Crise do judaísmo contemporâneo

Imagem: Roman Odintsov
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Por SAMUEL KILSZTAJN*

A atual crise do sionismo pode estar se alastrando para uma crise do judaísmo contemporâneo

Será que o sionismo vale mais do que o judaísmo?

As religiões abraâmicas abrangem hoje 4 bilhões de pessoas, entre os 8 bilhões de habitantes do planeta; e compreendem 20 milhões de judeus, 2 bilhões de cristãos e 2 bilhões de muçulmanos. Entre os 20 milhões de judeus, aproximadamente sete milhões vivem nos Estados Unidos, sete milhões em Israel e seis milhões em outros países, principalmente na Europa. E os judeus diferenciam-se ainda por origem (ashkenazim/germânicos do Leste Europeu, que representam 80% do total, sefardim/espanhóis e mizrahim/orientais), corrente religiosa (ortodoxos, conservadores, reformistas, laicos), matiz política etc.

Entre 1881 (início dos pogroms no Império Czarista) e 1914 (início da Primeira Guerra Mundial), dois milhões de judeus do Leste Europeu imigraram para os Estados Unidos. A grande maioria desses imigrantes identificava-se com os ideais socialistas que sacudiam o Império Russo. Os judeus eram internacionalistas e antimilitaristas; o sionismo era então muito pouco expressivo. A literatura yiddish ilustra o viés marcadamente humanista e popular desses judeus. Em Um banquete para os pobres, Mordechaj Spektor narrou uma greve de mendigos que reivindicavam um rublo por pessoa para se dignarem a comparecer ao casamento da filha caçula de um ricaço, de modo a permitir que ele cumprisse o ato meritório de oferecer um banquete para os pobres.

O Moderno Sionismo Político e os esforços para a criação de um Estado Judeu em território palestino ganharam proeminência após o Holocausto da Segunda Guerra Mundial, como uma alternativa para o assentamento dos judeus sobreviventes, acossados de suas pátrias de origem. Para os países membros das Nações Unidas era mais conveniente a criação de um Estado Judeu na Palestina do que permitir a imigração dos judeus sobreviventes. O Congresso dos Estados Unidos só aprovou a legislação que admitia a imigração de sobreviventes judeus em 27 de maio de 1948, duas semanas após a criação do estado de Israel, que deveria absorver a maior parte dos refugiados.

Os judeus norte-americanos são tradicionalmente democratas e posicionam-se a favor da justiça social. Pesquisas recentes realizadas nos Estados Unidos revelam que os americanos judeus e não judeus estão cada vez mais tendendo a caracterizar Israel como um estado racista e se posicionar a favor da causa Palestina. A crítica à política israelense é especificamente categórica em meio à população jovem, mesmo entre os evangélicos, que são mais alinhados ao estado de Israel do que os próprios judeus norte-americanos.

Contudo, muitas das instituições judaicas progressistas, embora críticas ao avanço da direita em Israel, ainda não se posiciona abertamente contra os valores xenófobos do estado de Israel e se restringe a escrever cartas tímidas que se baseiam em declarações teóricas que mascaram a violência empreendida contra os palestinos, em uma manifestação de dissonância cognitiva. A Conferência de Presidentes – COP, que agrega cinquenta grandes organizações judaicas nos Estados Unidos, frente aos recentes passos na reforma do judiciário em Israel, se limitou a pedir “consenso” aos israelenses. Mas, ao que tudo indica, a atual crise do sionismo pode estar se alastrando para uma crise do judaísmo contemporâneo.

Organizações judaicas abertamente antissionistas, como a Voz Judaica pela Paz – JVP e a Rede Internacional Judia Antissionista – IJAN, naturalmente, não fazem parte da COP, que se recusou a abrigar até mesmo a organização pacifista J Street, embora esta se declare Pró-Israel. No início de agosto de 2023, o tradicional Círculo dos Trabalhadores rompeu com a COP por questões de princípios, por discordar de seu silenciamento frente à deterioração da democracia e da justiça social nos Estados Unidos e em Israel; e de sua definição de antissemitismo, que inclui “o ataque ao estado de Israel, concebido como uma coletividade judaica”. O Círculo dos Trabalhadores, fundado nos Estados Unidos há 123 anos, promove a cultura judaica e a língua yiddish dos judeus ashkenazim para um mundo justo, melhor e mais bonito para toda a humanidade. Para um bom sionista, a mera menção da palavra palestino já é uma manifestação antissemita; e judeus e gentios antissionistas são considerados antissemitas. Para os judeus sionistas, um judeu não sionista é pior que um palestino muçulmano, porque é traidor, enquanto o palestino está advogando em causa própria.

O yiddish sempre foi uma língua sem estado e sua única arma sempre foi a caneta. Entre os judeus, quem usa a coroa não é o rei, é o livro, a Torah, a Bíblia. Na formação do estado de Israel, ao se empenharem em sobrepujar a passividade com que os judeus enfrentaram os pogroms e o Holocausto, os israelenses decidiram soterrar a cultura e a língua yiddish. O hebraico, língua sacra, foi declarado o idioma oficial de Israel; o árabe foi declarado língua reconhecida; e o yiddish foi acossado. Para os judeus que não apoiam a política do estado de Israel em relação à população palestina muçulmana, a valorização do yiddish, a milenar língua materna dos judeus do Leste Europeu, tem contribuído para reiterar a sua identidade enquanto judeus. E, junto com a língua, resgata-se a vasta e rica literatura, a música e toda a cultura humanista e pacifista desenvolvida pelo povo judeu na diáspora, cultura que o estado de Israel não conseguiu destruir.

Estamos assistindo hoje a um movimento de revalorização do yiddish, que pode ser conferido na programação de instituições como o Yivo Institute for Jewish Research, fundado em Vilna em 1925 e transferido para Nova York em 1940; o Yiddish Book Center, fundado em 1980 em Massachusetts; e inúmeras apresentações teatrais e festivais de música klezmer em vários países ao redor do mundo. Além disso, estão proliferando cursos de yiddish e tem crescido o interesse acadêmico pela língua e literatura yiddish em diversas universidades.

*Samuel Kilsztajn é Samuel Kilsztajn é professor titular da PUC-SP. Autor, entre outros livros, de Shulem, Returnees e Yiddish (https://amzn.to/3ZkegH7).


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