Por VICTOR SERGE*
Poema apresentado e traduzido por Sean Purdy.
Vitor Serge (1890-1947) foi um marxista revolucionário belga-russo que apoiava Leon Trotsky e a Oposição da Esquerda contra Stalin nos anos 1920-1930 na União Soviética. Romancista, poeta, jornalista, historiador e militante socialista, nasceu na Bélgica, filho de exilados da Rússia tzarista. Atuava no movimento anarquista e anarco-sindicalista na Bélgica, França e Espanha durante a Primeira Guerra Mundial.
Em outubro de 1918, foi trocado junto com outros revolucionários russos em Paris para prisioneiros estrangeiros antibolcheviques na Rússia. Filiou-se aos bolcheviques em 1919 e trabalhou como jornalista e funcionário da Internacional Comunista. Em 1925 juntou-se à Oposição da Esquerda, trabalhando incansavelmente como militante e escritor contra a ascensão da contrarrevolução stalinista.
Serge foi preso em 1928, expulso do partido comunista e demitido do seu emprego no Estado soviético. Foi preso mais uma vez em 1933, ficou 85 dias em confinamento solitário, e foi exilado para o sudoeste do país. Após uma campanha em sua defesa por escritores europeus, foi liberado e exilado da URSS em 1936 junto com sua mulher e filhos. Foi “um milagre de solidariedade”, Serge lembrou depois. Porém, sua irmã, sogra, cunhada e dois cunhados morreram no gulag de Stalin.
Apesar de ter permissão oficial de levar todos os seus escritos feitos no exilio interno, inclusive dois romances, a polícia secreta os confiscou e ele foi forçado a reescrevê-los de memória depois. O poema “Confissões”, publicado em 1938, trata das confissões forçadas, sob tortura, de dezenas de velhos bolcheviques nos Processos de Moscou.
[Fontes: Victor Serge; James Brook; Richard Greeman. Resistance: Poems by Victor Serge. San Francisco: City Lights Books, 2001. Ver também Victor Serge. O ano 1 da Revolução Russa. Tradução: Lólio Lourenço de Oliveira. São Paulo: Boitempo, 2007]
Confissões
Nunca fomos o que somos,
as caras de nossas vidas não são nossas,
as vozes que você ouve, as vozes que falaram
não são nossas,
nada do que você viu é verdade,
nada do que fizemos é verdade,
somos totalmente diferentes.
Nós nunca pensamos nossos pensamentos,
acreditamos em nossa fé,
quisemos nossa vontade,
hoje nossa única verdade é o desespero,
esta confissão de uma degeneração louca,
esta queda na escuridão
onde a fé é renunciada e recuperada uma última vez.
Não temos rostos nem nomes, nem força nem passado
– pois tudo está acabado e já está ultrapassado
Nós nunca deveríamos ter existido
– pois tudo está devastado
E somos nós os culpados, nós os imperdoáveis,
nós os mais miseráveis, nós os mais arruinados,
somos nós … saiba isso
– e seja salvo!
Acredite em nossas confissões, junte-se ao nosso juramento
de completa obediência: despreze nossos repúdios
Uma vez esmagada, a velha revolta nada mais é do que obediência.
Que aqueles que são menos devotados se orgulhem,
que aqueles que se perdoaram se orgulhem,
que aqueles que são mais devotados sejam orgulhosas,
que aqueles que não desistiram se orgulhem.
Se despertássemos os povos e fizéssemos estremecer os continentes,
atiramos nos poderosos, destruímos os antigos exércitos, as velhas cidades,
começamos a fazer tudo de novo com essas velhas pedras sujas,
essas mãos cansadas, e as almas escassas que nos deixaram,
não era para pechinchar com você agora,
revolução triste, nossa mãe, nossa filha, nossa carne,
nosso amanhecer decapitado, nossa noite com suas estrelas de esquelha,
com sua inexplicável Via Láctea rasgada em pedaços.
Se você se trair, o que podemos fazer senão nos trair com você?
Depois de vidas como essas, que morte poderia haver, senão, nessa traição, morrer por você?
O que mais poderíamos ter feito do que nos ajoelhar diante de você nessa vergonha e agonia,
se ao servi-lo invocamos essa escuridão?
Se outros acham em seu coração esfaqueado mil vezes
os meios para viver e resistir a você, a fim de salvá-la em vinte anos, cem anos,
abençoados são por nós que nunca acreditamos em bênçãos,
abençoados são eles em nossos corações secretos
por nós que nada mais podemos fazer.
Não pertencemos mais ao futuro, pertencemos inteiramente a esta época:
sangrenta e vil em seu amor pela humanidade,
estamos sangrentos e vis como os homens desta época.
Nos pisoteie, nos insulte, cuspa em nós,
vomite-nos,
massacre-nos,
nosso amor é maior do que esta humilhação,
este sofrimento,
este massacre,
suas bocas iníquas são justas, suas bocas são nossas bocas,
nós estamos em você,
suas balas são nossas, e nossa agonia mortal, nossa morte, nossa infâmia são suas, e sua vasta vida nestes campos trabalhados por séculos é nossa para sempre!
*Vitor Serge (1890-1947) foi escritor e ativista político russo. Autor entre outros livros de Memórias de um revolucionário (Companhia das Letras).
*Sean Purdy é professor do Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP).