Por JOSÉ RAIMUNDO TRINDADE*
A defesa primitiva dos “economistas vulgares” ao dogma das metas inflacionárias e da independência do Banco Central
O atual debate colocado no Brasil sobre os juros e o papel do Banco Central nos parece colonial, e tem nas chamadas “ciências econômicas” diversas interpretações, sendo que parcela delas, especialmente aquelas que se coadunam com as teorias do campo de domínio teórico chamadas de “neoclássicas”, são baseadas na linearidade da lógica formal da interação entre os juros e o comportamento dos demais preços da economia, aspecto que explica a defesa primitiva desses “economistas vulgares” ao dogma das metas inflacionárias e da independência do Banco Central.
Neste texto busco tratar essas questões desde um aporte teórico muito diferente, me utilizarei da teoria marxista para tratar do significado político e a disputa social que se estabelece no sistema de crédito, para mostrar dos equívocos e da impossibilidade de um Banco Central independente e os graves impactos sociais dessa falácia, sendo que primeiramente, temos que falar do Estado e de algumas de suas instituições.
O Estado é a forma mais moderna de gestão de grupamentos humanos, socialmente organizados em grande escala. Assim, sociedades de milhões de indivíduos requerem um organismo centralizador e planejador, uma necessidade intrínseca frente a lógica agregadora e urbanizadora que impulsiona o capitalismo, sendo que noções de não-Estado são primitivas e não racionais.
A Secretaria do Tesouro Nacional (STN), a Receita Federal (RF) e o Banco Central (Bacen) correspondem ao hard core do Estado enquanto capitalista coletivo ideal. Essas três instituições formam o núcleo mais coeso do Estado moderno em torno dos interesses da classe capitalista, respectivamente responsáveis pela gestão do sistema de crédito monetário, pelo sistema da dívida estatal, renda fiscal e coleta tributária.
A Secretaria do Tesouro Nacional constitui o agente centralizador de riqueza do Estado, todos os pagamentos fiscais ao Estado são feitos sob a forma de depósitos ao Tesouro, o mesmo se dá com as despesas, somente o STN pode emitir as ordens de pagamentos, temos aqui um dos nexos centrais do poder administrativo do fundo público.
A Receita Federal compõe o sistema administrativo da arrecadação de tributos. Parcela considerável da riqueza liquida produzida pela sociedade é digerida pelo Estado, sendo que em sociedades periféricas, como a brasileira, parcela considerável dos tributos são parte da superexploração da força de trabalho, espoliação dos salários e ganhos mínimos dos trabalhadores, visível na maior regressividade tributária do planeta.
O Brasil não é somente a sociedade mais desigual do planeta, é a mais concentradora de riquezas sem nenhuma tributação, o Estado brasileiro é sustentado pelo andar de baixo, enquanto os senhores de cima se arregalam e ganham como abutres.
Por fim, toda arrecadação e “dinheiro” (massa monetária) arrecadada pela Receita Federal e recebida pelo Tesouro Nacional é depositada em conta especial no Banco Central. Assim, não há como pensar um Banco Central independente, somente isso seria possível se o Tesouro Nacional não mais depositasse no Banco Central e a capacidade de existência monetária da nação (moeda de conta), não existisse. A única forma de fazer isso seria abdicando da soberania nacional e o Estado brasileiro passaria a ser uma colônia total do império estadunidense, o potencial emissor monetário e controlador do sistema de crédito brasileiro.
A ortodoxia econômica neoclássica não consegue observar a íntima e central ligação entre o Banco Central, a Receita Federal e a Secretaria do Tesouro Nacional, não somente na interação de instituições controladoras do regime fiscal e do sistema de crédito nacional, mas como organismos que somente funcionam interligados e a separação dos mesmos cria a esquizofrenia das relações entre políticas monetárias e fiscais, algo muito visível no atual momento.
A intervenção do Banco Central e as funções do Tesouro Nacional e da Receita Federal, principalmente a interação entre as emissões de títulos e as políticas de compra e recompra dos mesmos, são os principais mecanismos de gestão e interação de organismos que não podem viver separados. O Banco Central, para que não sirva somente aos interesses do empresariado (capital), requer seu controle social e sua interligação com os demais compartimentos de poder estatal, ou seja, a lógica do sistema estatal na sua totalidade que integra as três almas do Estado capitalista: a Receita Federal (RF), o Banco Central (BC) e o Tesouro Nacional (STN).
A eficácia da intervenção da autoridade monetária depende da capacidade de ação do Banco Central na centralização do sistema bancário, na sua interação coordenada sobre o sistema de crédito. Assim, pensá-lo independente dos outros componentes do Estado, sugere a esquizofrenia necessária aos ganhos corruptos da especulação e um completo descontrole das relações monetárias: a moeda é violência social, mas também é contrato social.
Convém observar que o caráter específico do crédito relaciona-se aos movimentos e à forma de gestão do capital de empréstimo, portanto a política de gestão e controle do Banco Central são elementos centrais de políticas creditícias, porém a gestão sobre o capital de empréstimo é mais bem compreendida se for estudada como “arte política”, dotada de instrumentos internos ao sistema de crédito e não como fatores exógenos de controle ou modelos matemáticos, o Banco Central é um ente político, parte do Estado e não um sofisma de neutralidade.
A funcionalidade de uma autoridade monetária é sempre bastante restrita. Como lembrou Karl Marx de forma profética: “o poder do Banco Central começa onde termina o dos bancos privados”, o que implica que o Banco Central tem poder de ação limitado, tanto pelas condições reais do ciclo de acumulação que determina as reservas monetárias originais quanto pela massa de valores fictícios que influenciam o sistema e aumentam a sua inerente instabilidade. Isso em função da expansão do crédito especulativo e do possível impacto que uma desvalorização generalizada desses títulos poderá provocar na acumulação real, o que torna o controle social sobre o Banco Central uma necessidade ainda mais imperiosa, tornando esse sofisma da independência algo mais que absurdo, uma lógica tirânica e antidemocrática burguesa.
O sistema de crédito desenvolvido e o moderno mercado de capitais concentram as forças de convergência e divergência dos capitais múltiplos, requerendo um nível de controle que se dá mediante o Estado, por meio das suas funções monetárias e fiscais presente na interação entre o Banco Central, a Receita Federal e a Secretaria do Tesouro Nacional. A relação entre “gestão estatal” do dinheiro de crédito e sistema bancário, inscrito no sistema de crédito, corresponde por um lado à centralização do financiamento e por outro a uma concentração da gestão da moeda de pagamento em escala nacional, sendo que a moeda como relação social é uma condição de Estado, não podendo ser entregue aos diversos interesses privados, no limite da desordem e do caos social, o que implica que o Banco Central não pode ser privado ou independente como os charlatães neoclássicos querem.
Por fim os regramentos sociais da condição caótica neoliberal são visíveis em quatro aspectos, que podemos ressaltar: (i) o enorme valor de riqueza transferida do poder público para interesses privados. Assim, nos últimos vinte anos, o Estado brasileiro pagou de juros e transferiu de riqueza (dados disponíveis na página da Secretaria do Tesouro Nacional), mais de cinco trilhões de reais para pagamentos de juros e serviços da dívida pública; (ii) a chamada independência do Banco Central é uma ilogicidade em termos, uma entidade única, como o Estado, tem uma de suas partes segregada somente aos interesses de um segmento capitalista, o setor financeiro; (iii) a taxa de juros que responde a uma parte do lucro médio auferido pelos capitalistas se torna uma anomalia autonomizada, o que descoordena a economia e paralisa o padrão de crescimento capitalista; (iv) o empobrecimento da sociedade brasileira se torna reflexo da crescente financeirização econômica. No limite a soberania e a própria existência nacional se colocará em questão.
A lógica de um Banco Central dito “independente” se relaciona ao aprofundamento da dependência brasileira e a crescente transferência de riquezas do povo brasileiro para segmentos expropriadores nacionais e internacionais, assim o volume de juros pagos e expropriados do povo brasileiro é crescente, somente no último balanço do Banco Central temos o registro de mais de 448 bilhões de reais pagos em juros no ano de 2021 (5% do PIB brasileiro), esse volume de recursos podemos denominar teoricamente de Renda de Desapropriação de Economia Dependente (RDED), favorecendo os setores rentistas do capital ao nível global e deteriorando as condições básicas de vida do povo brasileiro.
A lógica desse debate já denominamos de “Dependência Fiscal”, como pode ser lido em texto já aqui publicado, romper com essa lógica será a única forma de alcançarmos uma sociedade soberana, o tempo civilizacional nos espera, ou a barbárie será inevitável!
*José Raimundo Trindade é professor do Instituto de Ciências Sociais Aplicadas da UFPA. Autor, entre outros livros, de Crítica da economia política da dívida pública e do sistema de crédito capitalista: uma abordagem marxista (CRV).
O site A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
Clique aqui e veja como