Chuvas de verão

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Por MARIAROSARIA FABRIS*

Considerações sobre o filme de Carlos Diegues

São casas simples, com cadeiras na calçada

E com Afonso – funcionário de um escritório ou de uma repartição no centro do Rio de Janeiro, o qual, ao aposentar-se, conduz os espectadores ao bairro onde mora – que se inicia Chuvas de verão (1977), de Carlos Diegues. É interessante notar, desde o início, que a câmera permanecerá quase o tempo inteiro colada no protagonista e que será por meio dele, seguindo seu olhar ou seu perambular, que ela adentrará janelas e portas, levando-nos a descobrir aspectos da vida no subúrbio carioca, num procedimento muito próximo ao pedinamento (ato de ficar no encalço), apregoado por Cesare Zavattini, roteirista de Umberto D (Umberto D, 1951).

Esse filme, dirigido por Vittorio De Sica, um dos mais conhecidos a abordar as agruras de um aposentado, é a provável fonte de inspiração para Diegues, embora sua leitura da velhice seja em chave diferente. Em Chuvas de verão, a câmera fica no encalço do protagonista e dos demais personagens e, às vezes, parece movimentar-se a partir do contato com a realidade circundante, numa tentativa constante de conhecer o outro, do qual, frequentemente, só vemos a superfície.

No prólogo e na sequência inicial do filme, a situação já está dada. Temos a festinha de despedida dos colegas, com duas jovens assanhadas a especular se Afonso ainda é “um coroa enxuto” ou se “já passou da idade, não oferece mais perigo”; o saguão da estação Dom Pedro II (Central do Brasil) e o trem em que uma moça, que se virou para ver quem estava atrás dela, ao deparar-se com nosso protagonista, se tranquiliza diante de seu aspecto de senhor idoso; as ruas típicas de um bairro suburbano que o aposentado cruza até chegar a uma casa simples, de onde, antes de entrar, grita para o vizinho que mora em frente “Nunca mais vou tirar o pijama, seu Lourenço”, sacudindo a pasta vazia; a caneta de ouro (o prêmio por sua dedicação ao trabalho) que mostra ao retrato da falecida esposa sobre a cômoda; o passeio, já de pijama, pelas ruas da vizinhança, quando confessa a seu Lourenço não ter-se aposentado antes por medo da mulher; a comemoração que os vizinhos preparam em sua homenagem, à qual comparecerá também sua filha Dodora, acompanhada pelo marido, Geraldo, que “mexe com a Bolsa de Valores”; o olhar de Afonso para Isaura, a vizinha que surge de branco, como uma aparição, para dar-lhe os parabéns; Lurdinha, sua empregada, que lhe pede para esconder o noivo, Honório (vulgo Lacraia), procurado pela polícia; Sanhaço, o amigo operário, que lhe conserta a torneira da cozinha de graça, enquanto lembra de um samba que compôs sobre Lacraia e que Juraci, o malandro do pedaço, vendeu a outro “compositor”.

Assim, sabemos rapidamente que Afonso é um senhor de idade, viúvo, que, aparentemente, não “oferece mais perigo”, mas que espicha o olho para a vizinha, o qual, ao aposentar-se, tendo trancado outros sonhos no fundo de uma gaveta, tem planos de virar só um espectador da vida: a cadeira que ele instala na calçada, na frente da porta de casa, simboliza bem essa postura. Ele é muito querido pela vizinhança, com quem se dá bem, e mora num bairro de subúrbio em que a solidariedade ainda tem valor para seus habitantes, todos gente boa, trabalhadora, embora no meio deles sempre haja um ou outro aproveitador.

O tema central de Chuvas de verão, a velhice, vem entremeado de algumas subtramas que iluminam o caráter de Afonso, traçam um painel do microcosmo focalizado (e, por tabela, do macro também) e revelam as intenções do diretor. Na revista Cinemais, José Carlos Avellar já havia assinalado como, a partir dos anos 1970, a “construção do espetáculo” fosse bastante parecida em vários filmes do cineasta, graças à “inserção de uma série de personagens secundários que têm uma presença muito forte”. É isso que ocorre na obra em tela, se pensarmos no destaque dado às histórias de seu Lourenço, de Dona Helô e de Virgínia, principalmente.

Segundo declaração do próprio Carlos Diegues à Cinemais: “Meus filmes são livros de contos, são uma sucessão de contos amarrados através de uma estrutura. […] Meus filmes partem de estruturas […] muito simples, de uma fragilidade enorme, que são complementadas por essas pequenas referências exteriores que, às vezes, até correm o risco de virar ornamento”.

Em Chuvas de verão, isso não chega a acontecer; entretanto, o filme quase corre esse risco,[1] nos dois momentos em que extrapola o universo do subúrbio – nas sequências do teatro de variedades e do apartamento em que Geraldo é flagrado pela mulher. O que “justifica” os dois episódios dentro da estrutura fílmica é a intenção do autor de alargar o horizonte retratado para, por contraste, exaltar os valores positivos do entorno do protagonista.

Vida comprida, estrada alongada

É interessante observar que o filme foi rodado em 1977 e lançado no ano seguinte, ou seja, num período anterior ao do surgimento entre nós do conceito de terceira idade,[2] que se deu na década de 1980, tendo se popularizado no início do decênio seguinte. Esse dado é importante, porque já na época em que o diretor realizou sua obra, o envelhecimento era encarado como um fato extremamente problemático dos pontos de vista subjetivo e social.

A adoção de algumas ações positivas com relação à velhice e de eufemismos para designá-la, na sociedade hodierna, nem sempre diminui o desalento de quem atinge essa fase da vida, mesmo quando se trata de pessoas de surpreendente “longevidade intelectual”.[3]. Como confessou o jurista e filósofo italiano Norberto Bobbio: “Tenho uma velhice melancólica, a melancolia subentendida como a consciência do não-realizado e do não mais realizável. A imagem da vida corresponde a uma estrada cujo fim sempre se desloca para [a] frente, e quando acreditamos tê-lo atingido, não era aquele que imagináramos como definitivo. A velhice passa a ser então o momento em que temos plena consciência de que o caminho não apenas não está cumprido, mas também não há mais tempo para cumpri-lo, e devemos renunciar à realização da última etapa”.

Se, no passado, como escreveu o filósofo e orador romano Cícero, aceitava-se que a “vida segue um curso muito preciso e a natureza dota cada idade de qualidades próprias”, tendo cabido à última delas “a sabedoria, a clarividência e o discernimento”; se a velhice, considerada “a cena final dessa peça que constitui a existência”, era coroada pela ascendência natural que o ancião (sobretudo quando possuía um passado exemplar) exercia sobre seus familiares e sua comunidade, com o esgarçar-se dos laços que outrora uniam as gerações, a sociedade atual, como salientou Benedito Nunes: “rompeu esse liame, desvalorizou o saber de experiência, corroeu a memória coletiva, desvalorizou a lembrança; portanto, desapossou a velhice de seu dom à sociedade e à cultura. Da natural condição de sobrevivente de uma geração que ele é, […] o homem idoso, porque improdutivo […] passa, acobertado pela etiqueta clínica da ‘terceira idade’, ao anonimato dos excluídos sem voz” (reportado por Vera Maria Tietzmann Silva).

Apesar dessa variação ditada por fatores culturais e/ou econômicos, o que importa é que, pressionada por uma sociedade em que o ser humano só tem valor quando produz bens rentáveis, como denunciava também Simone de Beauvoir em seu ensaio A velhice (1970), uma pessoa, ao atingir essa etapa da vida, além de sentir-se um peso morto, parece ter renunciado a aspirações, sonhos, desejos, a um futuro, poderíamos dizer.

É sobre essa questão que se debruça Cacá Diegues,[4] mais especificamente sobre a relação do idoso com seu corpo, sua libido. E, fato ainda mais surpreendente para aqueles anos, o filme focaliza o desejo feminino na velhice.[5] Em Chuvas de verão, são três as mulheres de terceira idade a serem enfocadas para representar essa questão: Isaura, atraída pelo vizinho, com sua pulsão sufocada pela pressão social e pelos laços familiares; Dona Helô, obrigada a renunciar ao sexo por imposição de seu marido Abelardo, amigo de Afonso, a qual confessa a este que ainda tem “sonhos de muita porcaria, muita perdição, muita sujeira”; Virgínia Diniz, a atriz dramática/vedete, que paga por ter a coragem de seguir seus impulsos ao lado do jovem Paulinho (filho de Abelardo e Helô).

Em contraposição a esses corpos mortificados pela idade está o corpo jovem de Lurdinha, que dá plena vazão à sua sexualidade com o namorado, espiada por Afonso, o qual, ao ver os dois jovens entrelaçados, sente o desejo avolumar-se e, humilhado, refugia-se em seu quarto para consumar seu ato solitário. Porque, para o homem também, o sexo tinha uma idade, sem que ele fosse acusado de assanhamento extemporâneo.[6]. Abelardo, aos 60 anos, para garantir uma vida longa e saudável renunciou à união carnal e passa os dias pendurado no telefone para saber se e como sobrevivem, em termos de saúde, seus contemporâneos; Lourenço esconde a trágica pedofilia que o acometeu atrás de sua máscara de palhaço triste em final de carreira; Afonso canaliza seu desejo nos olhares que lança à vizinha, que retribui, silenciosamente.

É esse o tabu que Chuvas de verão rompe, ao mostrar que, assim como os sentimentos, o sexo também ainda pulsa nessas pessoas para as quais a vida parece não reservar mais surpresas. E, na sequência mais poética do filme, o diretor finalmente faz acontecer o encontro entre Isaura e Afonso.

São coisas do momento, são chuvas de verão

Preocupada com o aposentado, que acabou de passar por alguns percalços (Juraci o denunciou por dar abrigo a Lacraia, mas Sanhaço livrou sua cara, enquanto Lourenço, para desviar a atenção da polícia do amigo, confessa que sequestrou, estuprou e matou uma menina), a vizinha toca a campainha. Isso acontece bem na hora em que Afonso está pedindo ao retrato da falecida que interceda para que a morte o leve, batendo com força em seu peito para fazer o coração estalar.

Seu coração, ao contrário, explodirá de felicidade ao receber Isaura. Para quebrar o gelo de uma conversa meio envergonhada, ele oferece-lhe cerveja, ela lê uns “versinhos”, talvez de sua autoria, e conta a própria vida (o noivo, a gravidez, o aborto, a dedicação às irmãs mais velhas, os dias de balconista de subúrbio), os dois dançam ao som de Caminhemos, cantada por Francisco Alves, o aposentado se gaba de saber agradar às damas, beija-a, declara seu desejo, mas a vizinha tenta escudar-se atrás de uma frase feita – “Nenhum de nós dois tem mais idade para o amor” –, ele torna a beijá-la. E então, no momento mais tocante do filme, de trás da cortina da sala, surgem dois corpos seminus, exibindo as marcas do tempo. No chão, despidos de qualquer pudor, mãos e braços se procuram, Isaura exclama “Nós podemos”, os dois se amam, enquanto chove lá fora.

As frases que eles trocaram antes do ato sexual adquirem um significado real e o filme atinge seu sentido pleno. À acanhada manifestação dos sentimentos e da libido de Isaura – “A vida não e como as águas do rio que passam sem descanso, nem como o sol que vai e volta sempre. A vida é uma chuva de verão, súbita e passageira, que se evapora ao cair” – Afonso respondeu com a impetuosidade de seu desejo: “Meu interesse pela senhora não nasceu logo assim que a senhora se mudou para o bairro. Ele cresceu devagar, dia a dia, como um riacho que engrossa sem que você perceba porque as chuvas estão caindo na nascente. De repente, vira inundação”. Se Afonso sentiu o prazer avolumar-se, Isaura deixou-se convencer de que tem de aproveitar essa nova chance que a vida está lhe dando: então, ambos dão vazão à sua vontade de gozo extremo.

Embora sem a mesma carga de sensualidade com que Zulmira se deixa possuir pela chuva em A falecida (1965), de Leon Hirszman,[7] a sequência de Afonso debaixo do aguaceiro, depois do amplexo, tem uma força erótica inquestionável. O que o aposentado comemora, ao entregar-se à água regeneradora, é a sexualidade não mais escondida e envergonhada, mas livre e desimpedida. É a semente da vida que tornou a jorrar em seu corpo mortificado pela idade e pelas restrições sociais. É o florescer de novas energias na senilidade, por mais efêmero e ilusório que esse momento possa ser. É a exaltação desse “verão” extemporâneo de sua existência.

Ao beber a água da chuva depois do amor, Afonso quer reter esse momento dentro de si para que não se esvaia rapidamente. A vida pode ser como as chuvas de verão, súbitas e passageiras, mas antes que as águas se evaporem, temos que entregar-nos a seu torvelinho, não importa quando, não importa como, não importa o preço a pagar, parece nos dizer o filme. Senão, restará a amarga constatação de Dona Helô, que acha que se estrepou na vida, ao renunciar à sua desejada carreira de concertista.

Este sonho que eu sonho desde que eu sonho

Esse é o segundo tema que Chuvas de verão aborda, o dos desejos ocultos, das aspirações que são deixadas de lado pelo pragmatismo do dia a dia, por imposições sociais ou familiares, e que acabam gerando conflitos e frustrações. É aqui que o filme alarga seu espectro, ao focalizar não só os habitantes do subúrbio, como Sanhaço, que almejava ser jogador de futebol (chegou a ser reserva do Bangu), talvez sambista, e é um operário, mas também Geraldo, morador da zona sul, aparentemente bem-sucedido na vida e bem casado, mas que, sob sua arrogância, escondia uma pulsão homossexual.

Para o cineasta (conforme referido por Sérvulo Siqueira): “Este é um filme sobre as pessoas que não vivem aquela vida que na verdade gostariam de ter vivido. Em princípio ia se chamar Duas vidas: aquela vida que você é obrigado a viver, ou por razões fortes, ou por pressão social ou então em virtude da própria realidade; e uma outra vida que, ou você vive secretamente, ou simplesmente não vive por questões de repressão social ou por razões internas mesmo. E o filme é sobre como é fácil explorar esta contradição e muitas vezes assumir um certo radicalismo. Então este não é um filme decadente porque se alguns personagens não resolvem esta contradição outros a resolvem. Este é um filme otimista”.

Apesar da opinião de seu realizador, em Chuvas de verão, há certo pessimismo – ou, ao menos, certa melancolia – com relação ao que cada um de nós faz da própria vida, um pessimismo que se alastra de um microcosmo para a sociedade como um todo, do subúrbio para os bairros mais nobres da cidade: se em Marechal Hermes se escondem o desvio comportamental de Lourenço, os pequenos ou grandes sonhos de Afonso, Isaura, Helô, Sanhaço e tantos outros moradores do bairro, no centro e em Copacabana se revelam a frustração de Dodora, a tendência sexual de Geraldo, a verdadeira face de Virgínia Diniz, ex-atriz dramática para os conhecidos suburbanos, vedete decadente em sua realidade de todas as noites.

Uma visão um pouco romântica da Zona Norte carioca, que tem suas raízes tanto no proto-Cinema Novo,[8] quanto na própria vivência de Carlos Diegues, que passou sua adolescência no Botafogo, um enclave da Zona Sul, mas que, em suas próprias palavras (no depoimento que integra o vídeo), “na época, era um bairro quase suburbano, pelo menos de características suburbanas”.

Em dois filmes cinemanovistas – Boca de ouro (1962), de Nelson Pereira dos Santos, e o já citado A falecida –, paradigmáticos enquanto crônicas da vida suburbana carioca, é lançado um olhar mais crítico sobre aquela realidade. Segundo Ismail Xavier, no primeiro, com a opção por uma visada humanista, “a violência notória não apaga um toque de inocência no rosto dos atores […], figuras que permitem flagrar um Brasil, ou uma representação dele, antes do azedamento de 1964 e do duro aprendizado da violência no novo ciclo da modernização conservadora”, enquanto o segundo pertence àquele “conjunto de filmes brasileiros desencantados, feitos no período 1965-70, em que há nítido empenho em entender melhor a mentalidade daquelas camadas da população das quais se esperava outro comportamento na crise política então vivida”.

Em Chuvas de verão, embora a experiência pessoal esteja na origem da afetividade com que o diretor se debruça sobre esse universo, não podemos esquecer que a Central do Brasil – como divisor de águas entre a cidade rica e o subúrbio para o qual foram sendo empurradas as classes cada vez menos favorecidas à medida que o Rio de Janeiro se modernizava – se tornou um símbolo em nossa cinematografia, ao menos dos anos 1950 em diante. Um processo que o filme não deixa de mostrar, não só ao lembrar a futura desapropriação da casa de Afonso para a construção de um viaduto, mas ao confrontar as moradias erguidas quando da fundação do bairro com os mais recentes conjuntos habitacionais, como aquele em que reside a família de Lacraia, verdadeiras favelas verticais.

A solidão a gente cura se interessando pelo outro

Essa não é a única crítica implícita às questões sociais da época, presente no filme. Como o narrador escolheu ser um personagem no meio de seus personagens, essa crítica, contudo, não é contundente. Afonso respeita a lei, mas, ao mesmo tempo, dá guarida a Lacraia (sobre cuja extração social não pairam dúvidas) e se recusa a colaborar com a polícia. Quando Juraci comenta que se trata de um bandido perigoso, o aposentado retruca que para ele um marginal morto é apenas uma criança suja de sangue.

Devemos ressaltar que esse episódio, além de confirmar o bom caráter de Afonso, traz à lembrança a disparidade entre o crime cometido e a penalidade aplicada, desde o fim dos anos 1950, pela polícia carioca, principalmente na década seguinte, com o surgimento dos esquadrões da morte[9]. Aqui se juntam duas temáticas caras a nosso cinema nos anos 1950-1960, especialmente: o conúbio entre o marginal e o trabalhador contra a opressão da classe dominante e do governo, e a solidariedade intraclasse. É claro que aqueles ainda eram anos em que podia vigorar uma visão mais idealizada do fora da lei, que irá se apagando progressivamente com a escalada do tráfico de drogas e a consequente violência que ele acarretou. Afinal, Lacraia podia ser um assaltante, mas não deixa de horrorizar-se ao pensar no que seu Lourenço possa ter feito à criança sequestrada.

E se Afonso não trairá a confiança que nele depositaram Honório e Lurdinha, será Sanhaço a levar adiante a bandeira da solidariedade, não só ao ajudar o vizinho a safar-se da polícia, mas principalmente ao transformar-se no depositário de todos os valores em que sua gente acredita: a sequência final do filme é bastante significativa nesse sentido. Enquanto o aposentado está entrando em casa com os funcionários da prefeitura para tratar da desapropriação, o operário, na calçada em frente (acompanhado de um dos filhos), o chama e os dois se cumprimentam. E a câmera deixa de vez Afonso e passa a seguir Sanhaço (com o filho), o qual, depois de ter alcançado a esposa e mais três crianças, se encaminha com todos eles pela mesma rua que vimos Afonso percorrer ao voltar de seu último dia de trabalho.

É uma cena bucólica, em plano fechado, perpassada por uma suave melancolia, ainda mais acentuada pelo chorinho que a acompanha, e com certo ar de saudosismo diante de um universo destinado a desaparecer com o avanço da modernização, mas cujos valores primordiais poderão subsistir até que tiver gente disposta a acreditar neles. Gente simples, cujos anseios frequentemente são frustrados, mas que não perde a esperança em dias melhores e, com ela, a alegria de viver. Esse final, do qual o filme extrai mais uma vez sua poeticidade, assinala também seus limites.

Caminhemos, talvez nos vejamos depois

Chuvas de verão pode ser considerado a tradução em imagens da canção Gente humilde (de Garoto, Vinícius de Morais e Chico Buarque), uma versão mais desencantada, sob certos aspectos, mas igualmente poética. No depoimento que integra o vídeo, Carlos Diegues revela sentimentos opostos em relação a sua obra. Se, de um lado – ao ressaltar que Chuvas de verão foi dedicado a seus filhos, crianças naquela época –, esclarece que o fez “porque eu acho que um filme sobre as pessoas que não souberam viver suas vidas deve ser uma lição para aqueles que ainda vão viver as suas”, de outro, apresenta uma leitura otimista: “De qualquer maneira não é um filme negativo, no sentido de dizer que a vida não vale a pena, não, pelo contrário, tanto que o personagem principal deste filme encontra a felicidade, compreende finalmente os seus sentimentos, o sentido da sua vida, exatamente quando ela está no fim. Ou seja, mesmo que a gente esteja pra morrer, ainda está vivo e, enquanto está vivo, sempre vale a pena”.

Em que pese a segunda leitura de seu realizador, o que resta ao final é certo desalento. De um lado, o diretor dribla um declarado final feliz entre Isaura e Afonso, pois não há indícios de que levarão adiante sua história, depois de sua brevíssima estação de amor, principalmente porque o aposentado terá sua casa desapropriada. Não que isso importe ou mude o que os dois viveram juntos e a própria moral da obra. Como em outros episódios, porém, passa a sensação de que a esses personagens foram oferecidas apenas migalhas e é com elas que devem contentar-se. Disso deriva aquele tom menor, típico da crônica, mas que é também o tom em que transcorreu a vida das pessoas retratadas. No fundo, apesar dos momentos de exaltação, a constatação diante dessa obra de Cacá Diegues não é diferente da que se tem diante de outras obras cinemanovistas sobre a Zona Norte. Só que seus personagens parecem mais derrotados, mais aprisionados pelo subúrbio.

O final de Boca de ouro, ao contrário, aponta para uma possibilidade de saída, ao revelar “o horizonte de uma agitação urbana que segue seu curso”, o que poderia significar que Nelson Pereira dos Santos terminou “o filme com um tímido aceno para um futuro distinto e talvez mais promissor na cidade que oferece outros canais de experiência”, nas palavras de Ismail Xavier. A falta de perspectivas domina também em A falecida: nessa obra, porém, embora procure explicitar “uma situação social com suas contradições internas, nas quais os personagens se debatem sem grande noção das circunstâncias que os movem”, Leon Hirszman, no final das contas, parece condoer-se de Zulmira e do marido, vendo neles “duas vítimas de um processo adiantado, e no fundo letal, de alienação. Suas vidas de pouco valem, na medida em que eles não têm qualquer controle sobre elas”, como assinalou Luiz Zanin Oricchio.

Carlos Diegues, porém, apesar de procurar promover o resgate dos valores populares do subúrbio, apesar de querer mostrar o outro lado da moeda, isto é, uma pequena burguesia solidária e não perdida em seus pequenos vícios e mesquinharias, o faz guiado antes pelo senso comum, por um vago humanismo[10] não muito diferente do zavattiniano,[11] sem abrir novas perspectivas para seus personagens, nem criticar o meio social em que lhes foi dado viver, fazendo do pano de fundo um mero cenário de seu filme. Ao privar seus personagens de uma dimensão mais histórica e/ou mais ideológica, o diretor oferece-lhes apenas uma segunda chance sentimental, enquanto parece condená-los a ficarem socialmente imobilizados dentro daqueles limites impostos pela linha do trem.

*Mariarosaria Fabris é professora aposentada do Departamento de Letras Modernas da FFLCH-USP. Autora, dentre outros livros, de Nelson Pereira dos Santos: um olhar neo-realista? (Edusp). [https://amzn.to/3PYm91L]

Versão revista de “Gente humilde”, texto publicado na Revista Científica/FAP, v. 6, jul.-dez. 2010.

Referências


BEAUVOIR, Simone de. A velhice. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.

BOBBIO, Norberto. O tempo da memória: de senectute e outros escritos autobiográficos. Rio de Janeiro: Campus, 1997.

CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1991 (verbetes água e chuva).

CÍCERO, Marco Túlio. Saber envelhecer seguido de A amizade. Porto Alegre: L&PM, 2009 [a obra data de 44 a.C.].

DIEGUES, Carlos. Chuvas de verão. Rio de Janeiro: Globovídeo, s.d. [o depoimento do diretor integra o vídeo].

________. “Conceição a 40 graus. Carnavalização, a lógica do espetáculo e a palavra-chave do Século 20”. Cinemais, Rio de Janeiro, n?.17, maio-jun. 1999 [conversa com José Carlos Avellar, Geraldo Sarno, José Antônio Pinheiro e Ivana Bentes].

MOURA, Mariluce. “O poder dos velhos” (jul. 2009). Disponível no site Pesquisa FAPESP – online.

ORICCHIO, Luiz Zanin. “Uma visão política do subúrbio carioca”. O Estado de S. Paulo, 17 jan. 2010.

SÈVE, Lucien. “Por uma terceira idade ativa”. Le Monde Diplomatique Brasil, São Paulo, ano III, 30, jan. 2010.

SILVA, Vera Maria Tietzmann. “Lendo sobre a velhice: resenha”. Revista da UFG, Goiânia, ano V, n. 2, dez. 2003. Disponível no site www.proec.ufg.br.

SIQUEIRA, Sérvulo. “Cinco dias de realidade suburbana”. O Globo, Rio de Janeiro, 28 jun. 1977.

VENTURA, Zuenir. Cidade partida. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

XAVIER, Ismail. O olhar e a cena: melodrama, Hollywood, Cinema Novo, Nelson Rodrigues. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.

Notas


[1] Além de quase perder-se em algumas subtramas, o filme peca em vários momentos pela falta de ritmo e apresenta interpretações irregulares ao lado de bons desempenhos.

[2] Para a geriatria, a terceira idade começa a partir dos 75 anos, enquanto a Organização Mundial da Saúde estabelece uma variação baseada em fatores culturais e/ou econômicos, classificando como idosas as pessoas com mais de 65 anos, em países desenvolvidos, e com mais de 60, naqueles em desenvolvimento. Se, no início deste século, pessoas com mais de 60 anos constituíam 10% da população mundial e essa percentagem está se encaminhando para os 22% em 2050, não podemos esquecer que, dez lustros atrás, no Brasil, a expectativa de vida era de 30 anos e, mesmo nos Estados Unidos, não passava dos 50 (Mariluce Moura).

[3] Na opinião de Lucien Sève, uma pessoa de “formação de alto nível, renovação sempre cheia de motivações, capacidade e atividades, além da progressiva conquista de autonomia em relação ao mundo e a si mesmo” teria assegurada uma “longevidade criativa”. Segundo o filósofo francês, o desafio da sociedade contemporânea seria tornar isso regra, ou seja, como dizia Karl Marx “formar as circunstâncias humanamente” para todos.

[4] Como se pode deduzir de uma entrevista concedida a Siqueira, na época do filme, o pensamento de Diegues converge com o da escritora francesa e do intelectual brasileiro: “Você já reparou que com a eclosão – a partir dos anos 60 – da contestação e reivindicação das minorias sexuais, políticas e sociais, não apareceu ainda uma no sentido etário. Existe o gaypower mas não existe o old power. E muito estranho isto. E no entanto as pessoas de idade são interessantíssimas. São pessoas que viveram experiências que a gente não viveu. Eu sei que estou dizendo uma coisa óbvia, mas é verdade. Em geral, as pessoas velhas são condenadas pelos jovens e pelo próprio sistema a um imobilismo social e a uma inatividade sexual. E este filme – eu não vou dizer que é sobre isto – mas possui este aspecto de que as pessoas de idade não são isso. Existe esta lenda do jovem como revolucionário e do velho como reacionário. Isto é um maniqueísmo absurdo. Muitas vezes você encontra pessoas de idade que são extremamente mais revolucionárias que certos jovens de hoje. Então o filme tem este aspecto – uma espécie de interrogação sobre a idade, não como a aproximação da morte mas como a permanência da vida num estágio mais tardio. A tendência da civilização católica capitalista é de que no momento em que o indivíduo não é mais produtivo para a sociedade ele passa a esperar a morte. Este filme é exatamente o contrário disto, no sentido de que os personagens velhos servem para uma demonstração oposta. Porque a vida termina quando você morre e não quando você começa a esperar a morte. Em geral a relação com a velhice aparece de um ponto de vista muito piedoso. A piedade pelo velho é uma coisa extremamente reacionária porque soa como uma forma de condenação, de marginalização. Eu não me apiedo pela velhice, estou tentando mostrar que não se pode condenar um indivíduo à morte social antes que ele morra”.

[5] Não podemos esquecer, contudo, que o feminismo dos anos 1970 fez da gestão do corpo da mulher uma de suas principais reivindicações.

[6] Para Cícero, “liberados da carne”, da tirania da volúpia – essa “deplorável paixão” –, os velhos deveriam cultivar os prazeres do espírito. Segundo o orador romano, os idosos não só não sentiam com a mesma intensidade “aquela espécie de cócegas que o prazer proporciona”, como não sofriam ao serem privados disso. Esse tipo de julgamento não parece ter mudado muito, se ainda hoje o público ri diante do intercurso carnal entre Afonso e Isaura em Chuvas de verão, como aconteceu durante a exibição do filme no MuBE (Museu Brasileiro da Escultura), em São Paulo, no dia 10 de dezembro de 2009, no âmbito do evento Conhecimento vivo, cujo objetivo era o de desenvolver atividades culturais ligadas ao tema da terceira idade e aos tabus do envelhecimento.

[7] Segundo Ismail Xavier: “Em A falecida, a presença da chuva como ocasião de gozo e autoerotismo é reveladora no percurso da protagonista, alcançando um valor estético ímpar: é cena antológica”

[8] Para exemplificar, bastaria lembrar dos dois primeiros longas-metragens de Nelson Pereira dos Santos, Rio, quarenta graus (1955) e Rio, Zona Norte (1957). Segundo Diegues (em Cinemais), o primeiro e a peça Orfeu da Conceição (1956), de Vinícius de Moraes, “foram uma descoberta muito grande, um momento fundador de uma série de coisas da minha vida”; o segundo, “um filme deslumbrante; […] uma obra prima; inclusive eu até plagiei em A grande cidade [1966]; tem lá muita coisa do filme do Nelson, fiz uma homenagem, vamos dizer”.

[9] Como lembra Zuenir Ventura, no fim dos anos 1950, surgiu o Serviço de Diligências Especiais, que contava em seus quadros com egressos da Polícia Especial do Estado Novo. A corporação podia adotar as “medidas drásticas” que julgasse necessárias para “limpar” a cidade do Rio de Janeiro da marginalidade. Era o início do Esquadrão da Morte, conhecido também como Turma da Pesada ou Homens de Ouro, do qual derivaria a Scuderie Le Cocq, liderada pelo delegado Milton Le Cocq de Oliveira.

[10] As palavras de Diegues (transcritas na Cinemais), ao refletir sobre seu Orfeu (1998-1999), poderiam ser aplicadas a Chuvas de verão: “Recuperar até certas palavras perdidas pelo excesso de disciplinas psicanalíticas, sociológicas e antropológicas etc., recuperar certas ideias como generosidade, compaixão (compaixão não no sentido de piedade: compaixão no sentido de solidariedade na trajetória do outro), ideias básicas da civilização ocidental, do cristianismo, do helenismo, da democracia moderna mas que estão sendo colocadas em segundo plano neste século seja pelas ideologias fechadas da primeira metade do século, seja por essa voracidade do lucro, essa voracidade do consumo, essa voracidade da ideia de que você pensar no outro é uma otarice – entende? Eu acho que essas ideias básicas são do mundo do espírito, e só a arte pode dar conta delas. São ideias que não têm luta de classes atrás delas, são ideias que não têm Édipo atrás delas, são ideias que não têm nenhum desses mecanismos de aprisionamento ideológico que foram inventados no século 19 para cá. Ou seja, eu acho que está na hora de um novo iluminismo espiritual, um neo-humanismo um pouco mais modesto, em que o homem não triunfa no fim, não triunfa no sentido do triunfalismo clássico, dos humanismos da sociedade sem classes, o céu quando você morrer, não. Um neo-humanismo modesto e não triunfalista em que talvez os defeitos humanos sejam a grandeza do homem como ser original do planeta. Isso… Só a arte pode dar conta disso; a política não dá conta disso; as ciências humanas não dão conta disso, só a arte dá conta disso, só a criação artística dá conta disso”.

[11] Conforme explicitado na nota anterior, Carlos Diegues, assim como Cesare Zavattini, está imbuído de um humanismo de matriz cristã, em que o interesse pelo próximo surge associado à compaixão. O humanismo marxista de Nelson Pereira dos Santos já aponta para um horizonte de resgate social. O rigor ideológico de Leon Hirszman, que elude armadilhas doutrinárias, faz de seu filme o mais político dos três.


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