Cuba Libre, em breve Covid-Libre

Marcel Duchamp, The Bride Stripped Bare by Her Bachelors, Even (The Large Glass) (1915–23, Museu de Arte da Filadélfia).
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Por HELEN YAFFE*

A ilha caribenha tornou-se uma liderança mundial em biotecnologia porque possui um Estado socialista

No dia 23 de março de 2021, o primeiro-ministro britânico Boris Johnson disse a um grupo de deputados do Partido Conservador que “nosso sucesso com a vacina se deve ao capitalismo, à ganância, meus amigos”. Johnson articulava, em sua fala, o dogma de que a busca pelo benefício privado no livre mercado capitalista leva a resultados eficientes. A verdade, contudo, é que as conquistas do Reino Unido no desenvolvimento da vacina Oxford-AstraZeneca e na campanha nacional de vacinação se devem mais aos investimentos estatais do que ao mecanismo de mercado. Recursos do governo subsidiaram o desenvolvimento da vacina na Universidade de Oxford, e foi o Serviço Nacional de Saúde (NHS), financiado pelo estado, que executou o programa de vacinação. Johnson não admitiu que, graças ao capitalismo e à ganância, a Grã-Bretanha tem, hoje, a quinta pior taxa de mortes por Covid-19 no mundo, com mais de 126.500 mortes (cerca de 1.857 por milhão) – e esse número continua crescendo.

O governo britânico, como a maioria dos regimes neoliberais, recusou-se a adotar as medidas necessárias para desacelerar e interromper a transmissão comunitária. Ele não foi capaz, no início, de fornecer equipamentos de proteção individual e outros recursos aos trabalhadores da saúde e dos cuidados sociais, o que poderia ter salvo as vidas de centenas de profissionais que estavam na linha de frente e morreram em razão disso. Ele contratou empresas privadas para a execução de atividades essenciais, a maioria delas com pouca ou nenhuma experiência relevante. Por exemplo, em vez de equipar o sistema comunitário de médicos generalistas do NHS para cuidar do ‘rastreamento’ da infecção, o governo distribuiu 37 bilhões de libras à Serco para que ela gerenciasse parte do sistema. Em termos de saúde pública, a gestão foi um desastre; mas mensurada pelos celebrados padrões de capitalismo e ganância de Boris Johnson, ela se superou. Os maiores beneficiários da resposta britânica à pandemia foram as empresas privadas, realizando enormes lucros. Cerca de 2.500 consultores das empresas Accenture, Deloitte e McKinsey recebem uma taxa diária média de 1000 libras, alguns recebendo 6.624 libras por dia.

Johnson dispôs, agora, um mapa para a reabertura da economia. Como resultado, até mesmo o cenário mais otimista prevê uma terceira onda entre setembro de 2021 e Janeiro de 2022, resultando em 30.000 mortes adicionais na Grã-Bretanha. Essas mortes são evitáveis. Mas, justamente porque o governo britânico é movido pelo capitalismo e pela ganância, ele insiste que temos que aprender a ‘viver com o vírus’ para que os negócios dos negócios possam continuar.

Contrariamente às afirmações de Johnson, a pandemia deixou claro que as necessidades da saúde pública não podem ser adequadamente atendidas em um sistema baseado no lucro. Aliás, é a ausência do motivo capitalista de lucro que está por detrás da excepcional resposta doméstica e internacional à Covid-19 pela Cuba socialista, que possui, hoje, cinco vacinas em testes clínicos e estará, em breve, dentre as primeiras nações a vacinar toda a sua população.

Ao reagir rápida e decisivamente, mobilizando seu sistema público de saúde e seu internacionalmente renomado setor de biotecnologia, Cuba manteve o contágio e as mortes em níveis baixos. Em 2020, Cuba confirmou um total de 12.225 casos de coronavírus e 146 mortes em uma população de 11.2 milhões, uma taxa dentre as menores no hemisfério ocidental. Em novembro de 2020, os aeroportos foram reabertos, o que levou a um surto com mais infecções em janeiro de 2021 do que em todo o ano anterior. Até 24 de março de 2021, Cuba registrou menos de 70.000 casos e 408 mortes. A taxa de mortes era de 35 por milhão e a mortalidade foi de apenas 0,59% (sendo 2,2% no mundo e 2,9% na Grã-Bretanha). Em um ano, 57 brigadas de médicos especialistas do Contingente Internacional Henry Reeve cubano trataram 1.26 milhões de pacientes Covid em 40 países; eles se somaram a 28.000 profissionais de saúde cubanos que já trabalhavam em 66 países. As conquistas de Cuba ficam ainda mais extraordinárias quando se atenta ao fato de que, a partir de 2017, o governo Trump punitivamente impôs 240 novas sanções, ações e medidas para endurecer o bloqueio sexagenário a Cuba, incluindo 50 medidas adicionais durante a pandemia que custaram, apenas ao setor de saúde, mais de 200 milhões de dólares.

Cuba persistiu na ofensiva contra a Covid-19, mobilizando seu sistema de saúde pública – focado na prevenção e baseado nas comunidades – para a realização de visitas diárias às residências com o objetivo de ativamente detectar e tratar casos, além de direcionar o setor de ciências médicas para que esse se adaptasse e produzisse novos tratamentos para pacientes e vacinas específicas para a Covid-19. Tais avanços trazem esperança não apenas para Cuba, mas para o mundo.

O que as vacinas cubanas têm de especial?

Cerca de 200 vacinas estão sendo desenvolvidas pelo mundo; até 25 de março de 2021, 23 candidatas tinham avançado até a etapa 3 dos testes clínicos. Duas delas eram cubanas (a Soberana 2 e a Abdala). Nenhum outro país latinoamericano possuía uma candidata nesse estágio de desenvolvimento. Cuba ainda tem mais três candidatas em estágios anteriores (Soberana 1, Soberana Plus e uma vacina intranasal, sem necessidade de injeção, chamada Mambisa). Como explicamos essa proeza? O setor cubano de biotecnologia é único; financiado e possuído inteiramente pelo estado, livre de interesses privados, seus lucros não são procurados domesticamente e suas inovações são direcionadas ao atendimento das necessidades da saúde pública. Dezenas de instituições de pesquisa e desenvolvimento colaboram, partilhando recursos e conhecimento, em vez de competindo, o que facilita o surgimento de uma via expressa da pesquisa e da inovação até os testes e a aplicação. Cuba tem a capacidade de produzir cerca de 60% a 70% dos remédios que consome internamente, um imperativo, devido ao bloqueio imposto pelos EUA e ao custo dos remédios no mercado internacional. Existe, também, uma fluidez entre universidades, centros de pesquisa e o sistema público de saúde. Esses elementos provaram-se vitais no desenvolvimento das vacinas cubanas contra a Covid-19.

Existem cinco tipos de vacinas sendo desenvolvidas globalmente:

  • Vacinas de vetor viral, que injetam um vírus inofensivo, não relacionado e modificado que porta o material genético do SARS-CoV-2 (Oxford AstraZeneca, Gamaleya e SputnikV);
  • Vacinas genéticas contendo um segmento do material genético do vírus SARS-CoV-2 (Pfizer, Moderna);
  • Vacinas contendo o vírus SARS-CoV-2 desativado (Sinovac/Butantan, SinoPharm, Bharat Biotec)
  • Vacinas atenuadas contendo o vírus SARS-CoV-2 enfraquecido (Codagenix);
  • Vacinas contendo proteínas do vírus que geram uma resposta imune (Novavax, Sanofi/GSK).

As cinco vacinas cubanas em testes clínicos são vacinas de proteína; elas carregam a porção da proteína ‘spike’ do vírus que os liga às células humanas; elas geram anticorpos neutralizantes para bloquear o processo de ligação. A Dra. Marlene Ramirez Gonzalez explica o que elas são: “vacinas de subunidade, uma das abordagens mais econômicas e o tipo sobre o qual Cuba tem o maior conhecimento e para o qual possui a maior infraestrutura. A partir da proteína S – o antígeno ou parte do vírus SARS-CoV2 que todas as vacinas contra a Covid focam porque ele leva à resposta imune mais forte em humanos – as candidatas cubanas se baseiam apenas na parte que está envolvida com o contato com o receptor da célula: o RBD (receptor-biding domain), que também é aquele que induz a maior quantidade de anticorpos neutralizantes. Essa estratégia não é exclusiva às vacinas cubanas, mas a Soberana 02 se distingue do resto das candidatas do mundo como a única ‘vacina conjugada’. Atualmente na fase 3 dos testes clínicos, ela combina o RBD com o toxoide tetânico, que aprimora a resposta imune… Cuba já desenvolveu outra vacina com esse princípio. Trata-se da Quimi-Hib, ‘a primeira do tipo a ser aprovada na América Latina e a segunda no mundo’, contra o Haemophilus influenzae tipo b, cocobacilos responsáveis por doenças como meningite, pneumonia e epiglotite[i].

Idania Caballero, uma cientista farmaceuta da BioCubaFarma aponta que as vacinas são desenvolvidas a partir de décadas de pesquisas e esforços científicos sobre doenças infecciosas. ‘A taxa de mortalidade em Cuba devido a doenças infecciosas, mesmo em tempos de Covid, é menor do que 1%. Cuba atualmente imuniza sua população contra 13 doenças com 11 vacinas, oito das quais são produzidas no próprio país. Seis doenças foram eliminadas como resultado das campanhas de vacinação. As vacinas produzidas com essas tecnologias foram administradas até mesmo em crianças nos seus primeiros meses de vida’[ii].

As vacinas Soberana são produzidas pelo Instituto Finlay em parceria com o Centro de Imunologia Molecular (CIM) e o Centro de Biopreparados. A Soberana recebeu este nome para refletir sua importância econômica e política. Sem um produto doméstico, Cuba encontraria dificuldades no acesso a vacinas estrangeiras, seja por causa do bloqueio estadunidense ou dos custos envolvidos. As vacinas Soberana inserem informações genéticas em células de mamíferos superiores e a Soberana Plus é a primeira vacina do mundo para pacientes convalescentes de Covid-19 a atingir a etapa de testes clínicos.

As outras vacinas, Abdala e Mambisa, nomes que também fazem tributo à luta cubana pela independência, são produzidas pelo Centro de Engenharia Genética e Biotecnologia (CIGB). Essas vacinas inserem informações genéticas em um organismo menos evoluído, um microrganismo unicelular (a levedura Pichia Pastoris). Elas são desenvolvidas sobre o histórico extraordinário da CIGB, que inclui suas vacinas contra a Hepatite B, usada em Cuba há 25 anos.

Ao desenvolver vacinas de diferentes plataformas, essas instituições evitam a competição por recursos. Caballero explica que “Cuba tem a capacidade de produzir duas cadeias independentes de vacinas, com mais de 90 milhões de vacinas por ano, enquanto mantém a produção necessária de outros produtos para o mercado doméstico e para exportação”. As vacinas cubanas requerem três doses e, como são estáveis em temperaturas entre 2 e 8 graus, não requerem equipamentos de refrigeração mais caros.

Testes de fase 3 e ‘estudos intervencionais’

Até o final de março, a Soberana 2 e a Abdala estavam em testes de fase 3, cada uma incorporando mais de 44 mil voluntários com mais de 19 anos em regiões com alta incidência de Covid-19. A Soberana 2 está sendo administrada em Havana e a Abdala em Santiago de Cuba e Guantánamo. Análises e acompanhamentos dos pacientes dos testes de fase 3 continuarão até janeiro de 2022 para investigar se as vacinas previnem a transmissão, quão longa é a imunidade adquirida e outras questões que nenhum produtor de vacinas ainda é capaz de responder. No entanto, outros 150 mil trabalhadores da saúde em Havana estão recebendo doses da Soberana 2, como parte de um ‘estudo intervencional’, uma espécie de fase 3. Estudos intervencionais não envolvem testes de duplo-cego ou placebos. Além desses, mais 120 mil trabalhadores da saúde na parte ocidental de Cuba receberão a Abdala nas próximas semanas e outros estudos intervencionais na capital procurarão fazer com que 1.7 milhão de pessoas em Havana, a maioria de sua população adulta, esteja vacinada até o fim de maio de 2021, o que significa que 2 milhões de cubanos estarão completamente vacinados.

Assumindo resultados satisfatórios, a verdadeira campanha nacional de vacinação terá início em junho, priorizando grupos de acordo com fatores de risco e começando com maiores de 60 anos. Até o final de agosto de 2021, seis milhões de cubanos, mais da metade da população, deverá estar vacinada e, até o fim do ano, Cuba estará entre os primeiros países no mundo a vacinar completamente sua população.

