Por LUCAS FIASCHETTI ESTEVEZ*
Comentário sobre a estréia mundial da peça, em concerto da OSESP
Apesar das restrições necessárias impostas pela pandemia da COVID-19, a música insiste em ecoar em um das mais importantes salas de concerto do país, a Sala São Paulo. No começo de agosto, a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (OSESP) apresentou ao público a estréia mundial do Concerto para Trombone, de Chick Corea, uma co-encomenda da OSESP com as orquestras filarmônicas de Nova York, Helsinki e da Fundação Calouste Gulbenkian. Corea, que faleceu no começo do ano vítima de um câncer raro, teve sua última composição conduzida pelo regente convidado Giancarlo Guerrero. O solista foi o experiente Joseph Alessi, trombone principal da Filarmônica de Nova York e para o qual a obra foi especialmente escrita, a pedido.
Ao ser questionado em entrevista para a Revista OSESP sobre suas incursões no universo da música orquestral, Corea disse que gostava de “fazer experimentos com uma paleta mais ampla de sons”. Embora já tenha trabalhado com grandes formações musicais, sua verve jazzística pela experimentação e pela busca de novas possibilidades sonoras também predomina em suas obras para conjuntos menores e até mesmo em suas composições e improvisações para piano solo.
Ao longo de sua carreira, seu estilo permaneceu indefinível e inclassificável, um elogio ao seu gênio inventivo. Sua música era aquela da recriação, do mutável e da descoberta, do flerte com o universo infantil e lúdico, da receptividade aos ritmos e cores da música latino-americana e espanhola, do elogio ao que é transitório – em suma, uma música de caráter camaleônico. Dos muitos músicos com os quais colaborou talvez Miles Davis seja o mais lembrado. Cabe também ressaltar o peso da influência da música brasileira em sua trajetória. Sob a liderança de Stan Getz, Corea pôde subir aos palcos muitas vezes ao lado de João Gilberto e Flora Purim. Segundo o próprio, a música de Tom Jobim também exercera um papel fundamental em sua formação. De suas passagens pelo país, destaca-se sua apresentação no 3º Free-Jazz Festival (1987), em São Paulo, oportunidade na qual dividiu a noite com Hermeto Pascoal.
Cheios de idas e vindas, os passeios de Corea para além dos limites do jazz e seu interesse na música de concerto representam um dos momentos mais férteis de sua produção. Em The Meeting (1982), Corea convida o pianista Friedrich Gulda para uma conversa entre Seinways, numa gravação emblemática recheada de improvisações. Na década seguinte, em The Mozart Sessions (1996), temos a oportunidade de ouvir, à la Corea, o Concerto para Piano n.20 em Ré Menor (KV466) e o Concerto para Piano n.23 em Lá Maior (KV488).
Poucos anos depois, em Corea Concerto (1999), o pianista se aventura no mundo da composição orquestral com a Filarmônica de Londres. Nesse álbum, realiza um arranjo sinfônico de seu sucesso Spain, onde desbrava novas fronteiras. Finalmente, o músico lança The Continents (2012), com seu Concerto para Quinteto de Jazz e Orquestra de Câmera. Aqui, nos deparamos com uma música ainda mais robusta, onde as melodias e os ritmos se sobrepõem a fim de tecer uma sonoridade ao mesmo tempo única e bastante devedora de toda tradição híbrida de músicos de jazz que se aventuraram pela música de concerto.
Em algumas das passagens deste álbum, podemos traçar paralelos com o espetaculoso Skies of America (1972), de Ornette Coleman. Embora estejam separados por inúmeras diferenças em relação ao material, orquestração e concepção musical envolvida, nota-se em ambos a completa despreocupação com formas pré-estabelecidas, o que permite um esgarçamento dos limites até então colocados. Nesse sentido, compartilham de uma postura geral intransigente. Por meios distintos, mas dotados do mesmo inconformismo, sua música é construída a partir de uma aparente contradição. Devedoras da notação musical, tão cara à música de concerto, se desdobram por meio da improvisação, estrutural para certas vertentes do jazz. No caso de Corea, é através desses álbuns que o músico também se revela um compositor de excelência, que como poucos abstrai de preocupações formais abstratas e tece o fio de seu trabalho artístico sempre visando desenvolver, e não apenas resolver ou cessar, uma “tensão jazzística imanente e altamente sensível” (Berendt, 2014, p.346).
Desde pelo menos o final dos anos 1960, nota-se na obra de Corea uma tendência a privilegiar improvisações desacompanhadas, fazendo recair sobre os músicos solistas, como benção ou maldição, toda a intensidade do momentum. Em suas obras mais restritas à linguagem do jazz, a música de Corea se contrapõe a algumas tendências mais radicais, fortemente marcadas pelas improvisações coletivas e pelo descentramento e esfacelamento hierárquico das diferentes melodias. Por outro lado, quando flerta com a música de concerto, Corea também se mantém original: embora sempre gravite em torno de uma sonoridade mais límpida através de linhas melódicas identificáveis, se distancia da tradição do jazz sinfônico na qual os naipes, principalmente os dos metais, reproduziam, quase que em uníssono, frases destituídas de complexidade e inventividade. Ao privilegiar os solos, sua composição tende a colocar em primeiro plano, a cada momento, um elemento particular que já contém no material musical que encarna uma sinalização do universal. Em consonância e contraposição aos outros elementos do conjunto, as partes constituem progressivamente o todo.
O Concerto para Trombone encarna um momento dessa concepção musical. A excelente interpretação de Alessi faz jus não só ao protagonismo que se espera de um solista numa obra dessa natureza, mas exerce também uma posição sui generis.Do primeiro ao último compasso, a potência e intensidade das frases que ecoam de sua campânula só se efetivam no jogo multifacetado que compõem com os demais timbres e naipes da orquestra. Numa sucessão de ritmos e cadências, Corea logra a unidade do múltiplo. Nunca se sobrepondo aos demais afim de apagá-los, o espalhafatoso trombone, com todo sua gestualidade larga e expansiva, se coloca em cena visando assentar o terreno para o que vem dali para a frente, ao mesmo tempo que, de antemão, já aguarda a vez de entoar sua réplica.
O primeiro movimento da obra, A Stroll Opening (Passeio de Abertura), desenvolve-se praticamente nessa alternância construtiva entre o solista e as demais partes do conjunto. No início, a orquestra se junta ao público como espectadora atenta de uma improvisação de Alessi. Recheado de glissandos, tão próprios do trombone, o solista abre as cortinas e convida os demais a participarem de seu passeio. Logo depois, nos vemos enredados numa animada conversa tríplice entre o trombone, a harpa e os instrumentos de percussão, numa troca de ideias que por vezes assume o tom de um sussurro envergonhado e, ao final, parecem às raias de uma discussão inflamada. Como não poderia ser diferente vindo de Corea, a suave melodia que surge do piano torna-se então o centro de gravidade de toda a construção sonora. Num rearranjo que já envolve toda a orquestra, o trombone reassume então sua posição, agora ávido em contra-argumentar.
Quando o segundo movimento – A Stroll (Um Passeio) – se inicia já estamos diante de outra ambientação. Segundo o compositor, este passeio não é um vagar qualquer, sem direção nem rumo. Para Corea, as diversas cores, sons e timbres que se revelam ao longo deste movimento constroem a imagem de um passeio por Nova York. Saindo do Harlem, ao norte, Corea imaginou-se descendo a Broadway até chegar ao extremo-sul da ilha de Manhattan, no Battery Park. Ao longo do trajeto, diferentes comunidades, estilos de vida e culturas atravessam o caminho do transeunte. Do primeiro ao último momento deste percurso, estamos diante de um exemplo bastante luminoso da troca de ideias anteriormente exposta entre o solista e a orquestra. Ao invés de competirem pela hegemonia do som, cooperam em um movimento ora de aproximação, ora de distanciamento de suas vozes.
Em uma tensão crescente que aparenta atravessar o centro da metrópole, os timbres se misturam em meio ao caos urbano, para no instante seguinte refugiarem-se numa rua mais calma e, de lá, retomarem novamente sua conversa. Neste movimento, mais do que em qualquer outro, fica evidente como Corea traduziu de forma bastante particular na sua música o esquema call and response (chamada e resposta), tão caro à linguagem jazzística. Oriundo dos spirituals e dos cânticos dos afro-americanos, essa estrutura bidimensional da construção sonora parece encontrar uma nova reformulação nessa longa conversa entre o trombone e os demais elementos da orquestra. Por meio desse esquema, as vozes nunca calam umas às outas, mas cooperam mutuamente. Entre versos e refrões, é possível ouvir a todos sem que isso dilua cada um em um coletivo homogeneizador. Traduzida em novos termos, a linguagem do jazz permanece ali, encrostada como uma potência criativa – e é sintomático que isso tenha como personagem dessa voz inaugural o trombone, de timbre por vezes tão próximo à rouquidão da voz humana.
Íntimos o suficiente para um convite à dança, as diferentes partes agora participam de forma ainda mais integrada em um só ritmo, por vezes sincopado, por vezes mais melancólico, no qual Alessi aceita acompanhar os passos, numa interpretação primorosa. No terceiro movimento, não à toa chamado de Waltse for Joe (Valsa para Joe), o virtuosismo do solista se revela de forma mais proeminente. Às voltas da dança, suas frases tornam-se líricas e sensíveis. Utilizando-se de toda a extensão e intensidade do gesto, o músico consegue ao mesmo tempo interpretar Corea de forma cirúrgica, porém original. Nesse ínterim, nos lembramos dos motivos pelos quais, ao longo da história do jazz, o trombone foi considerado “o instrumento mais difícil em se domesticar” (Berendt, p.256). Embora de mecânica escorregadia e deslizante, ele o domina sem que, com isso, abafe os sons que necessariamente escapam da notação. O tênue equilíbrio entre a composição e a improvisação volta a aparecer nas brechas de cada frase dessa valsa.
As ruas vazias de Nova York durante os primeiros meses da pandemia da COVID-19 sem dúvida se transfiguram no clima geral de Hysteria (Histeria), o quarto movimento da obra – trecho composto, segundo Corea, justamente no período mais difícil da tragédia sanitária. Ao longo de sua execução, notamos que o passeio pela cidade, antes feito com passos certeiros em direção ao sul da ilha, agora se encontra sob um estado de atordoamento. A música assume um tom que maximiza a melancolia anteriormente só esboçada, mas adiciona uma camada de tensão, traduzindo o vazio sempre perturbador das ruas aparece em cadências nervosas e rápidas, as quais Alessi tão bem executa. Se no início da obra escutamos à conversa entre o trombone e a harpa, esta última agora ressurge de forma sub-reptícia ao tema geral, numa inserção que gradativamente irrompe e se faz presente.
Nesta altura, a orquestra se revela como uma “totalidade frágil”, termo usado por Theodor Adorno em suas considerações a respeito das interrelações entre a obra musical e a sociedade. Como reforça o frankfurtiano, se tomada como microcosmo da própria sociedade, a orquestra também pode se imobilizar pelo peso morto do seu referente. Sob a pandemia que tem como cena o vazio e a ausência, o confronto antes construtivo entre os naipes e o trombone vagarosamente passa a traduzir um lamento comum. A tensão agonizante presente em todo o movimento parece tentar apontar, mesmo que timidamente, para um momento posterior, aquele do preenchimento deste vazio e do retorno ao convívio e à conversa. Nas imagens mobilizadas por Corea em sua obra, a orquestra passa a transfigurar o real – a cidade sob um estado de sítio pandêmico – em sua duplicidade trágica, como asserção trágica do presente e indício de um porvir ainda ausente. Como diz Adorno, numa imagem que vai ao encontro da usada pelo compositor, “hoje, as orquestras são como os arranha-céus de Manhattan, a um só tempo, imponentes e destroçados” (Adorno, 2011, p.238).
O último movimento do concerto, Joe´s Tango (Tango de Joe) parece depositar sua força na superação daquelas ruínas melancólicas dos compassos anteriores. Numa música ritmada pelas influências latinas, que lembram a versão de Miles Davis do Concierto de Aranjuez, Corea imprime aos últimos minutos de sua obra um tom cíclico, no qual o trombone retorna, agora de forma ainda mais intensa, àquela bidimensionalidade do diálogo com as demais partes. Também como no início, encontramos Alessi solando e ocupando cada vez mais espaço, como se estivesse maior por ter caminhado até ali.
Ao longo da coda, ideias já expostas retornam de forma tal que a paleta de cores se expande até a beira do caos, mas sem numa abdicar daquela conversa comum e compreensível esboçada desde o início. Chegando ao término do passeio, já ao final da Broadway Avenue, nos deparamos com a Upper Bay. Acompanhado por toda orquestra, o trombone então soa tão alto quanto as buzinas dos barcos que naquelas águas transportaram milhões no início do século passado.
De acordo com Alessi, a primeira versão do último movimento terminava de forma serena e tranquila. Depois de algumas conversas com o compositor, Corea alterou o final e lhe imprimiu este tom quase heroico, no qual explora todo um espectro romântico do trombone. Em sua entrevista, o próprio revela que compôs a obra tendo justamente Alessi como seu referencial. Ao se debruçar sobre o material, o compositor colocou para si a tarefa de fornecer a Joe um ambiente ideal para que, empunhado de seu instrumento, pudesse executar a arte que tão bem sabe. Como em tantos outros momentos da história da música de concerto, o ímpeto compositivo não partiu de uma preocupação com o instrumento em si, mas das possibilidades diversas de sua execução pelo solista.
Dessa forma, a cada novo trombonista que aceitar esse desafio, ainda mais numa obra que permite a improvisação, teremos um novo Concerto para Trombone. Em uma homologia com Alban Berg em suas transições mínimas, Corea “levava a construção extremamente a sério – embora não com tanta seriedade”. Sob um escrutínio de natureza criativa, também cabe ao compositor atenuar “humanamente a sua rigidez” (Adorno, 2010, p.195), exercendo sua liberdade no interior do próprio esquema por ele criado.
De gestual largo e espaçoso, o trombone demonstra mais uma vez nesse concerto toda sua plasticidade e versatilidade. Nas origens do jazz em Nova Orleans, ainda no começo do século XX, o instrumento exercia a função de um “contrabaixo de sopro”, já que fornecia à sessão melódica, geralmente composta pelo trompete e pelo clarinete, uma base sobre a qual eles pudessem realizar seus floreios. Concomitantemente a isso, o trombone também contribuía para a marcação rítmica, na medida em que acentuava os tempos fortes de bandas que, até então, eram muito influenciadas pelas marchas militares.
Contratadas para participarem de desfiles das mais variadas espécies, essas pequenas bandas de jazz subiam em caminhões precários e, ao longo do trajeto pelas ruas da cidade, animavam os transeuntes e forneciam aos seus ouvidos um ritmo novo e sincopado, ainda em gestação. Entretanto, e aí vem a anedota, devido ao largo espaço que o trombonista necessitava para realizar sua performance, só lhe restava a parte traseira do caminhão, mais espaçosa e sem as laterais tão limitantes ao trombone, o que lhe permitia então realizar o largo gesto de seu instrumento. Por causa disso, o estilo de tocar dos primeiros trombonistas de jazz ficou conhecido como tailgate. Ali, espremido entre seus colegas em um espaço já exíguo, este azarado sempre ocupava aquela posição secundária, ali atrás, lutando para se fazer presente e ouvido. Em seu concerto, Corea colocou-o em evidência, à frente de todos.
*Lucas Fiaschetti Estevez é doutorando em sociologia na USP.
Referências
Concerto para trombone, de Chick Corea. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=deRUPDy_Xnk&ab_channel=Osesp-OrquestraSinf%C3%B4nicadoEstadodeS%C3%A3oPaulo
ADORNO, Theodor. Regente e orquestra: aspectos sociopsicológicos. In Introdução à sociologia da música. São Paulo, Unesp, 2011.
ADORNO, Theodor. Berg: O mestre da transição mínima. São Paulo, Unesp, 2010.
BERENDT, Joachim Ernst. O livro do jazz: de Nova Orleans ao século XXI. Revisto e ampliado por Günther Huesmann. Tradução: Rainer Patriota e Daniel Oliveira Pucciarelli. São Paulo, Perspectiva / Edições Sesc, 2014.
COREA, Chick. Do norte ao sul de Manhattan, pela Broadway: Entrevista a Júlia Tygel. Revista OSESP. São Paulo, 2021.