Cracolândia e drogas – diálogo com Frei Betto

Imagem: Elīna Arāja
image_pdf

Por JULIAN RODRIGUES*

A “solução” reside na mudança das condições materiais das pessoas, antes de tudo

Nosso sempre atento dominicano – um dos maiores ícones da esquerda brasileira – publicou no último dia 4 de setembro breve reflexão sobre o tema do crack, cujo uso aparentemente vem crescendo nas capitais e grandes cidades do país.[i]

Digo aparentemente por que o pânico moral disseminado pela grande mídia cria uma sensação de perigo imediato, o que não se sustenta em dados. São cerca de 1 milhão de usuários de crack no Brasil. Comparemos: há 4 milhões de dependentes de álcool, 12 milhões de fumantes e 1,4 milhões de usuários de cocaína. Existem cerca de 1,5 milhões de apreciadores do “cigarrinho do demônio”.

Nesse curto espaço não será possível fazer uma genealogia do tema. Para quem quiser se aprofundar eu indicaria, entre tantas, Dudu Ribeiro, Henrique Carneiro, Carl Hart, Edward MacRae, Jacqueline Muniz, Luiz Eduardo Soares.

A propósito. Sabem qual a mais exitosa política pública já executada no Brasil para enfrentar dependência química? Foram as ações antitabagistas. Caímos de cerca de 35% de fumantes nos anos 1980 para menos de 10% atualmente.

Campanhas publicitárias inteligentes, mais impostos etc. A velha disputa de ideias. A propósito, o tal cigarrinho eletrônico na moda hoje parece que anda fazendo estrago grande em certa juventude de classe média.

O Programa Nacional de Combate ao Fumo foi criado em 1985. Lembro-me de um cartaz do governo Sarney, com o slogan “fumar é brega”. O que, cá entre nós, funciona muito mais que aquelas fotos escatológicas nos maços. Ah, também foram proibidas propagandas de cigarro. O que devemos fazer em relação à cerveja e ao álcool em geral.

12% das brasileiras/os ainda fumam. Mas, vejam o contraste: 20% é consumidor abusivo de álcool. Ou seja: nosso maior problema é o abuso de álcool e não de maconha, pó, crack ou cigarro.

Voltando. Alberto Libânio acerta no essencial: “sou a favor da descriminalização das drogas e da liberação de seu uso controlado, desde que todo o processo, da fabricação ao consumo, esteja sob administração da saúde pública e tenha, por objetivo, livrar o usuário da dependência e erradicar o narcotráfico”, foi no fígado.

Frei Betto soma-se lindamente ao nosso maior gênio brasileiro: nosso Chico

“De mão em mão o ladrão
Relógios distribuía
E a polícia já não batia
De noite raiava o sol
Que todo mundo aplaudia
Maconha só se comprava
Na tabacaria
Drogas na drogaria”[ii]

Mais do Carlos Alberto: “ qual a solução? Uma delas reside no fator pedagógico, no resgate da autoestima dos frequentadores da Cracolândia. Como eles são tratados pela polícia? Como indesejados, viciados, vagabundos e nojentos. E pelos comerciantes e vizinhos?”

Aqui Frei Betto dá uma simplificadinha. Há certo idealismo na proposta.

A “solução” reside na mudança das condições materiais das pessoas, antes de tudo. Por isso o “Programa de Braços Abertos” da administração de Fernando Haddad[iii] na Prefeitura de São Paulo é tão fantástico – e devia ser replicado por todos governos progressistas do Brasil.

Trata-se de permitir que as pessoas não fiquem 24h nas ruas, colocá-las em quartos de hotel, oferecer trabalhos adequado às limitações delas, pagá-las. A cada dia que atuavam nas frentes de trabalho, os participantes do programa recebiam seu pagamento.

E não havia opressão moral, repressão, controle. Cada cidadão usava autonomamente o dinheiro que ganhou trabalhando. Tutela não vale, muito menos paternalismo. Aliás, é um debate parecido com o que houve lá no início do Bolsa Família.

Ah, como esses pobres vão gastar esse dinheiro? Vão tudo se embriagar com cachaça! Dar dinheiro pra craqueiro? Hotel para essa ralé?

Agora volto ao meu mantra: a esquerda precisa sair do senso comum! Romper com o conservadorismo. Parar de querer mimetizar Ratinho, Siqueira Jr, Datena. Estudar esses temas.

Política de drogas deve ser tratada cientificamente levando em consideração as melhores evidências empíricas e teóricas.

Se a gente não enfrentar esse tema logo, logo a cannabis sativa e todas seus derivados serão legalizados. Que bom!

Depende. Como se dará o processo? Será por pressão dos EUA, que virão em breve a monopolizar nosso mercado – obrigando-nos a importar tudo deles?

Uma dica cultural. Vejam a série de comédia (Disjointed) protagonizada pela genial Kathy Bates, dona de uma lojinha na Califórnia onde comercializa tudo que vocês possam imaginar relacionado à weed, dope, grass, ganja, pot, marijuana; obviamente, só para efeitos medicinais (em 2017 nem na Califórnia ainda se havia legalizado o uso recreativo).

Aliás, por que defender apenas a legalização da Cannabis? Confesso que essa parte da esquerda gratiluz/haribô/hiponga – que só atua em causa própria – me cansa demais.

Por que Marcha da Maconha e não marcha pelo fim da guerra às drogas e pela legalização? (Pior são os argumentos hipongas de que maconha é ancestral, remédio etc. e tal – o resto é química! Como assim?)

Enfim, até do ponto de vista estritamente capitalista a atual política de drogas é arcaica e vai se tornando cada vez mais disfuncional. Bíblia dos liberais chics, a revista The Economist, defendeu em outubro de 2022 a legalização da cocaína, criticando a timidez de Joe Biden!!!.[iv]

Quando neoliberais imperialistas tem posições menos reacionárias e caretas que boa parte da esquerda, não seria hora de parar, estudar, pensar e mudar? E viva Frei Betto por colocar o dedo na ferida!

Todavia, a matança e o encarceramento em massa de jovens pretos e pobres só pode ser enfrentada com a desmilitarização das PMs e com a legalização e regulamentação de todas as drogas. O resto é hipocrisia, ou boa vontade idealista de certo progressismo branco classe média – somado ao pragmatismo conservador (e anticientífico) da maioria dos dirigentes de esquerda.

Para não mencionar a onipresente tentativa de “dialogar” com o fundamentalismo cristão, ao invés de tentar politizar as coisas – discutindo a vida concreta, material, combatendo qualquer tipo de discriminação (“atire a primeira pedra quem não tem pecado; “o deus grande não faz acepção de pessoas”).

Legalize djá!

*Julian Rodrigues, jornalista e professor, é militante do PT e ativista do movimento LGBTI e de Direitos Humanos.

Notas


[i] https://altamiroborges.blogspot.com/2023/09/cracolandia-e-subjetividade.html

[ii] Outros Sonhos: Chico Buarque, 2006, no fantástico álbum Carioca

[iii] https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/upload/saude/DBAAGO2015.pdf

[iv] https://www.economist.com/leaders/2022/10/12/joe-biden-is-too-timid-it-is-time-to-legalise-cocaine


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
O segundo choque global da China
06 Dec 2025 Por RENILDO SOUZA: Quando a fábrica do mundo também se torna seu laboratório mais avançado, uma nova hierarquia global começa a se desenhar, deixando nações inteiras diante de um futuro colonial repaginado
2
Energia nuclear brasileira
06 Dec 2025 Por ANA LUIZA ROCHA PORTO & FERNANDO MARTINI: Em um momento decisivo, a soberania energética e o destino nacional se encontram na encruzilhada da tecnologia nuclear
3
Simulacros de universidade
09 Dec 2025 Por ALIPIO DESOUSA FILHO: A falsa dicotomia que assola o ensino superior: de um lado, a transformação em empresa; de outro, a descolonização que vira culto à ignorância seletiva
4
A guerra da Ucrânia em seu epílogo
11 Dec 2025 Por RICARDO CAVALCANTI-SCHIEL: A arrogância ocidental, que acreditou poder derrotar a Rússia, esbarra agora na realidade geopolítica: a OTAN assiste ao colapso cumulativo da frente ucraniana
5
Asad Haider
08 Dec 2025 Por ALEXANDRE LINARES: A militância de Asad Haider estava no gesto que entrelaça a dor do corpo racializado com a análise implacável das estruturas
6
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
7
Uma nova revista marxista
11 Dec 2025 Por MICHAE LÖWY: A “Inprecor” chega ao Brasil como herdeira da Quarta Internacional de Trotsky, trazendo uma voz marxista internacionalista em meio a um cenário de revistas acadêmicas
8
Raymond Williams & educação
10 Dec 2025 Por DÉBORA MAZZA: Comentário sobre o livro recém-lançado de Alexandro Henrique Paixão
9
Considerações sobre o marxismo ocidental
07 Dec 2025 Por RICARDO MUSSE: Breves considerações sobre o livro de Perry Anderson
10
O agente secreto
07 Dec 2025 Por LINDBERG CAMPOS: Considerações sobre o filme de Kleber Mendonça Filho, em exibição nos cinemas
11
Impactos sociais da pílula anticoncepcional
08 Dec 2025 Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA: A pílula anticoncepcional não foi apenas um medicamento, mas a chave que redefiniu a demografia, a economia e o próprio lugar da mulher na sociedade brasileira
12
Insurreições negras no Brasil
08 Dec 2025 Por MÁRIO MAESTRI: Um pequeno clássico esquecido da historiografia marxista brasileira
13
As lágrimas amargas de Michelle Bolsonaro
07 Dec 2025 Por CAIO VASCONCELLOS: Estetização da política e melodrama: A performance política de Michelle como contraponto emocional e religioso ao estilo agressivo de Jair Bolsonaro
14
A armadilha da austeridade permanente
10 Dec 2025 Por PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS: Enquanto o Brasil se debate nos limites do arcabouço fiscal, a rivalidade sino-americana abre uma janela histórica para a reindustrialização – que não poderemos atravessar sem reformar as amarras da austeridade
15
O empreendedorismo e a economia solidária – parte 2
08 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Quando a lógica do empreendedorismo contamina a Economia Solidária, o projeto que prometia um futuro pós-capitalista pode estar reproduzindo os mesmos circuitos que deseja superar
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES