotente.
*Ronald León Núñez é doutor em história pela USP. Autor, entre outros livros, de A Guerra contra o Paraguai em debate (Sundermann).
Publicado originalmente no jornal ABC.
Notas
[i] Em 1949, de 80 a 95% da produção industrial nesses países havia sido nacionalizada.
[ii] Neste contexto, em 1955 foi assinado o Pacto de Varsóvia, uma aliança militar do “bloco soviético” para combater a OTAN, a coalizão militar criada em 1949 pelas potências imperialistas do Ocidente. A realidade posterior demonstrou que o Pacto de Varsóvia foi estruturado para manter a disciplina dos países membros, e não para um confronto com o imperialismo.
[iii] Havia outros Estados operários burocratizados com origens diferentes, isto é, decorrentes de revoluções: China, Iugoslávia, Albânia, Vietnã do Norte e Coreia do Norte, mas também liderados por burocracias totalitárias.
[iv] A crise e a divisão do aparato stalinista foram expressas, entre outros fatos, pela divisão Stalin-Tito em 1948 e a crise sino-soviética no final dos anos 1950. Tais crises, assim como os conflitos da URSS com os grupos governantes nos estados do glacis, deveram-se a confrontos entre interesses nacionais, pois cada burocracia nacional procurou maximizar seus privilégios, decorrentes do controle de “seus” estados operários burocratizados.
[v] Partido da Unidade Socialista da Alemanha (SED, siglas em alemão). Surgiu em 22 de abril de 1946, como resultado da fusão, promovida por Stalin e Walter Ulbricht, do KPD (Partido Comunista da Alemanha) com o setor oriental do SPD (Partido Socialdemocrata da Alemanha). Foi o partido governante na RDA até 1989.
[vi] Talpe, Jan. Los estados obreros del glacis. Discusión sobre el este europeo. São Paulo: Editora Lorca, 2019, p. 65.
[vii] Mandel, Ernest. El levantamiento obrero en Alemania Oriental, junio de 1953. Disponível em: https://vientosur.info/el-levantamiento-obrero-en-alemania-oriental-junio-de-1953/.
A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA