Por EUGÊNIO BUCCI*
Os conglomerados monopolistas globais fazem jus à fama de trilionários e poderosíssimos. Barbarizam em toda parte, como se flutuassem acima do alcance da lei
Já é conhecido o poder econômico das empresas tecnológicas mastodônticas que revolucionaram o nosso tempo, as chamadas big techs. Na semana passada, tivemos mais uma prova de sua magnitude pecuniária: circulou a notícia de que a Nvidia – detentora de mais de 70% do mercado global de chips para Inteligência Artificial – conquistou o alto do pódio, a posição de mais valiosa do mundo, com um preço de 3,33 trilhões de dólares.
A Microsoft, dona do Windows, foi desbancada para o segundo lugar – vale “apenas” 3,2 trilhões de dólares. Em terceiro segue a Apple, avaliada em 3,21 trilhões. As três juntas somam uma cifra intergaláctica, que dá mais ou menos cinco vezes o PIB de um país do tamanho do Brasil.
É também conhecido o poder político dessas gigantes do capitalismo. Trata-se de uma força imperial que vem do alto, como a das divindades. Elon Musk, proprietário da Space X, da Tesla e do X (ex-Twitter), costuma desfilar por aí e por aqui rodeado por um séquito de tietes da extrema direita, incensado como santo profeta.
Nas outras big techs, os sintomas de prepotência são iguais. Em maio do ano passado, a seção brasileira do Google publicou em sua página inicial um link para um texto que fazia campanha contra a aprovação do Projeto de Lei 2630, o PL das Fake News. Foi um choque. Muita gente, incrédula, se perguntava: como é que pode um site de buscas estrangeiro, que sempre jurou ser apartidário, respeitoso e isento, tentar encabrestar desse jeito a opinião pública de um país soberano?
Pois é, como pode? Muito simples: não pode. Ou não poderia. Tanto não poderia que, quase um ano depois, no final de janeiro de 2024, a Polícia Federal enviou ao ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, o relatório com suas conclusões sobre o caso. Segundo o relatório, o Google incorreu em “abuso de poder econômico”. Diagnóstico preciso.
Preciso e desolador. Os conglomerados monopolistas globais fazem jus à fama de trilionários e poderosíssimos. Barbarizam em toda parte, como se flutuassem acima da lei – acima do alcance da lei. Quando estão na China, é verdade, posam de subservientes, mas, no resto do planeta, chutam a porta sem se incomodar com as boas maneiras. Tratam as tentativas de regulação como incômodos incidentais que vêm de baixo. Olham para a autoridade pública do mesmo modo que o playboy filhinho-de-papai olha para o guarda de trânsito que tenta multá-lo por excesso de velocidade.
E isso não é tudo. Aliás, isso não é nem o principal. A riqueza desmesurada e a estonteante máquina de propaganda não são as características centrais desses colossos da era digital. O que os coloca acima de todas as outras organizações, públicas ou privadas, é o saber técnico que acumulam a portas fechadas, entre quatro paredes de titânio. Nisso – mais do que no dinheiro sem limites e na capacidade de manipulação ideológica – reside a maior ameaça que eles representam para o mundo democrático. Esses bunkers inexpugnáveis abrigam um saber proprietário, privativo e blindado que é só deles e de mais ninguém.
O termo “saber”, aqui, não significa “sabedoria”. Não existe sapiência dentro desses bunkers, longe disso. Não existe cultura. A Meta – controladora do Facebook, do WhatsApp e do Facebook – e suas concorrentes, que lucram espalhando ignorância artificial, obscurantismo e atrações viciantes, não são templos de conhecimento ou de iluminação. São o oposto disso.
O que elas concentram em seus escaninhos de silício não é a elevação do espírito, mas a técnica desumanizada, fria, num grau de matematização cibernética que mal imaginamos. Elas armazenam fórmulas e equações complexas que pavimentam a expansão da Inteligência Artificial, a ferramenta mais assombrosa jamais forjada pelo engenho humano e cada vez mais direcionada contra o talento humano.
As novas bibliotecas secretas, instaladas nas nervuras mais íntimas das big techs, não são mais como aquelas que atravessaram a Idade Média, hospedadas em mosteiros, conventos e abadias. O scriptorium monacal não se abria, jamais, a leitores vindos de fora da Igreja. Lá dentro, os códices e manuscritos conservavam a memória filosófica e teológica da antiguidade em sigilo absoluto. As ideias do passado repousavam em estantes labirínticas, isoladas do mundo secular e tratadas como substâncias perigosas, que não podiam entrar em contato o presente para não perturbar o status quo.
O que as bibliotecas secretas de hoje têm em comum com suas precursoras medievais é apenas o regime de segredo. No mais, são diferentes. O que elas ocultam não é a o pensamento dos antigos, mas os softwares e algoritmos que programam o que virá – à revelia da sociedade. Nenhuma autoridade pública tem meios de examinar seus arquivos. As instituições democráticas não sabem o que elas pesquisam, testam e realizam. As agências reguladoras não conseguem inspecioná-las. As bibliotecas secretas da Idade Média nos sonegavam o passado. As do século XXI nos sequestraram o futuro.
*Eugênio Bucci é professor titular na Escola de Comunicações e Artes da USP. Autor, entre outros livros, de Incerteza, um ensaio: como pensamos a ideia que nos desorienta (e oriente o mundo digital) (Autêntica). [https://amzn.to/3SytDKl]
Publicado originalmente no jornal O Estado de S. Paulo.
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