Por ROBERTO SCHWARZ*
Comentário sobre o filme de Eduardo Coutinho.
Como tudo que é notável, o interesse de Cabra marcado para morrer é difícil de classificar. O filme é uma vitória da fidelidade política, e por isto emociona muito.
O projeto inicial, anterior a 1964, era de filmar o assassinato de um líder camponês paraibano, de nome João Pedro, ocorrido recentemente. Os atores seriam os seus companheiros de trabalho e luta, entre os quais a sua mulher, e o local seria o do próprio crime. O golpe militar interrompeu a filmagem e dispersou a equipe, enquanto as latas com a parte já realizada do filme sumiam no rebuliço da fuga.
O cineasta entretanto não esqueceu o projeto, nem renunciou a ele. Logo que possível, quer dizer, muitos anos depois, buscou o material desaparecido. De posse dele procurou os atores, que a repressão e quase dois decênios haviam espalhado. Mostrou as fitas antigas, de que eles eram as figuras, e filmou as suas reações atuais a respeito, em que de uma forma ou outra aparecem os efeitos da ditadura e a continuidade da vida popular. O conjunto, a que se acrescentaram matéria documentária e explicações, e que traz embutido um hiato de vinte anos, formaria a obra. O diretor, Eduardo Coutinho, retomava o seu trabalho, bem como as suas alianças de classe, transformando o tempo decorrido em força artística e matéria de reflexão.
Neste ponto o cineasta se parece à sua atriz e figura principal, a militante camponesa que soube desaparecer, sobreviver à repressão, e reaparecer. A emoção aliás nasce deste paralelo: o filme interrompido, que se completa contra ventos e marés, de certa forma coincide com a mulher de fibra que, depois de comer o pão que o diabo amassou, reencontra a família, reassume o nome verdadeiro e reafirma a sua convicção. A constância triunfa sobre a opressão e o esquecimento. Metaforicamente, a heroína enfim reconhecida e o filme enfim realizado restabelecem a continuidade com o movimento popular anterior a 64, e desmentem a eternidade da ditadura, que não será o capítulo final. Ou ainda, o cinema engajado e a luta popular reemergem juntos.
Ora, nada é mais comovente que reatar um fio rompido, completar um projeto truncado, reaver uma identidade perdida, resistir ao terror e lhe sobreviver. São anseios básicos da imaginação, e também paradigmas explorados pela ficção sentimental. Se Cabra marcado não fosse mais que isto, seria um dramalhão. Sem menosprezar o valor político da fidelidade, que existe, e ao qual o filme deve a extraordinária simpatia, além da própria existência, vamos reconhecer que a sua qualidade é mais complexa.
Acontece que os fiéis, quando se reencontram depois da provação, não são os mesmos do começo. Esta mudança, que está inscrita em bruto na matéria documentária do filme, é sua densidade e seu testemunho histórico. Por causa dela as imagens pedem para ser vistas muitas vezes, inesgotáveis como a própria realidade. Sob as aparências do reencontro o que existe são os enigmas da situação nova, e os da antiga, que pedem reconsideração.
A ideia do primeiro filme nasce durante uma viagem da UNE volante ao Nordeste, em 1962, no quadro dos CPC e MPC, e traz a riqueza daquele momento extraordinário. Sob o signo da renovação cultural, aliavam-se a disponibilidade dos estudantes e as formas mais dramáticas da luta de classes, que no Brasil, devido à herança escravista, costumavam e costumam se travar fora do alcance da opinião pública. Dadas as características do populismo na época de Jango, a aliança tinha vago patrocínio oficial, e parecia nadar a favor da corrente.
Seu sentido tácito, salvo engano, seria mais ou menos o seguinte: a justiça e a simplicidade da reivindicação popular emprestavam relevância à vida estudantil e à cultura, que por sua vez garantiriam ressonância nacional, admiração e reconhecimento civilizado à luta dos pobres. A complementaridade destas aspirações é objetiva e produziu grandes momentos, que podem ser vistos na parte do filme realizada em 62: a estupenda dignidade dos camponeses, a singeleza trágica na apresentação dos conflitos de classe, o reconhecimento de tipos não-burgueses de beleza etc. São momentos aliás que mostram como é tola, esteticamente, a doutrina anti-engajada atual.
Hoje parece óbvio que aquela aliança não tinha futuro político, e que a revolução com estímulo de cima só podia acabar mal. No entanto ela canalizou esperanças reais, de que o filme dá notícia e nas quais se pressentem outras formas de sociedade. A relação entre assunto, atores, situação local e gente de cinema não é evidentemente de ordem mercantil, e aponta para formas culturais novas. Não se pode dizer também que o diretor se quisesse expressar individualmente: a sua arte trata de apurar a beleza de significados coletivos.
Tem sentido, no caso, falar em autor? O filme não é documentário, pois tem atores, mas o seu assunto é a tal ponto o destino deles, que não se pode tampouco dizer que seja ficção. Para um público intelectual, por outro lado, a ficção é que tem interesse documentário: deixa entrever, na seriedade e inteligência dos atores, cujo mundo entretanto é outro, a hipótese de uma arte com fundamento social diverso do nosso. Por fim, o filme mostra quanto os oprimidos podem dar aos intelectuais, e vice-versa (não esqueço as objeções que se podem fazer a esse ponto de vista).
São perspectivas que existiram e se materializaram culturalmente, sem prejuízo da grande parte de ilusão que comportavam. Mas se hoje nos parecem tão remotas, não é só pela ingenuidade. A mercantilização das relações de trabalho em geral, e da produção cultural em particular, nestes vinte anos avançaram muito. Outras formas de sociabilidade tornaram-se quase inimagináveis em nosso meio, o que pode não ser um mérito, e em todo caso mostra quanto a realidade do capitalismo se aprofundou e consolidou no período.
Dezessete anos depois, em 1981, o cineasta vai ao Norte em busca de seus companheiros e personagens. Leva o filme antigo e uma câmara. Atrás dele agora não há movimento estudantil ou facilidades governamentais, nem existe entusiasmo nacional. Em lugar da efervescência social e de suas formas de invenção muito socializadas, está um indivíduo mais ou menos sozinho, movido pela sua fidelidade a pessoas e a um projeto, só contando com seus poucos recursos.
É evidentemente outro sujeito. Também o resultado de seu trabalho terá mudado: sem prejuízo da intenção social, tomará forma mercantil, como é inevitável (o que não é uma crítica, pelo contrário, pois a importância do filme está em acusar a transformação nos termos da vida brasileira). Nem os camponeses, enfim, são os mesmos. As cenas em que apreciam e comentam o próprio desempenho – situação sempre privilegiada, que faz intuir o que Walter Benjamin denominava o direito do trabalhador à sua imagem – são esplêndidas. Não deixam de mostrar contudo as modificações operadas pelo medo e por conveniências novas, sem falar no tempo. O reencontro é caloroso, mas o momento é outro.
As entrevistas com Elisabete, a militante desaparecida cujo paradeiro o cineasta pesquisa e descobre, são o centro do filme. A companheira do dirigente camponês havia fugido para outro estado, trocado de nome e cortado as relações antigas, “para não ser exterminada”, conforme explica. A pessoa é evidentemente excepcional, pela energia, vivacidade, prudência, e também pelo brio. O gosto – entre modesto e envaidecido – com que ela deixa a obscuridade e se dá a conhecer no povoado em que vivera durante tanto tempo com identidade falsa, ensinando meninos e lavando roupa e louça, é extraordinário, e dentro do possível é o final feliz de uma autêntica heroína popular.
A intervenção do cineasta em sua vida é portanto grande. Como entendê-la? Da primeira vez, em 1962, tratava-se do encontro entre os movimentos estudantil e camponês, através do cinema, num momento de radicalização política nacional. O que estava em jogo era o futuro do país, e as pessoas só mediatamente seriam o problema. Agora trata-se da obstinação e solidariedade de um indivíduo, armado de uma câmara, que em condições de degelo político ajuda outra pessoa a voltar à existência legal, o que além do mais lhe permite completar o antigo filme.
O que está em jogo é o resgate de existências e projetos até segunda ordem individuais, ou melhor, não tão individuais assim, já que o resgate se opera dentro da órbita do cinema, o que introduz um novo aspecto de poder, de grande significado. Onde em 62 havia a redefinição do cinema e, por extensão, da produção cultural no quadro do realinhamento das alianças de classe no país, está agora a potência social da filmagem (“O senhor é da Globo?”), entrando pela vida particular das pessoas — nesse caso para bem.
A questão aparece mais agudamente nas entrevistas com os filhos de Elisabete, espalhados pelo Brasil, quase sem notícia ou lembrança da mãe, e que o cineasta foi procurar. Depois de lhes mostrar fotografias ou tocar uma fita gravada com a voz dela, vêm as perguntas à queima-roupa e a câmara atenta às emoções. É sabido que o bom médico não é o que tem pena, mas o que cura. Isto nalguma medida vale para o cinema de esquerda, que tem interesse em saber e revelar o que é real, sobretudo em situações de confronto.
O que querem dizer as lágrimas e explicações confusas de uma dona de bar na Baixada Fluminense, em que o espectador reconhece a antiga menina, séria e firme, de uma foto da família de Elisabete? É claro que o contexto são as desgraças que choveram sobre a família (perseguição, terror, crianças alvejadas na rua, suicídio, dispersão), como choveram sobre outras, de trabalhadores igualmente esclarecidos e corajosos. Entretanto, se esta visão das coisas não se impuser com força, a ponto de se tornar o enredo tácito, que não necessita explicitação (o que por ora é uma questão histórica aberta), as tomadas em dose do sofrimento da pobre mulher podem funcionar como simples exploração das emoções alheias.
Nada fica incólume, nem mesmo a simplicidade e a probidade que levaram o cineasta primeiro a não desistir e, depois, a filmar as suas figuras e cenas sem nenhuma demagogia. A câmara atenta e documentária — homenagem de Coutinho à clareza da luta popular, que dispensa explicações — diante de figuras inferiorizadas, a quem a História roubou a articulação, tem efeito de voyeurismo. É frieza amiga, remédio contra a perda de realidade própria ao sentimentalismo, ou é interesse de câmara indiscreta? É claro que não cabe especular sobre as intenções subjetivas do cineasta (antes questionar as do crítico), de cuja solidariedade efetiva o filme é a prova cabal. A ambiguidade não é dele, é da situação. O dramático, para quem se quer situar, é perceber os deslizamentos da realidade e a redefinição de problemas que eles causam.
A visita aos filhos de Elisabete forma o lado avesso do filme e a sua verdade histórica. No primeiro plano está a mulher extraordinária, que apesar de tudo tem a felicidade de reatar as duas pontas da vida, e está também o cineasta, que alcança completar o seu projeto. Isto é o que o filme conta, o seu elemento de interesse narrativo. A visita aos filhos e aos outros membros da equipe inicial, que emigraram, é o que o filme mostra, o seu elemento de constatação, contrabalançando o fim feliz do primeiro plano.
Estão jogados e esperdiçados pelo Brasil, sem saberem uns dos outros, sem trabalho que preste, dando a medida do desmembramento e do retrocesso humano que a evolução do capitalismo significou para os trabalhadores da região. Um único está bem, que foi estudar em Cuba, onde vive como médico. As suas poucas palavras sobre o martírio do pai são de um oficialismo ingênuo e escolar, o que acrescenta, apesar da brevidade, uma referência importante. O quadro é tanto mais amargo quanto as fotografias antigas mostram uma família evidentemente fora do comum, pela figura inteligente, briosa e bonita de todos sem exceção, o que impressiona. São frações da vida popular consistente que se criou no Norte e que a evolução geral do país não se cansa de pulverizar.
Quando fala na violência do latifúndio, Elisabete vira para baixo os cantos da boca, um gesto por assim dizer admirativo de que estão ausentes as desgraças pessoais, o medo e mesmo o ódio. E como uma espécie de objetividade, de consideração pelo vulto dos estragos e das maldades de que ele é capaz. É como se fosse uma fera descomunal, ou outra calamidade enorme, com que é preciso contar, e cuja dimensão é melhor reconhecer. Um saber tácito, de quem viu a onça, sem propaganda ou doutrina, que dá uma rara versão da luta de classes, limpa de oficialismo de esquerda. Há muitos anos, vendo uma fotografia do enterro de Neruda, logo depois da queda de Allende, julguei perceber uma coisa semelhante no rosto acabrunhado dos presentes.
A despeito do que foi dito, Cabra marcado dá impressão de vitalidade e esperança. Como explicá-la? Algumas razões já expusemos: a continuidade da vida popular, o sentimento de que o período ditatorial está terminando, a simpatia e inteligência dos tipos nordestinos, e por fim a demonstração de fibra dada pela própria realização do filme. Talvez contribua também o fato de as classes dominantes estarem ausentes.
Tudo bem pensado e as coisas sendo o que são, seria imaginável no Brasil de hoje um clima de tanta seriedade e dignidade se estivessem presentes membros da classe dominante? Longe de mim supor a superioridade moral intrínseca das pessoas de uma classe sobre as de outra, não estou louco. Entretanto, se meditarmos no universo do filme, em que estão presentes somente populares e intelectuais, penso que reconheceremos que esta composição é o fundamento de seu clima tão particular.
É como se no momento mesmo em que a parte melhor e mais aceitável da burguesia brasileira assume o comando no país — um momento a ser saudado! — o filme também melhor dos últimos anos dissesse, pela sua própria constituição estética e sem nenhuma deliberação, que num universo sério esta classe não tem lugar. Mas é claro que nem sempre a vida imita a arte.
*Roberto Schwarz é professor aposentado de teoria literária na Unicamp. Autor, entre outros livros, de Seja como for (Editora 34).
Publicado originalmente sob o título “O fio da meada” em Que horas são? (Companhia das Letras, 1987).
Referência
Cabra marcado para morrer
Brasil 1964-1984, Documentário,119 minutos.
Direção e roteiro: Eduardo Coutinho.
Elenco: Eduardo Coutinho, Ferreira Gullar (narrador), Tite de Lemos (narrador).