Cinismo e falência da crítica

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Por VLADIMIR SAFATLE*

Prefácio do autor à segunda edição, recém-publicada

“É assim que o mundo acaba: não com um lamento, mas com uma paródia”.

Este livro foi publicado pela primeira vez em 2008. Quero acreditar que toda experiência de teoria crítica tem algo de sismografia. A escrita emerge de um lugar em que se sentem tendências que podem se tornar hegemônicas nos tempos subsequentes. O fato é que o mundo acelerou nesses últimos quinze anos. Acordos sociais que pareciam sólidos se desmancharam no ar, os antagonismos sociais se tornaram insuportavelmente evidentes.

Diante de um sistema de crises conexas que se estabiliza enquanto crise e ganha dimensão global (crise ecológica, demográfica, social, política, econômica, psíquica, epistêmica), o mundo assiste à consolidação de alternativas autoritárias que, em muitos casos, apoiam-se na história de movimentos fascistas nacionais, normalizando formas abertas de violência social que poderíamos julgar até há pouco improváveis.

Nesse horizonte de decomposição social, não foram poucas as análises que insistiram em procurar dar conta das dinâmicas de forte adesão popular a perspectivas fascistas e de extrema direita como expressões de alguma forma de déficit moral (discurso de ódio), psicológico (ressentimento, frustração) ou cognitivo (crença em fake news, negacionismo, obscurantismo). Em todos esses casos, era como se regressões viessem inviabilizar o funcionamento normal de nossas sociedades em momentos de crise e instabilidade.

Não faltaram aqueles e aquelas que acharam por bem reeditar o secular conflito da civilização contra a barbárie, das luzes contra a superstição. Melhor teria sido começar por se perguntar quanto de barbárie existe no interior da civilização e quanto de superstição é indissociável das luzes. Um pouco de dialética do esclarecimento nesses momentos faz bem e nos teria economizado muitas discussões pretensamente edificantes que só serviram para alimentar nossa ilusão de superioridade moral e intelectual enquanto as alternativas de transformação real foram, em larga medida, jogadas para fora do campo dos progressismos.

Ou seja, é muito mais cômodo imaginar que apoiadores de extrema direita são motivados, por exemplo, pelo ressentimento, pois isso nos reserva uma superioridade moral em relação a eles e garante que nossa indignação, por sua vez, nada teria de ressentimento. Ela seria justa, mesmo que impotente. No entanto, essas leituras que se apoiam na identificação de formas de déficit nos sujeitos que cerram fileiras com o fascismo e a extrema direita dizem, na verdade, muito mais sobre a maneira como o observador gostaria de se ver que sobre o objeto a ser descrito.

A hipótese deste livro passava por recusar tais leituras sobre a ascensão contemporânea do autoritarismo. As discussões sobre processos de racionalização social que operavam de forma “cínica” já tinham sido levantadas por outros autores. Mas este livro procurou mostrar que a normalização de tal patologia social era fenômeno importante para entender como dinâmicas autoritárias não eram fruto de “regressões” sociais, e sim resultados dos modos “normais” de funcionamento dos processos de socialização e individuação.

Ou seja, tratava-se de definir o problema da racionalidade cínica como um setor fundamental das teorias sobre o fascismo contemporâneo. Não era possível entender nada sobre a ascensão fascista em nossos tempos sem integrar o problema da generalização de modelos de racionalidade cínica.

Seria, então, o caso de lembrar como a tese da regressão social parte normalmente da crença na ressurgência de alguma forma de arcaísmo como condição para guinadas autoritárias dentro das sociedades de democracia liberal. Essa é uma tese alentadora, uma vez que parece garantir que as potencialidades de realização de formas democráticas de vida já estariam presentes em nossos processos de modernização social. Não haveria, pois, razão para criticá-los de forma estrutural.

Nesse sentido, a tese do cinismo parte, ao contrário, da constatação de que guinadas autoritárias no interior de sociedades de democracia liberal são um fenômeno “normal”. O dito “iliberalismo” é polo constituinte do liberalismo, não seu oposto. A questão real é outra, a saber: onde o liberalismo permite a emergência de seus “iliberalismos”? Em situações normais, eles aparecem em todo lugar em que estão autorizadas situações de exceção, estruturas duais de legislação, flexibilização de normas. Ou seja, normalmente em colônias, periferias e na violência contra grupos insurretos.

Mas em situação de crise estrutural, como vemos hoje, tais formas de autoritarismo se generalizam para toda a sociedade. Essa generalização é possível porque há uma matriz autoritária na própria constituição dos indivíduos da democracia liberal. Os indivíduos não são garantia de normalidade democrática. Eles não são a garantia de que vivemos em uma sociedade em que liberdades individuais são fundamentais, em que a tolerância à multiplicidade de interesses e modos de vida podem imperar.

Na verdade, os indivíduos são constituídos de forma a estar sempre abertos a discursos autoritários, a práticas de segregação, a estabilizações de violências e apagamentos. Isso foi o que procurei explicar neste livro por meio de uma ontogênese das capacidades prático-cognitivas dos sujeitos a partir do problema da racionalidade cínica.

Nesse sentido, seria o caso de lembrar que as discussões sobre o cinismo nos permitem melhor compreender os processos atuais de estabilização da decomposição social. Esse é um dos principais problemas de pesquisa que me impus desde então, a saber, entender como tal estabilização ocorre e quais são suas consequências. Uma das primeiras teses que defendi a esse respeito consistia em afirmar que, diante da explicitação da decomposição das promessas sociais de integração, da redução de tais promessas a mera aparência social, a sociedade entraria em uma dinâmica de funcionamento cínico cada vez mais generalizado.

Saint-Just costumava dizer: “Celui qui plaisante à la tête du gouvernement tend à la tyrannie” [esse que brinca à frente do governo tende à tirania]. Ou seja, nada mais autoritário que um poder que ri de si mesmo. Pois uma normatividade que funciona de forma cínica é aquela que traz em si mesma sua própria negação, a consciência de seu próprio impasse, a figura de sua própria crítica, sem que tal contradição lhe impeça de funcionar.

Isso significa que as pessoas são conscientes do caráter impotente das enunciações que elas mesmas sustentam, mas tais enunciados devem continuar a ser ditos, devem continuar a circular misturando seriedade e ironia, como se estivéssemos em uma situação de ironização absoluta das condutas. E não será por acaso descobrir que as figuras atuais de lideranças autoritárias são, em sua grande maioria, “cômicas”, “paródicas”.

Muitas delas vieram ou passaram longas temporadas no universo da comunicação de massa, como personagens que jogam deliberadamente com a caricatura e a estereotipia, que riem de si a todo momento, que nos fazem a todo instante duvidar se estão a falar a sério ou não. Pois a comicidade cínica é uma formação bem-sucedida de compromisso. Ela permite preservar comportamentos dos mais brutais ao mesmo tempo que abre uma distância possível entre enunciado e enunciador, entre discurso recebido e posição do receptor.

Longe de algo restrito aos modos de funcionamento dos discursos, tal fenômeno mostrava algo mais profundo; a saber, ele explicitava uma forma de estruturação psíquica dos sujeitos. Isso talvez ajude a entender por que Cinismo e falência da crítica era, à sua maneira, um primeiro acerto de contas com o que poderíamos chamar de “domesticação da teoria crítica”, a partir da segunda geração da dita escola de Frankfurt.

Pois se tratava de mostrar a inanidade de uma crítica baseada na identificação de contradições performativas, na crença de espectros de racionalidade comunicacional em circulação em algum lugar de nossos mundos da vida, como nos propunha Jürgen Habermas. Só era possível operar com tal horizonte restrito de crítica ignorando a generalização de modalidades de clivagens do eu e de novas formas hegemônicas de agenciamento de conflitos psíquicos que a racionalidade cínica explicitava muito bem.

Os sujeitos pressupostos pela racionalidade comunicacional – com suas unidades de personalidade, com sua coerência de condutas, com sua linguagem privatizada que poderia sujeitar-se ao alargamento do horizonte unitário de compreensão da consciência, de tradubitibilidade na linguagem pública – simplesmente não existem. Em seu lugar, o que encontramos são sujeitos que lidam com estruturas instáveis de clivagens do eu e que organizam suas condutas a partir da permanência de tais clivagens. São sujeitos capazes de “sustentar duas ideias opostas na cabeça e continuar funcionando”, como disse uma vez Scott Fitzgerald.

Por isso, foi questão de partir de uma análise da economia libidinal do capitalismo contemporâneo e seus regimes de subjetividade. Regimes esses que não agenciavam conflitos de forma tendencial a partir das dinâmicas da denegação neurótica, com suas divisões do aparelho psíquico em uma verdadeira topologia de espaços separados (consciente/ inconsciente, eu/isso/supereu etc.), mas dos desmentidos perversos tão claramente presentes em estruturas como o fetichismo.

Desmentidos que mostravam a perenidade de clivagens que se organizavam sem necessidade de recalque ou repressão. Clivagens que, por sua vez, operam não entre instâncias psíquicas, mas dentro do próprio eu. Situação essa que levava sujeitos a aprender a flexibilidade imanente das normas, o jogo contínuo com as figuras de uma consciência duplicada. Por isso, o cinismo é uma forma reativa e desesperada de estabilizar uma crise psíquica profunda, na qual as formas tradicionais de síntese psíquica, de individualidade e de identidade não têm mais a força de se impor.

Bem, alguém poderia acusar tal estratégia de pecar por “déficit sociológico”, como Axel Honneth fizera com Theodor Adorno. Muita psicanálise e pouca sociologia, em suma. De minha parte, sempre achei e continuo achando um déficit materialista fundamental não ser capaz de partir de modificações nos processos de socialização e individuação como base de funcionamento real da ideologia.

A tese do “déficit sociológico” apenas esconde como alguns não estão mais dispostos a se perguntar como o desenvolvimento paradoxal das estruturas psíquicas no interior das sociedades capitalistas faz dos indivíduos e suas personalidades espaços privilegiados para a fundamentação de estruturas autoritárias porque prontas a uma racionalidade cínica que é condição real do autoritarismo. Ou seja, esses estão a dormir uma espécie de sono antropológico acreditando ainda poderem pressupor indivíduos potencialmente unitários, autonomia imanente, personalidade estruturada e não contraditória, em que nada disso existe dessa forma.

Este projeto, em contraposição, foi articulado a um horizonte histórico de falência de certos regimes de crítica que pareciam nos guiar até então. O primeiro deles era a falência da crítica como desvelamento; crítica como explicitação das formas de produção da aparência. Explicitação essa mobilizada na esperança de que assim quebraríamos as dinâmicas de fascinação da falsa consciência.

Na ocasião em que apresentei essa tese pela primeira vez, eu não tinha a compreensão real do que tal falência significava. Hoje, seria o caso de partir da defesa de que a crítica da ideologia, para funcionar e não dizer respeito a uma forma de limitação cognitiva da consciência social a ser superada, de uma incapacidade de apreender corretamente a gênese de estruturas do pensamento, precisa de uma dupla fundamentação – a saber, um diagnóstico do sofrimento social e uma espécie de horizonte teológico-político.

De início, ela precisa partir da defesa de que as relações atuais de poder são produtoras de sofrimento. É isso que Karl Marx faz ao defender a crítica como escuta do sofrimento social, ao partir da alienação como saldo fundamental de socialização no capitalismo. Por isso a tópica da alienação não é mero resquício de uma antropologia filosófica hegelo-feuerbachiana, como gostaria Louis Althusser e os seus.

Ela é o eixo fundamental da organização da crítica social, já que permite a emergência da crítica a partir da escuta do sofrimento social: a única base concreta e real para a motivação à ação revolucionária. Nesse sentido, György Lukács é muito mais consequente ao construir o conceito de reificação como operador central do sofrimento social, além de resultado das dinâmicas de inversão ideológica.

A crítica da ideologia, porém, não precisa apenas de um diagnóstico de sofrimento social que leva os sujeitos a questionar as estruturas de pensar e reprodução institucional da sociedade que aparecem como “naturais”. Ela precisa, ainda, da defesa de uma transformação possível do proletariado em força ofensiva contra o capital, e isso exige uma autocompreensão do proletariado como figura portadora de um mundo por vir. Podemos falar em força teológico-política porque o processo revolucionário mobiliza, assim, a capacidade de projeção de futuro, a crença em uma redenção secular, como estratégia política de ruptura e transformação social.

Desde a revolta camponeses dos anabatistas, em 1525, a história percebe a necessidade de tal mobilização. Perdida essa dimensão, a consciência do caráter crítico da situação permanece presente, mas sem a força de ação. Ela não é mais consciência potencial de luta, mas a melancólica aceitação desencantada da lei atual do existente. Isso explica por que Theodor Adorno insistia que a ideologia não estava no mascaramento das dinâmicas de poder e dominação que produziram as estruturas hegemônicas do pensar, mas na aceitação absoluta do existente, mesmo explicitadas as relações de poder e violência que lhe caracterizam.

É por meio dessa aceitação resignada que a consciência começa a funcionar de forma cínica. Ela acaba por afirmar a necessidade do que é, mesmo que o estado atual seja produtor de experiências profundas de violência, sofrimento e injustiça.

Pode-se, então, perguntar o que faz o proletariado perder essa força teológico-política. Esse é um problema maior da filosofia política contemporânea. Mario Tronti escreveu belas páginas a esse respeito. Primeiro, seria o caso de lembrar que o proletariado como sujeito político potencial ainda existe. O trabalho continua tendo centralidade como operador de socialização, de certa forma ainda mais evidente diante do horizonte de decomposição do sistema de defesas trabalhistas com o advento do neoliberalismo.

Os regimes de trabalho se intensificaram com redução brutal de salários e aumento da insegurança social. No entanto, para que essa potencialidade proletária passe à existência, faz-se necessária uma des-identificação generalizada com instituições, lugares sociais e identidades: única condição para que a despossessão proletária, seu desamparo, torne-se força de projeção de futuro. Ou seja, é preciso uma experiência de uma negatividade que faça do desenraizamento em relação a toda representação e todo lugar natural a condição de outra forma de ação social, esta que tem em vista o desabamento do mundo atual e a abertura à emancipação.

Isso talvez explique por que, depois deste livro, percorri um longo caminho e procurei pensar as condições para uma recuperação da negatividade dialética como forma de a teoria crítica pensar rupturas de estrutura. Desse caminho, fazem parte principalmente os livros Grande Hotel Abismo[i] e Dar corpo ao impossível.[ii] Ao mesmo tempo, hoje dedico minhas pesquisas à problematização do que devemos entender por “emancipação”.

O horizonte de crises no qual nos encontramos implica também a crise do que hegemonicamente nos foi vendido como “liberdade” e “emancipação”. Essa negatividade que faz do desenraizamento em relação a toda representação natural a condição de outra forma de ação social deve ser impulsionada até o ponto em que a própria gramática que usamos para definir a nós mesmos e nossos ideais entre em colapso.

Comecei de forma mais sistemática a pensar tal problema com Em um com o impulso.[iii] Outros desdobramentos dessa pesquisa virão em breve.

Por fim, seria o caso de lembrar que tais problemas vinculados à racionalidade cínica e seus desdobramentos continuam a se colocar de maneira cada vez mais urgente, já que percebemos como a ressurgência contemporânea do fascismo é uma dinâmica resiliente e em ascensão.

Ela exige uma compreensão mais precisa dos desdobramentos da racionalidade cínica, de suas formas de autorização da violência e do horizonte de “estabilização na decomposição” que conhecemos atualmente com as crises que se transformaram em verdadeiros regimes de governo. Isso é o que pretendo fazer em meu próximo trabalho.

Ao leitor deste livro, gostaria de dizer, ainda, que várias de suas elaborações seriam por mim revistas, caso ele fosse escrito hoje. Mas essa é uma afirmação trivial. Há quem escreva como quem tem um conjunto limitado de problemas a aprofundar. Esses são animados por uma espécie de escrita por aprofundamento, escrita por escavação.

Com o tempo, esses que assim escrevem percebem que sua maneira de apresentar problemas passa por certa metamorfose. Certas proposições mostram-se escritas como caminhos provisórios. Exatamente por isso, decidi preservar o texto deste livro tal qual foi escrito. Um pouco como quem acha por bem conservar marcas de um caminho que ainda sabe haver muito por trilhar.

*Vladimir Safatle é professor titular de filosofia na USP. Autor, entre outros livros, de Maneiras de transformar mundos: Lacan, política e emancipação (Autêntica) [https://amzn.to/3r7nhlo]

Referência


Vladimir Safatle. Cinismo e falência da crítica. 2ª. Edição. São Paulo, Boitempo, 2024, 222 págs.[https://amzn.to/4isG4SB]

Notas


[i] Vladimir Safatle, Grande Hotel Abismo: por uma reconstrução da teoria do reconhecimento (São Paulo, Martins Fontes, 2020).

[ii] Idem, Dar corpo ao impossível: o sentido da dialética a partir de Theodor Adorno (Belo Horizonte, Autêntica, 2019).

[iii] Idem, Em um com o impulso (Belo horizonte, Autêntica, 2022).


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