Contra o voto de destruição em massa

Imagem: Zeeshaan Shabbir
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por ARACY P. S. BALBANI*

A cultura política dos brasileiros vai mal e ela se reflete de maneira dramática durante as eleições

Circula no WhatsApp uma imagem de origem desconhecida com os dizeres: “O maior concurso público do mundo será no Brasil em novembro. Quase seis mil vagas para prefeito e quase 60 mil para vereadores. Currículo: desnecessário. Qualidade cultural: nenhuma. Qualidade moral: dispensável. Salário: excelente, mas com possibilidade de ser multiplicado várias vezes. Horário de trabalho: livre e pouco”.

Essa desinformação grosseira “encaminhada com frequência” preocupa. Para começo de conversa porque o primeiro e o segundo turnos das eleições municipais de 2024 estão marcados para outubro. Além disso, ela ignora a legislação eleitoral, na qual, entre outros requisitos indispensáveis para elegibilidade, estão: alfabetização, e idade mínima de 18 anos e 21 anos para candidatos a vereador e prefeito respectivamente. E o óbvio: exige-se, sim, boa conduta moral do(a) candidato(a). Fica inelegível, por exemplo, quem for excluído do exercício profissional por praticar infração ético-profissional.

É intrigante que pessoas instruídas e bem relacionadas acreditem nesse tipo de desinformação e a retransmitam. Talvez a campanha do Tribunal Superior Eleitoral para esclarecimento da população contra o disparo de mensagens em massa contendo inverdades sobre o processo eleitoral precise ser muito mais incisiva.

O fato é que a cultura política dos brasileiros vai mal. Muitas candidaturas se apoiam em causas justas como a defesa dos direitos das pessoas com deficiência ou dos animais. Entretanto, o desempenho de alguns dos eleitos para o Legislativo e o Executivo nessas questões é um fiasco. Afinal, organizar, como voluntário(a) da sociedade civil, bazares e feijoadas beneficentes em prol de deficientes visuais carentes ou dos animais abandonados é muito diferente de atuar em cargo eletivo. Uma coisa é ter experiência com caçarolinha de assar leitão; outra é passar a Carolina de Sá Leitão.

Inúmeros candidatos têm diploma universitário, mas não têm sequer noções de direito constitucional e administrativo. Na falta de capacitação para a gestão pública e de uma assessoria minimamente competente, metem os pés pelas mãos e detonam a administração pública. Quem paga o pato, como sempre, é o povo. O desmonte da saúde, educação e segurança públicas pelos que detêm o poder político numa democracia representativa sinaliza que o voto dado sem escolha bem informada e consciente pode ter o efeito de destruição em massa.

Nosso eleitorado é mesmo surpreendente. Oscila entre a avacalhação de eleger estreantes bizarros e sem nenhum projeto político, de cujos nomes na urna a gente não sabe se ri ou se chora, e escolher tradicionais políticos locais, mofados já há décadas.

Possivelmente, uma das maiores ameaças ao Estado democrático de direito e à nossa liberdade seja a eleição de candidatos terrivelmente comprometidos com ideias conservadoras e ideais religiosos fundamentalistas.

Não esqueçamos o exemplo de Daniel François Malan (1874-1959), que obteve doutorado em divindade na Universidade de Utrecht, foi pastor religioso, teve cargo universitário de destaque, mas entrou para a História como o primeiro-ministro que efetivou o regime de apartheid na África do Sul, oficializando a segregação racial que durou 46 anos e mergulhou o país na violência.

*Aracy P. S. Balbani é médica otorrinolaringologista. Atua como especialista exclusivamente na área assistencial do SUS no interior paulista.

Referências


Tribunal Superior Eleitoral. Eleições 2024: confira quem pode ser candidato a prefeito ou a vereador: https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/2024/Marco/eleicoes-2024-confira-quem-pode-ser-candidato-a-prefeito-ou-a-vereador

Veja todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Arquétipos e símbolos
Por MARCOS DE QUEIROZ GRILLO: Carl Jung combinou a literatura, a narração de histórias e a psicanálise para chegar às memórias inconscientes coletivas de certos arquétipos, promovendo a reconciliação das crenças com a ciência
Apelo à comunidade acadêmica da USP
Por PAULO SÉRGIO PINHEIRO: Carta para a Agência USP de Cooperação Acadêmica Nacional e Internacional – AUCANI
Fundamentos da análise social
Por FABIO DE OLIVEIRA MALDONADO: Apresentação à edição brasileira do livro recém-lançado de Jaime Osorio
O marxismo neoliberal da USP
Por LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA: Fábio Mascaro Querido acaba de dar uma notável contribuição à história intelectual do Brasil ao publicar “Lugar periférico, ideias modernas”, no qual estuda o que ele denomina “marxismo acadêmico da USP
O martírio da universidade brasileira
Por EUGÊNIO BUCCI: A nossa universidade precisa se preparar e reforçar suas alianças com suas irmãs do norte. O espírito universitário, no mundo todo, só sobrevive e se expande quando sabe que é um só
A ampliação do Museu de Arte de São Paulo
Por ADALBERTO DA SILVA RETTO JR.: O vão livre do MASP será um espaço inclusivo ou excludente de alguma forma? A comunidade ainda poderá ali se manifestar? O famoso “vazio” continuará sendo livre, no mais amplo sentido do termo?
Minha infância nos porões da Bela Vista
Por FLORESTAN FERNANDES: “Eu morava lá na casa dele e queria sair de lá, eu dizia que passava mal, que comia mal, dormia mal e tudo ia mal, e ela não acreditava”
Sofia, filosofia e fenomenologia
Por ARI MARCELO SOLON: Considerações sobre o livro de Alexandre Kojève
Ideologias mobilizadoras
Por PERRY ANDERSON: Hoje ainda estamos em uma situação onde uma única ideologia dominante governa a maior parte do mundo. Resistência e dissidência estão longe de mortas, mas continuam a carecer de articulação sistemática e intransigente
O humanismo de Edward Said
Por HOMERO SANTIAGO: Said sintetiza uma contradição fecunda que foi capaz de motivar a parte mais notável, mais combativa e mais atual de seu trabalho dentro e fora da academia
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES