Crônica do país assassinado

Imagem: Jan van der Zee
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Por JURANDIR FREIRE COSTA*

Comentário sobre o livro O soldado antropofágico, de Tales Ab’Saber

Data: 1824-1826. Contexto: anos iniciais do Primeiro Reinado brasileiro. Cena: um mercenário alemão, Carl Schlichthorst, narra um episódio do cotidiano em seu livro O Rio de Janeiro como é, 1824-1825 – uma vez e nunca mais.

“…estirado num banco de pedra à frente de uma igreja, olhando o horizonte do mar,… ouvi pertinho de mim o som de uma marimba tocada por uma negrinha mimosa que se aproximara e me oferecera doces. Para não desapontar a menina, comprei um pedaço de marmelada, bebi de sua bilha e pedi-lhe que dançasse. Não se fez de rogada muito tempo…começou o fado, dança que na Europa seria julgada indecente e que aqui é inteiramente popular entre velhos e moços, brancos e pretos. ….A canção que a bela filha da África cantou, enquanto dançava, deveria ser mais ou menos esta:

Na terra não existe céu,
Mas se nas areias piso,
Desta praia carioca
Penso estar no paraíso!.”

A canção continuava, bem como o relato. O importante, contudo, é notar a utilização que Tales Ab’Sáber faz do trecho relatado. Num ritmo encantatório, ele desdobra o significado da cena em seu mágico O soldado antropofágico – Escravidão e não-pensamento no Brasil. Palavras, frases e figuras retiradas da música popular; do hinário “patriótico”; da poesia; da prosa ou das artes plásticas brasileiras são usadas numa associação livre que tempera o rigor da análise com o uso lúdico-estético da língua. O resultado “é a montagem de contradições entre modos de ser na sociedade escravista, imagens e psiquismos possíveis e suas posições no quadro do poder nacional, cujo conflito suspenso produz uma imagem única, chamada Brasil em suas origens”.

Francisco Bosco observou, de forma precisa, que seria incorreto descrever o trabalho como uma “versão psicanalítica da história brasileira”, com o conhecido vocabulário freudiano: traumas, repetições, recalques ou sublimações. De acordo. Isso, entretanto, não impede que se veja os vestígios da psicanálise onde eles existem.

Ao ler Tales, é quase impossível deixar de associar a ‘cena Schlichthorst’ a uma cena onírica. Comum as duas é o poder de condensação, dramatização dos conteúdos latentes ignorados pela percepção desinformada. No caso da cena cultural, o que é trazido à tona são manifestações eróticas insinuadas; táticas de sobrevivência dos mais frágeis; formas hierárquicas de poder e opressão; rebeldias incipientes ou persistentes; inovações artísticas imprevistas, em suma, formas de vida em ato que não encontram representação à altura de sua relevância cultural, política, ética e estética.

 Nisto reside a tese central de Tales: a inequívoca matriz da cultura brasileira foi construída por um povo que até hoje, em grande medida, viu-se privado da capacidade de representar aquilo que vive e produz. Os elementos que compõem a cena, de um lado um narrador estrangeiro, de outro uma escravizada brasileira, fornecem o código da genealogia da crueldade de nosso ethos cultural. O Brasil produtivo, positivo, que inventa modos de vida, de erotismo e de convivialidade só é dito por estrangeiros – Debret, Rugendas, Expilly, Luccock, Graham, Ewbank,-, e não por brasileiros do estamento branco/mestiço local. O antigo estrato escravocrata e seu herdeiro atual “neoescravista” impediram que a imensa maioria do ‘país Brasil’ conseguisse elevar ao nível do pensamento emancipatório a divisão entre os que pouco fazem e tudo têm e os muitos que fazem quase tudo e não têm nada. O estrato senhoril da época colonial/imperial e seus continuadores da República até agora, negaram ao povo brasileiro o acesso à cidadania social, política e econômica que lhe permitiria constituir um pensamento condizente com o valor do que produz culturalmente.

Em suma, a não-representação, o não-pensamento sobre a escravidão permitiu que os piores horrores fossem perpetrados pelos senhores contra os indivíduos escravizados. Posto que o nome “não podia ser pronunciado”, como disse Joaquim Nabuco, era como se a coisa não existisse. Fora do alcance da palavra, tudo era permitido.

Esta é uma fundamental contribuição de Tales ao tema da cultura popular brasileira e da carência de representação política de seus sujeitos. O sujeito “povo” será silenciado na história do país e o “sujeito do poder colonial, escravocrata, formará a base do sujeito do poder nacional”. O Brasil não foi apenas o país das “ideias fora do lugar”, ou seja, do “liberalismo escravagista”. Tornou-se, igualmente, um “lugar fora das ideias”, isto é, um experimento cultural cindido de sua possível representação crítica.

Ao lado disso, outra grande contribuição do autor parte desta primeira fratura entre experiência e representação. É neste ponto que ele traz um aporte psicanalítico que merece ser sublinhado em negrito. O estamento senhoril, além de excluir a cultura dos escravizados da unidade representativa do país, cavou uma lacuna entre ele próprio e a cultura europeia, com a qual se identificava de forma imaginária. As consequências do gesto foram humanamente destrutivas. O lugar vazio da escravidão foi ocupado pela alienação demente dos poderosos em relação a si mesmos. A escravocracia original e a neoescravocracia jamais quiseram se reconhecer no espelho da pobreza negra e mestiça, mas também jamais souberam o que fazer para ser admitidas no clube dos brancos europeus e norte-americanos que as rejeitam como membros. Criaram, então, uma terra de ninguém identitária que até hoje as assombra, na busca da identidade nacional perdida.

Esta clivagem brasileira, sublinhada por Tales a cada parágrafo, teve um custo gigantesco em vidas e sofrimentos. A camada privilegiada abusou o quanto pôde da cultura e da vida dos outros. E, no momento, em que estes outros reivindicam o estatuto de cidadão à parte inteira, a reação dos abusadores é no mínimo violenta, no máximo ensandecida e paranoide. A miséria identitária dos donos do poder volta-se contra os despossuídos ou os que falam em seus nomes, acusando-os de querer de “destruir” a unidade nacional; a “nossa democracia racial”; a identidade de um povo heroico, capaz de brados retumbantes.

Descrito em outra chave, os dilemas da branquitude brasileira romperam a barreira do desmentido e se mostraram á céu aberto. Ao querer posar de vitrine da identidade nacional, sem nada a ter a exibir, exceto a cultura pobre, negra e mestiça que despreza e procura esconder, o escravismo e o neoescravismo criaram um impasse: ou se calam ou são obrigados a dar voz ao que gostariam de emudecer. Donde as tentativas burlescas de inventar um mito de origem que os aproximasse do fetiche da branquitude europeia/norte-americana.

Tales dá alguns exemplos históricos de tentativas desse tipo. Uma delas, é o poema “Nicteroy”, de Januário da Cunha Barbosa, um dos fundadores do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro. No poema, o escritor tenta enquadrar o Brasil na tradição greco-latina: “Niterói, filho do Gigante Minas e de Atlântida, era nascido de poucos dias…”. A baía de Guanabara e suas montanhas são chamadas a inscrever o Brasil na mais castiça tradição europeia. “Belas origens, como diz Tales, afirmativa de nossa veneranda tradição desmiolada”. Outro exemplo, tão desmiolado quanto, porém mais brutal: a estreia de O guarani, de Carlos Gomes, em 1870. A ópera, baseada no livro de José de Alencar, narra o mito da origem da nacionalidade brasileira. No palco, Cecília e Peri, fidalgos e caciques europeizados, e nenhum negro. Negro mesmo, só André Rebouças, único negro na plateia, e o pessoal de serviço: motoristas, montadores do cenário, servidores de comidas e bebidas e assim por diante.

O “kitsch arcaizante e politicamente reacionário” ganhará outras versões, diz o autor, e apenas em momentos luminosos da cultura virá a ser revelado. Foi assim no “Brás cubismo” de Machado, no modernismo de 1922 e no tropicalismo. Nesses eventos intelectuais a ambiguidade ou a brutalidade do escravismo e do neoescravismo foi denunciada. Em Machado, o solipsismo cultural e político “entre ricos” aparece na ironia com que são tratados as questões pessoais dos personagens de seus últimos romances; no modernismo e no tropicalismo o artifício crítico é outro. A cultura popular deixa de ser decoração de sambódromos, praias quentes e sensuais, estádios e rodas de samba para inglês ver, e é reconhecida em seu rico substrato ético/estético.

A constatação de Tales nos permite alargar a compreensão psicanalítica do que foi afirmado. Ao pensarmos na prática sociocultural do escravismo e do neoescravismo, não se pode deixar de pensar no que se define como recusa ou desmentido em psicanálise. O desmentido, segundo Freud, é uma suspensão do julgamento da realidade provocada por um traumatismo que divide o ego do sujeito. Uma parte do ego reconhece o que percebe, a outra desconhece a natureza do percebido. Para compensar o desconhecimento, no lugar do fato traumático percebido, surge o fetiche, substituto reificado da realidade recusada.

A dupla cisão identitária mencionada é um exemplo dos efeitos culturais defesa pelo desmentido. Em primeiro lugar, a escravocracia e a neoescravocracia esforçaram-se para apagar as representações da experiência escravizada que lhes trouxe ganhos em gozo estético, sexual ou material. Para tanto, tentaram rebaixar a cultura concreta do povo ao estatuto de entretenimento ou de piadas feitas para conversações volúveis. Em segundo lugar, quiseram, inutilmente, aparecer aos olhos dos ocidentais brancos como livres das “nódoas” da escravização. Aqui, a estratégia do desmentido foi a de buscar embranquecer os corpos negros e mestiços e as próprias visões de mundo, ao fazerem suas as questões intelectuais e sentimentais dos povos “civilizados”.

 Visto do aspecto psicológico, importa sobretudo ressaltar os efeitos do desmantelamento dessa montagem. Desse ângulo, é possível supor que boa parte das atuais reações políticas de ódio seja condicionada pela irrupção do que foi desmentido na história cultural brasileira. Dois fatos apoiam esta hipótese. O primeiro é a forte rejeição do ideal de branquitude por parte da descendência social, racial e cultural dos escravizados. Enquanto houve cumplicidade dos mais frágeis na aceitação do ideal de embranquecimento, a intensidade da opressão cultural passou relativamente despercebida. A ficção da “democracia racial” e a “comunhão” nos rituais festivos nacionais – futebol, carnaval, eventos musicais – pareciam comprovar a eficácia do desmentido. No momento em que ocorreu uma ruptura do pacto implícito entre opressores e oprimidos, a engrenagem começou a emperrar.

 A rejeição do ideal de branquitude por importantes setores da vida intelectual, cultural e política dos brasileiros provocou uma crise na identidade do neoescravismo. Estes novos setores não apenas disseram não ao fetiche da branquitude como iniciaram sua desconstrução sistemática. Num movimento inédito, pela qualidade da participação política e cultural, os excluídos de representação criaram seus próprios paradigmas de discurso, análise e legitimação intelectual.

A era da “política sem povo”, da “vida sem representação”, começou a desmoronar. A reação dos neoescravistas foi catastrófica. Sem nada a contrapor ao que é motor e substrato da cultura brasileira, partiram para o ataque do que parece ameaçar sua fantasiosa identidade cultural. Voltaram a recorrer a significantes vazios e decrépitos como âncora de seus ideais identitários: bandeira, nação, pátria, brasil, família e outros. Mas, uma vez que alguém grita “o rei está nu”, dificilmente se consegue vestir novamente o rei. Por essa razão, toda inveja, toda nulidade, toda mentira, toda insignificância, toda superfluidade culturais acumuladas por séculos vêm sendo projetadas nos inimigos da “civilização” branca. O que é odioso em si é projetado no outro. As velhas acusações de imoralidade, preguiça, ignorância, animalidade e outras feitas contra os escravizados, sobretudo ao longo do séc. XIX, voltaram a ser lançadas contra os grupos oprimidos, no intuito de defender a comédia do ideal de branquitude racial/ político/cultural brasileiro.

Esta defesa narcísica de sobrevivência da identidade leva-nos a entender um pouco mais como a crueldade silenciosa de tanto tempo pôde explodir com uma força inaudita. Antes, o apartheid político/ econômico/racial contava com um precioso aliado, a ideologia da democracia racial. Hoje, isso voou pelos ares. Só a má fé e a mais tacanha ideologia permite que se acredite no inacreditável. A crueldade estrutural, exercida sem manifestações explícitas de ódio, não conseguiu mais manter-se em pé. Mostrou, enfim, de que monstruosidade é feita.

O outro fator responsável pela desmontagem do fetiche da branquitude deriva da segunda cisão apontada por Tales. Esta última, a cisão entre a identidade real do neoescravismo e a identidade ilusória calcada no ideal de branquitude europeu/norte-americano, também mostrou sua precariedade como defesa contra a diferença do outro. O neoescravista não quer ser identificado como negro/mestiço/pobre e quer possuir a distinção que confere aos ocidentais brancos e ricos. O irônico, todavia, é que o atraso cultural em que sempre viveu não o deixou perceber o anacronismo dos ideais que cultiva. No instante em que ficou órfão de reconhecimento identitário pelo povo, o neoescravista foi simultaneamente deslegitimado por aqueles a quem devota o culto dedicado a todo fetiche, isto é, culto cego e incondicional. Os porta-vozes autorizados do ideal de branquitude – os sujeitos raciais/culturais europeus/norte-americanos- não apenas continuaram a negar-lhe o ingresso no exclusivo clube da branquitude como viram na reação truculenta contra os oprimidos mais uma prova da sua incapacidade de ser “ocidental”.

A demanda de reconhecimento do sujeito neoescravista foi duplamente frustrada. Do lado dos “inferiores” como dos “superiores”, a resposta foi não!. Não à “boçalidade do Mal”, como disse Tales; não à apropriação fraudulenta de uma cultura feita por outros e jamais reconhecida pelo impostor que dela se apropriou; não à farsa de uma identidade que elegeu o fetiche da branquitude como simulacro do pertencimento a um mundo cultural ao qual nunca pertenceu. A cultura do ódio tem algumas de suas raízes na frustração impotente dos que assumiram um semblante de identidade, cuja inconsistência foi, finalmente, desmascarada.

Com O soldado antropofágico – Escravidão e não-pensamento no Brasil, Tales AB’Sáber fez um gol de letra em nosso panorama intelectual. Selo de excelência da primeira à última página. Um ponto alto no pensamento brasileiro, mas também sopro de solidariedade e solicitude, num momento em que o Brasil vinha sendo tão vilipendiado. Em seu texto encontramos o eco da mesma indignação ética convertida em virtude estética de um Lúcio Cardoso. Assim como Lúcio Cardoso na Crônica da casa assassinada, ele fez da dor júbilo artístico; do enigma afetivo, curiosidade literária; do trauma paralisante, liberdade e espontaneidade criadoras. O que de melhor se espera de um psicanalista/cidadão brasileiro? De minha parte, nada a acrescentar.

*Jurandir Freire Costa é professor titular no Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Autor, entre outros livros, de O vestígio e a aura (Garamond).

Referência


Tales AB’Sáber. O soldado antropofágico – Escravidão e não-pensamento no Brasil. São Paulo, n-1 Hedra, 2022, 334 págs (https://amzn.to/3Oz8jBm).

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