Por TADEU VALADARES*
Considerações sobre os resultados do primeiro turno das eleições de 2022
M., prezado,
É isso, grande frustração, muita tristeza, profunda amargura. Os nossos desejos e os votos dos nossos corações de eternos estudantes não foram longe o suficiente para encurtar a estrada que levará Lula de volta ao Planalto. Resultado: domingo, 2 de outubro, tornou-se afinal “only a station on our way”.
Haveria sido bom se tudo houvesse se resumido à imensa frustração que nos desequilibrou a todos, o coração tendo razões que a própria razão desconhece, e a psique sendo, nas situações limite, algo fraca. Não foi bom, foi pior. Além de não havermos conseguido evitar o segundo turno, o Brasil majoritariamente real, o profundo, o bárbaro que traspassa toda a estrutura social, nos deu mais uma lição de coisas. Lição de abismo, como diria o ultramontano Gustavo Corção que tinha alguma voga nos meios reacionários do Brasil da nossa juventude.
O Brasil real, profundo e sombrio se fortaleceu no congresso federal, resultado que abre margem ainda maior para futuras aventuras teratológicas. A extrema direita disse a que veio. Viu, pensa que venceu e até parece, no primeiro momento, que tem razão. Será que ainda aparentará isso dentro de 28 dias mais? A ver, e a fazer possível, nas quatro semanas, o que nos foi negado ontem. Se a extrema direita prevalecer, será a catástrofe completa, o império da contrarrazão total, totalitária, fascista, neo ou não. Isso sim, o pior de tudo. Mas esse cenário de terra arrasada ainda não está nem de longe desenhado pela estrela maior, lá no céu; nem pela estrela do PT nesta terra de ninguém.
Lição de coisas abismais tivemos ontem. Coisas miraculosamente falantes, coisas que, tornadas votos, nos alertaram, proclamaram, gritaram, ameaçaram e confirmaram os riscos que nós, os velhos, estamos velhos de saber, mas que, sempre jovens, recusamos levar em conta porque, afinal…
Afinal, não sei bem o porquê dessa cegueira voluntária que vai além de nós porque permeia, contando com a nossa, ao menos três gerações. Pairando sempre acima da cegueira nossa e da manifesta criminalidade deles, o Brasil real recolhe e afirma muitas heranças trágicas, as principais até agora insuperáveis, todas se plasmando em institucionalidades arteiras, mestras, elas e seus ocupantes, na arte de se disfarçar para, via ação efetiva, melhor exercerem sobre nós seu poder. O poder de uns e das outras, encarnado nos “homens bons” e em suas péssimas instituições. “Vivita y coleando”, a cada momento, a permanente arte da dominação.
Esse é o Brasil profundo, real, resistente, renitente, avatar originariamente encarnado no escravismo nunca de todo ultrapassado, nos donatários hereditários em muito modernizados via agronegócio, ciência e tecnologia aplicada à grande propriedade agrária, nos capitães de indústria (sargentos, na verdade, dada sua posição genuflexa) e nos tubarões do comércio que aqui efetivamente nasceram após a ruptura do pacto colonial. Deixo de lado a essencial dimensão, ela também, da esfera que imbrica cultura e meios de comunicação, essa máquina que conforma a mente dos tolos no cotidiano, essa esfera que é o que é e continuará sendo assim. Até quando?
Bem sei que sintetizo a paisagem, que transformo baobá em bonzai, mas essa é minha maneira de esboçar o Brasil real contra o qual combatemos, geração após geração. Nós, sempre animados pela possibilidade, que ela também sobrevive e se afirma desde ao menos 1848, a de fazer o sertão virar mar.
Verdade, se pensamos apenas no século passado, o sertão da história mundial já virou mar algumas vezes, embora por aqui nunca haja emergido esse tipo de metamorfose. Mas convém não ignorar: sempre, onde e quando esse grande movimento ocorreu, seu próprio ímpeto de transformar profundo não conseguiu se manter. Até hoje, o que invariavelmente vingou foi, em última análise, a maré da reação; o sertão, depois de um tempo, vencendo o mar. Sim, em momentos ou épocas extraordinárias o sertão vira mar, mas o mar até agora terminou por se recolher aos desvãos da história mundial. Ele se recolhe, espero que astuciosamente, para tentar voltar a ser efetivo, historicamente, mais adiante. Necessário, para nós, pensar Sísifo feliz.
Para ficarmos só no século XX, esse tsunami do sertão sobre o mar tem como anos simbólicos os que, em cada caso, marcam a exaustão das revoluções, da mexicana à russa, da chinesa à cubana, da vietnamita às das guerras de libertação colonial que vão da Argélia a Moçambique e Timor Leste. E muitas mais. Deixo de lado as revoluções ocorridas para, desejando que o próximo (?) intento consiga se manter (…), voltar ao Brasil.
Não ao dos nossos sonhos, por dialéticos e metodologicamente científicos que sejam, ou por mais que bem fundados no desejo do Eu e na vontade do Nós de mudar o inaceitável que se impõe planetariamente, progressivamente. Progressivamente irônico e trágico, esse processo que arranca do final da Idade Média ocidental deu no que deu. Deu no que ainda (por quanto tempo?) nos submete.
Retornemos ao Brasil real, sim. Mas sem esquecer: nele, gentes como nós somos apenas a superfície rala, racionalista, iluminista, moderna, a superfície vagamente de esquerda, uma esquerda de tal modo minoritária e parcelada que me faz lembrar, sempre, o campesinato francês criticado por Marx, o ilusoriamente sujeito “autônomo” criado, em sua forma “moderna”, pela revolução que, sendo grande por cinco anos apenas, afinal deu em Napoleão I, o Grande (?) e, 36 anos após Waterloo, em Napoleão III, o Pequeno.
Voltar ao Brasil real e ao nosso peso político-eleitoral no país que conta é fazer como sempre: frustrar-se, criticar, reclamar, pedir por racionalidade histórica onde nem micro racionalidade existe, coisas que tais. Domingo, frustração gigantesca, multiplicado, seu caráter depressivo, pelo salto de qualidade no conjunto das ameaças que nos espreitam. A extrema direita se saiu muito bem. Nós, nem tanto, para ser comedido… Algumas das ameaças disso decorrentes se manifestarão com desfaçatez até dia 30. Outras, até 31 de dezembro. As mais perigosas, também não esquecer, sobretudo a partir do início do governo Lula 3.
Ao escrever governo Lula 3 já disse quase tudo: creio que venceremos no segundo turno. A margem da vitória, porém, não será espetacular. Pode até mesmo ser vitória no fio da navalha, como a de Dilma Rousseff sobre Aécio Neves, mas vitória será. Depois, ganhar forças para assumir. Depois, assumir. Depois, governar, o executivo sob o comando de Lula cercado por dentro – a alta burocracia pouco tem de esquerdista – e por fora, o lado de fora encarnado pelo partido da ordem reacionário-progressiva que ontem ganhou vigor novo e ânimo ainda maior, partido que atua com arrogância manifesta tanto no Judiciário quanto no Legislativo, tanto na esfera militar quanto na econômica, tanto nos meios de comunicação quanto na esfera internacional em que a democracia entre tocquevilliana e social se esvai, tanto no âmbito teológico-político quanto no mundo do intelectual oportunista enquanto fabricante de idelogias que, sob a forma do novo, do Novo, inclusive, contrabandeia o arcaico, o proto-liberalismo.
As grandes dificuldades abrangem no essencial o desafio imediato, vencer dia 30 de outubro. Mas, bem pensadas em seu conjunto, o desafio de afastar Jair Bolsonaro da presidência não é o nosso teste maior. As mais perigosas conjunturas virão depois, e seu peso será permanente ao longo do próximo mandato presidencial, se não crescente. Viveremos sob ameaça letal de golpe – seu estilo de todo em aberto… – por ao menos quatro anos, isso se a democracia não descarrilar outra vez, ela mesma desde 2018 incalculavelmente fragilizada, 2018 sendo o momento mais trágico, até agora, do processo de esmagamento que, começado em junho de 2013, tem no bolsonarismo sua face completa, monstruosa.
Arrisco pensar que a democracia de 1988 já não tem qualquer condição de continuar a ser, para nós, espaço de avanço. Arrisco imaginar que a democracia, seja ela a “clássica”, liberal-representativa, seja ela a participativa, que imanta a imensa maior parte da esquerda brasileira, já se esgotou ou está próxima do ponto de exaustão. Perde a democracia seu sentido? Não, não, não. Ao contrário, o regime cobra importância maior ainda para nós, os que somos, sei que muitos sorrirão, “iluministas de esquerda”, “democratas roussauístas”, reformistas de todo gênero em maior ou menor grau, algumas poucas vezes revolucionários.
E, quando revolucionários, grupúsculos (ainda e até quando?) ou militantes constitutivos, em geral, das alas minoritárias de esquerda de todos os partidos reformistas. Como conjunto, para mim no (des)conforto problemático de quem não é militante, essa ala esquerda da esquerda no essencial parlamentar se encontra muito mais presa aos votos do coração histórico-materialista do que ao curso real do mundo geoeconômico e geopolítico contemporâneo. Como conjunto, seus integrantes parecem, no registro do imaginário, ainda em algo atados à segunda metade do século XIX europeu ou ao que foi o século XX até o advento do neoliberalismo.
Daí que, para mim, a democracia atual, nossa e sem adjetivos, se haja transmutado em espaço sobretudo defensivo. A correlação de forças real, estrutural, não modificável no curto prazo de quatro anos, está a nos dizer isso com todas as letras. Algumas delas foram usadas no domingo, ao se concluir o primeiro turno. Algumas falas das nossas grandes lideranças partidárias disseram isso também, em diversos tons. Estarão bem articulados, hoje, os fatos e as interpretações?
Mas a despeito disso, decerto os rumos que nos levam ao segundo turno estão aparentemente traçados. Não haverá modificação da estratégia que nos trouxe até aqui. Isso é realismo palmar. Mudar sensível e significativamente, agora, o rumo da campanha que opõe, em sua simplificação máxima, democratismo a autoritarismo, seria no limite, creio, insano. Fora dele, arriscadíssimo.
Enfim, M., continuemos nosso diálogo e nossa faina. Cada um fazendo o pouco que pode, seja como militante, seja como simples cidadão ou cidadã, para confirmar o que me parece estar assentado na dinâmica eleitoral da realidade efetiva: a frustração de ontem bem pode se tornar inimaginável alegria, quatro semanas mais.
O difícil, o difícil mesmo, vem depois. Mas como o depois por definição vem em seguida, e como as consequências costumam seguir as causas, e como quem sai na frente chega primeiro, agora do que se trata é de barrar Jair Bolsonaro para só então de fato poder combater com um mínimo de condições a ameaça da selvageria sem limites, o casamento do paleo-liberalismo travestido em neo com o neofascismo travestido em movimento ético-moral, há que rir, de “cidadãos de bem”.
*Tadeu Valadares é embaixador aposentado.