Crítica da lei penal

Imagem: Marina Gusmão
image_pdf

Por SILVANE ORTIZ*

O direito penal de um país nos apresenta um vislumbre das condições evolutivas de sua sociedade

Dizem popularmente que o direito penal de um país nos apresenta um vislumbre das condições evolutivas de sua sociedade. Ao prescrutamos seu ordenamento, temos a possibilidade de entender como os poderes postos tratam, estruturalmente, as diferenças e a diversidade de seu contingente social. No Brasil, a vida, bem fundamental como definido em nossa Constituição de 1988, e a dignidade que deve lastrear tal proposição, são diuturnamente vilipendiadas, institucionalmente, pelo sistema penal positivado e aplicado. A função da pena, desde de seu imemorial advento é, precipuamente, proteger bens, não vidas. Podemos, inclusive, verificar o quanto essa proposição se asseverou com o advento das codificações de tipos que funcionam, em verdade, como um menu de opções para o controle social.

A política penal traz em seu arcabouço a premissa de pautar a sociedade, por meio de sanções, de modo a tornar a convivência humana pacífica ou, ao menos, menos belicosa, sendo assim parte do contrato social que nos tornamos signatários, obrigatoriamente, ao nascer. Porém, algumas questões surgem quando começamos a compreender a forma como esse apaziguamento é pensado e aplicado. Ele se impõe a todos da mesma maneira? Os bens protegidos e as sanções impostas são correlacionados coerentemente?

Quando nos debruçamos sobre tal problemática, verificamos uma completa inversão de valores (não monetários, por óbvio). Os princípios limitadores ao poder de punir do Estado, que deveriam conferir segurança social, como o da igualdade, ou o da proporcionalidade, acabam por converter-se em completas falácias discursivas. A desproporcionalidade é calcada e, simultaneamente, uma das motivadoras da desigualdade que atravessa, desfazendo em frangalhos, o tecido social.

Devemos manter nossa capacidade crítica para que possamos enxergar as falhas desse sistema autopoiético, onde a capacidade de reprodução da desigualdade parece se alimentar de um “punitivismo” que não deixa a diferença, mas sim a desigualdade, ser a métrica da diversidade de nossa sociedade. Enquanto não houver igualdade real nas condições de reprodução da vida, não há de se falar em isonomia, ou termo que o valha, como principiologia para a aplicação de um direito moldado e exercido para punir o comportamento, ou melhor, os indesejáveis e não os – agora de fato – comportamentos inaceitáveis.

Ainda que na atual condição evolutiva de nossa sociedade, permeada pelo ideal de progresso, a ordem seja o fim último do direito, esse deve ser encarado como uma salvaguarda do ser, antes de como um garante ao mero direito a ter. A tarefa que se impõe a quem luta por uma sociabilidade minimamente digna, dentro de um sistema que prima pela sujeição à ignobilidade, é não se deixar prostrar ante as barreiras erigidas para a contenção do incorrigível, indesejável. É através da constante crítica e ação propositiva que forçaremos esses entraves evolutivos no caminho de uma sociedade justa, pois diversa, não desigual.

*Silvane Ortiz é graduanda em direito na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

 

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
O segundo choque global da China
06 Dec 2025 Por RENILDO SOUZA: Quando a fábrica do mundo também se torna seu laboratório mais avançado, uma nova hierarquia global começa a se desenhar, deixando nações inteiras diante de um futuro colonial repaginado
2
Energia nuclear brasileira
06 Dec 2025 Por ANA LUIZA ROCHA PORTO & FERNANDO MARTINI: Em um momento decisivo, a soberania energética e o destino nacional se encontram na encruzilhada da tecnologia nuclear
3
Simulacros de universidade
09 Dec 2025 Por ALIPIO DESOUSA FILHO: A falsa dicotomia que assola o ensino superior: de um lado, a transformação em empresa; de outro, a descolonização que vira culto à ignorância seletiva
4
A guerra da Ucrânia em seu epílogo
11 Dec 2025 Por RICARDO CAVALCANTI-SCHIEL: A arrogância ocidental, que acreditou poder derrotar a Rússia, esbarra agora na realidade geopolítica: a OTAN assiste ao colapso cumulativo da frente ucraniana
5
Asad Haider
08 Dec 2025 Por ALEXANDRE LINARES: A militância de Asad Haider estava no gesto que entrelaça a dor do corpo racializado com a análise implacável das estruturas
6
Uma nova revista marxista
11 Dec 2025 Por MICHAE LÖWY: A “Inprecor” chega ao Brasil como herdeira da Quarta Internacional de Trotsky, trazendo uma voz marxista internacionalista em meio a um cenário de revistas acadêmicas
7
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
8
Raymond Williams & educação
10 Dec 2025 Por DÉBORA MAZZA: Comentário sobre o livro recém-lançado de Alexandro Henrique Paixão
9
Considerações sobre o marxismo ocidental
07 Dec 2025 Por RICARDO MUSSE: Breves considerações sobre o livro de Perry Anderson
10
O agente secreto
07 Dec 2025 Por LINDBERG CAMPOS: Considerações sobre o filme de Kleber Mendonça Filho, em exibição nos cinemas
11
Impactos sociais da pílula anticoncepcional
08 Dec 2025 Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA: A pílula anticoncepcional não foi apenas um medicamento, mas a chave que redefiniu a demografia, a economia e o próprio lugar da mulher na sociedade brasileira
12
Insurreições negras no Brasil
08 Dec 2025 Por MÁRIO MAESTRI: Um pequeno clássico esquecido da historiografia marxista brasileira
13
A armadilha da austeridade permanente
10 Dec 2025 Por PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS: Enquanto o Brasil se debate nos limites do arcabouço fiscal, a rivalidade sino-americana abre uma janela histórica para a reindustrialização – que não poderemos atravessar sem reformar as amarras da austeridade
14
As lágrimas amargas de Michelle Bolsonaro
07 Dec 2025 Por CAIO VASCONCELLOS: Estetização da política e melodrama: A performance política de Michelle como contraponto emocional e religioso ao estilo agressivo de Jair Bolsonaro
15
O empreendedorismo e a economia solidária – parte 2
08 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Quando a lógica do empreendedorismo contamina a Economia Solidária, o projeto que prometia um futuro pós-capitalista pode estar reproduzindo os mesmos circuitos que deseja superar
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES