Por ANTONIO MARTINS*
O envolvimento com a atual eleição não é motivado apenas pela temática da infância, mas também da democracia
A professora e pesquisadora Míriam Krenzinger e o antropólogo Luiz Eduardo Soares escreveram, em junho deste ano, um texto provocador sobre os Conselhos Tutelares brasileiros e sua eleição, à época quatro meses distante. Combinando reportagem e ensaio político, a peça foi escrita com capricho literário. Sustentava duas hipóteses principais.
Primeira: após anos de empobrecimento do país e desmonte das políticas públicas, os conselhos tornaram-se, em boa parte do território, o único sinal de presença protetiva do Estado. Por isso, e por seu vínculo com a infância, em situações muitas vezes dramáticas, adquiriram papel político e simbólico essencial. São um instrumento importante para tornar a vida das comunidades um pouco menos opressora; mas, ao mesmo tempo, uma peça que ajuda a definir – para um lado ou outro – o desenho do mosaico político nacional.
Segunda: Apesar disso, as correntes democráticas e a esquerda subestimam estes espaços, talvez por terem aderido à institucionalidade e se afastado dos territórios onde se dá a vida social cotidiana (em especial, as periferias). Esta ausência abre larga avenida, ocupada facilmente, hoje, pela ultradireita. Ela segue ativa, mobiliza com destreza a pregação das igrejas fundamentalistas e transforma os conselhos que controla em máquinas de reproduzir ideias e práticas ultraconservadoras.
O artigo não se limita a constatar o atraso. Suas últimas palavras são de tímida esperança: “Ainda há tempo de politizar, no sentido mais nobre do termo, o processo de escolha (…) Ainda é possível promover debates, conhecer o perfil de candidatos e candidatas, identificar e valorizar as candidaturas laicas e progressistas, participar da campanha e ir às urnas praticar nosso dever cívico. Se, efetivamente, consideramos prioritária a defesa dos direitos de crianças e adolescentes, e reconhecemos a urgência do tema, devemos nos comprometer com o debate público sobre as candidaturas e ajudar a divulgá-lo”.
Não foi pregação isolada no deserto. Mais ou menos à mesma época começaram a circular textos de teor semelhante. Eles terminaram estimulando a emergência de uma mobilização nacional. Ela parece capaz de influir na eleição dos conselhos e aporta algo de novo à experiência dos movimentos sociais e de sua relação com a internet.
Uma coalizão de doze entidades1 assina o site A Eleição do Ano, voltado à escolha dos conselhos. Centenas de milhares de pessoas já o acessaram e o fluxo está crescendo aceleradamente, nas últimas horas. Além disso, um número incontável de pessoas serve-se das informações de A Eleição do Ano para montar listas de candidatos dirigidas a cidades ou bairros específicos e compartilhar pelas redes sociais. Se este movimento continuar a se expandir é possível que se sobreponha à mobilização da ultradireita – que se serve do fundamentalismo religioso e do medo para emplacar seus próprios candidatos.
O Observatório dos Conselhos Tutelares, da UFRJ, é uma das doze entidades da coalizão. A própria Mírian Krenzinger, integrante do observatório, relata como tudo foi possível. Os textos publicados em meados do ano estimularam organizações que se dedicam à proteção democrática da infância a se articular. Houve sabedoria política na construção da iniciativa.
As doze entidades não se arrogaram o direito de indicar candidatas e candidatos (nem teriam como fazê-lo). Também não se contentaram em lançar fórmulas vagas – exortando a população a escolher, por exemplo, “pessoas que respeitem os Direitos Humanos”. Preferiram definir um conjunto de princípios, que devem nortear a ação de conselhos tutelares democráticos. Os princípios são régua. Para receber a indicação de A Eleição do Ano, as candidatas ou candidatos precisam se comprometer com eles.
São doze pontos, baseados no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), mas redigidos de forma muito clara e definidora. O primeiro defende que qualquer criança que engravidou com menos de 14 anos tem direito de optar pelo aborto – e os Conselhos Tutelares devem obrigar-se a garantir esta possível escolha. O princípio apoia-se na própria lei brasileira. Ela considera estupro toda relação sexual com pessoa nesta faixa etária; e autoriza a interromper a gravidez que decorre de violência. Não há o que discutir.
Um segundo ponto estabelece que as conselheiras e conselheiros devem se comprometer à proteção de qualquer tipo de organização familiar – e não apenas à chamada “família tradicional”. O compromisso faz uma enorme diferença, dadas as pressões que os conselhos frequentemente recebem para discriminar agrupamentos familiares não heterossexuais, unipessoais ou indígenas, por exemplo.
Na última contagem de Míriam Krenzinger, mais de 1.200 conselheiros já haviam recebido indicação de A eleição do ano. Já há candidat@s em todas as capitais e em dezenas de outras cidades. O contingente cada vez maior de pessoas que busca o site não tem dificuldade alguma para encontrá-los. Basta informar, nesta página, cidade, estado e bairro do título de eleitor. A lista é gerada instantaneamente. Em outras áreas do site há informações básicas sobre o papel dos Conselhos Tutelares, o ECA, o processo eleitoral e como votar.
A mobilização não é só virtual. Na última quinta-feira (28/9), por exemplo, um dos compromissos de Míriam Krenzinger era mediar um debate entre treze candidat@s que falariam às comunidades do Complexo da Maré, na zona norte do Rio.
A cientista política e educadora popular Áurea Carolina desempenhou um papel particular no movimento por eleger Conselhos Tutelares democráticos. Ela é a diretora executiva do Nossas – a organização que ofereceu, às doze entidades da campanha, tecnologia e a infraestrutura de internet, design e alguma assessoria em técnicas de mobilização e comunicação. Na mobilização social, a política está sempre no comando, mas não é tudo. Sem as ferramentas de rede, não haveria possibilidade de campanha nacional; e, à falta desta, talvez as doze entidades nem encontrassem razão para se articular.
Áurea Carolina já esteve em outros lugares, na luta social. Nos anos 2010, participou do coletivo Muitas, que uniu movimentos da periferia e do centro de Belo Horizonte, atuou com destaque na explosão social de 2013 e conseguiu dar-lhe sentido político progressista – ao contrário do que ocorreu na maior parte do país. Em 2016, elegeu-se como vereadora mais votada da cidade e foi deputada federal entre 2018 e 2022. Agora estimula outros protagonismos, mas não perdeu nem a capacidade de enxergar o país, nem o desejo de influir em seus rumos.
“Nosso envolvimento com A eleição do ano não partiu da temática da infância, mas da democracia”, conta ela. “Percebemos que os Conselhos Tutelares corriam o risco de se converter em núcleos de articulação ultraconservadora e em alavancas para projetar a direita em outros espaços institucionais”. A ferramenta construída pelo Nossas chama atenção pela potência e simplicidade. Durante semanas, ela permitiu que centenas de candidatas e candidatos aos conselhos conhecessem a plataforma de doze compromissos e aderissem a ela. Agora, apresenta-@s à população. A navegação é fácil, a estética é comunicativa e atraente.
Criado em 2011, ligado a princípio às lutas pelo Direito à Cidade, o Nossas abraça outras causas. A resistência ao Plano Diretor pró-especulação em São Paulo. A defesa da Serra do Curral, em Belo Horizonte, ameaçada pela mineração. Os movimentos pela manutenção da Amazônia em pé.
Talvez seu sentido político mais forte seja algo que subjaz a tudo isso. O caráter subversivo que a internet manteve em seus primórdios – a possibilidade de colocar os seres humanos em contato, em qualquer parte do mundo e sem as mediações impostas pelo capital – parece esmaecido. Em seu lugar, surgiu a ditadura das redes sociais, da vigilância e dos algorítimos, por meio dos quais as maiores corporações do planeta rastreiam ações e desejos, e condicionam o que cada pessoa lê, faz e compra. O controle é tão intenso que a disputa parece às vezes perdida.
Campanhas como A eleição do ano e iniciativas como o Nossas sugerem que ainda estão rolando os dados.
*Antonio Martins é jornalista e editor do site Outras Palavras.
Publicado originalmente no site Outras Palavras.
Nota
[1] A relação está disponível no site A Eleição do Ano.
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