Cientistas médicos cubanos estão confiantes de que possuem a capacidade e a experiência para adaptar a formulação, a tecnologia e os protocolos de ação de suas vacinas para atacar novas variantes. Os próximos passos serão a entrada da Soberana 1 e da Soberana Plus em testes de fase 2 e o lançamento de um novo estudo envolvendo crianças e adolescentes de 5 a 18 anos.

Cuba e China se unem para desenvolver a Pan-Corona

O CIGB cubano aliou-se com colegas na China para trabalhar em uma nova vacina chamada Pan-Corona, desenvolvida para ser efetiva contra diferentes variantes do coronavírus. Ela utilizará partes do vírus que são conservadas – não expostas a variações – para produzir anticorpos, em combinação com outras partes direcionadas a respostas celulares. Os cubanos contribuem com a experiência e com a equipe e os chineses oferecem equipamentos e recursos. A pesquisa acontecerá no Centro Conjunto de Biotecnologia Yongzhou, na província chinesa de Hunan, estabelecido no ano passado com equipamentos e laboratórios desenvolvidos por especialistas cubanos. Gerardo Guillen, diretor de ciências biomédicas do CIGB afirmou que a abordagem: ‘poderá proteger contra emergências epidemiológicas causadas por novas variantes do coronavírus que possam surgir no futuro”. O projeto se dá sobre quase duas décadas de colaborações em ciências médias entre Cuba e China, incluindo cinco empreendimentos conjuntos no setor de biotecnologia.

Uma vacina para o sul global

Profissionais cubanos receberam dez medalhas de ouro da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (WIPO) nos últimos 26 anos; seus produtos de biotecnologia foram exportados para 49 países antes da pandemia, incluindo vacinas utilizadas em programas de imunização infantil da América Latina. Cuba afirmou que suas vacinas contra a Covid-19 serão exportadas para outros países. Isso traz esperança para países de baixa e média renda que simplesmente não têm a capacidade de imunizar sua população com as vacinas de alto custo (entre 10 e 30 dólares por dose) ofertadas pelas grandes empresas farmacêuticas. Em fevereiro de 2021, o Bureau of Investigative Jornalism reportou que a empresa americana Pfizer praticava ‘bullying’ com países latinoamericanos, forçando-lhe a colocar bens de soberania nacional, tais como edifícios de embaixadas e bases militares, como garantias contra os custos de quaisquer eventuais conflitos legais relacionados as suas vacinas contra Covid-19[iii].

Por meio de um acordo com o Instituto Pasteur do Irã, 100.000 iranianos participarão em testes clínicos de fase 3 da Soberana 2 e outras 60.000 pessoas também participarão na Venezuela. Outros países, incluindo México, Jamaica, Vietnã, Paquistão e Índia demostraram interesse em receber as vacinas cubanas, assim como a União Africana, que representa todos as 55 nações africanas. É provável que Cuba aplicará uma escala variável às suas exportações de vacinas contra a Covid-19, uma prática já adotada na exportação de profissionais da medicina. Dessa maneira, o valor cobrado por Cuba refletirá a capacidade de pagamento do país comprador.

O que Cuba realizou é notável, mas, como afirma Caballero: ‘sem o bloqueio injusto dos EUA, Cuba poderia ter obtido resultados ainda melhores’. A ilha caribenha tornou-se uma liderança mundial em biotecnologia porque possui um Estado socialista, com uma economia centralizada e planejada, que investiu em ciência e tecnologia e que coloca o bem-estar humano antes dos lucros; isto é, sem o capitalismo e a ganância, que o primeiro-ministro britânico tanto celebra.

*Helen Yaffe é professora de História Econômica e Social na Universidade de Glasgow.

Tradução: Daniel Pavan.

Publicado originalmente no portal Counterpunch.

Notas


[i]    Ver ‘Rapid response’ no BMJ, 1 March 2021

[ii]   Correspondência por e-mail, 9 de março de 2021

[iii]  “Held to ransom”: Pfizer demands governments gamble with state assets to secure vaccine deal’, Bureau of Investigative Journalism, 23 de fevereiro de 2021.

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