Comando militar

Imagem: Magali Guimarães
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Por MANUEL DOMINGOS NETO*

Militares aprendem a obedecer. Se não recebem ordens, desnorteiam-se. Em surto, como no caso brasileiro, outorgam-se um “poder moderador”

A chefia-de-Estado, não comandando os militares, será por eles comandada. Foi assim desde sempre e em todo canto. Organizações armadas veem a sociedade, às vezes chamada “pátria”, como dádiva das fileiras. Não sendo comandadas, conduzirão sua pretensa cria.

À chefia-de-Estado cabe determinar como as tropas devem ser preparadas. Comandantes supremos que atendem demandas corporativas invertem a hierarquia e se anulam: corporações devem atender ao chefe-de-Estado, não o contrário. Ao comando supremo cumpre estabelecer diretrizes claras, objetivos precisos, missões circunscritas e meios adequados. Extrapolações da autonomia corporativa são inadmissíveis.

Militares aprendem a obedecer. Se não recebem ordens, desnorteiam-se. Em surto, como no caso brasileiro, outorgam-se um “poder moderador”! Garroteiam as instituições e a cidadania. De armas na mão, inventam “sinergias” desarrazoadas com juízes e parlamentares. Danam-se a “dialogar” com poderes desarmados. Nem na guerra o militar pode sobrepujar o político!

No Brasil, o desinteresse, o despreparo e a inaptidão de chefes-de-Estado para comandar as Forças Armadas lesou a democracia. Generais usurparam o poder e contingenciaram governantes. Não há exemplo de presidente da república que tenha assumido efetivamente o comando supremo das Forças. Só ditadores da estirpe de Floriano e Geisel, acumularam simultaneamente o poder político e o comando militar. Os demais governaram acossados pelas fileiras de forma explícita ou encoberta.

A defesa nacional é tarefa de gravidade e amplo espectro. Envolve todos os domínios do Estado e da sociedade. Transcende os instrumentos de força. Demanda planejamento especializado. Não comporta improvisações, humores momentâneos, vontades paroquiais e ditames de fileiras.

Ao escolher o titular da Defesa no intuito de apascentar corporações, a chefia-de-Estado declina do comando supremo. Ministros devem encarnar o poder político sufragado. Se sua escolha é para agradar a tropa, a corrupção institucional é promovida.

Comandantes militares são preparados para exercer a força em última instância. Caso se dediquem ao ordenamento social e a administração pública, o farão ao seu modo, tomando os cidadãos divergentes como dignos de abate. Além disso, sujeitarão a Defesa aos conflitos corporativos.

A chefia-de-Estado deve respeitar regras hierárquicas na escolha de comandantes sem anular-se como topo da cadeia. Regras de promoção corporativas não se sobrepõem à determinação constitucional. Comandantes virtuosos admitem a condição de auxiliares do chefe supremo.

No Brasil de hoje não há clivagens relevantes no preparo técnico e na formação doutrinária dos generais. Todos passaram pelas mesmas escolas, tiveram acesso a mesma literatura especializada e à mesma pregação ideológica. As diferenças entre suas capacidades profissionais é pouco relevante. Todos provaram qualidades de liderança e chefia.

As diferenças que importam dizem respeito ao preparo intelectual, ao caráter e à sensibilidade para enfrentar os desafios das mudanças impostas pela realidade internacional. Vivemos na iminência de conflagração mundial. Precisamos amparar pelas armas nossa política externa. Comandantes de verdade preocupam-se em mostrar força aos candidatos a dono do mundo. Não terão gosto nem tempo para tratar de urnas eletrônicas, furar poços artesianos e buscar sinecuras.

Oficiais precisam ser sabatinados para aferição de sua afinidade com as proposições do comandante supremo para a defesa nacional. Não sei como Lula pensa a defesa do Brasil, mas sei que está atento à coesão nacional, a primeira pilastra do sistema defensivo. Sociedade fragmentada se expõe à cobiça estrangeira. Sociedade coesa se defende melhor.

A base da coesão nacional é dignidade da cidadania. Não há defesa sólida às expensas dos mais fragilizados. A eliminação de iniquidades sociais e disparidades regionais explosivas é fundamental. Racismo, xenofobia, misoginia, fanatismo religioso e preconceitos regionais enfraquecem a Defesa. Reformas socioeconômicas que superem o legado colonial são impostergáveis. Sem crença em futuro promissor para todos, sem comunhão de destino, sem orgulho de ser brasileiro não haverá defesa que preste.

A segunda pilastra da defesa é o cultivo de amizades. Nisso, o próximo presidente é mestre. País com sólidas parcerias internacionais se protege melhor de agressões. Amizades são consolidadas através de acordos promotores do desenvolvimento econômico e científico, da proteção sanitária e ambiental. Amigos de verdade compartilham a vontade de bem-estar coletivo.

A soberania nacional é incompatível com a integração subalterna aos blocos de poder em disputa pela hegemonia mundial. O estreitamento de laços com a vizinhança é indispensável e prioritária para a Defesa. Precisamos impulsionar a inserção mundial da América do Sul e da África.

Países dependentes de importações de alimentos, energia, matérias primas, máquinas e remédios são vulneráveis. Assim, a terceira pilastra da defesa é mobilização das capacidades nacionais em vista do máximo de autonomia. Países que não produzem suas próprias armas e equipamentos de guerra são obrigados à integração subalterna a Estados poderosos. A atual capacidade de dissuasão do Brasil não corresponde às suas potencialidades e necessidades. A defesa precisa estar em sintonia com ampliação da comunidade científica e dos setores técnicos-industriais. Até o presente, tal sintonia foi quimérica.

Finalmente, a defesa deve contar com instrumentos de força para cumprir missões especializadas. Hoje prevalece a confusão de atribuições desses instrumentos, distribuídos entre as diversas alçadas da Federação. O Exército, sobretudo, dá exemplo negativo ao se meter em tudo. Não admite que a dissuasão de agressores estrangeiros e a segurança pública garantidora da cidadania são missões distintas.

Resultado: temos fragilidade na vigilância de fronteiras terrestres, na proteção do espaço cibernético, na segurança da navegação costeira e fluvial, na segurança do tráfego rodoviário, na repressão à criminalidade, na proteção à cidadania, na contenção de distúrbios e de grandes comoções, na efetividade da guarda patrimonial e da proteção do patrimônio ambiental.

A atribuição de preservar a “lei e a ordem” conferida ao Exército, à Marinha e à Aeronáutica conturba a definição de papeis dos instrumentos de força do Estado. Funções militares e policiais precisam ser diferenciadas. Enquanto persistirem indefinições sobre a natureza das corporações armadas, tanto a defesa como a proteção da cidadania serão débeis ou inexistentes.

Ao escolher os comandantes, cabe à chefia-de-Estado dirigir perguntas iniciais aos mais graduados: (i) As Forças Armadas têm poder moderador? (ii) Os que não observam os regulamentos disciplinares e as leis devem ser punidos? (iii) Vamos trabalhar para defender os brasileiros neste mundo tumultuado? (iv) Que tal fechar os escritórios militares em Washington? Daí escolherá os que revelarem mais afinidade com sua concepção de defesa nacional. Trata-se de escolha avisada, mas solitária. A defesa não cabe em rateios de coligação partidária.

De outro modo, o chefe-de-Estado não poderá dizer: pela primeira vez na história deste país um presidente da república assumiu o comando supremo das Forças Armadas e risca ser tragado por desordeiros uniformizados.

*Manuel Domingos Neto é professor aposentado da UFC, ex-presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ABED) e ex-vice-presidente do CNPq.

 

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