Delírios nervosos – o Rio de Janeiro de Orestes Barbosa

Escultura de Vito Ascencio
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por DILMAR MIRANDA*

Comentário sobre o livro, recém-lançado, de Lucas Assis

1.

Confesso minha admiração pelo belo trabalho de Delírios nervosos – o Rio de Janeiro de Orestes Barbosa, devido aos inúmeros fatos abordados, à riqueza de informações e qualidade de suas análises, com belas ilustrações de artistas, como Palumbo, Kalixto, Di Cavalcante, Nássara, Millôr Fernandes e outros. Meu primeiro ímpeto foi pensar um texto que extrapolasse as linhas de uma resenha, talvez um ensaio, no limite, um pequeno livro. Matéria e vontade não faltavam. Contudo, uma vez aceito o desafio, vamos à resenha.

Comecemos pela sua personagem. Na memória e crônica da cidade do Rio das primeiras décadas do século XX, eis o talentoso Orestes Barbosa, “cronista, letrista, jornalista, romancista, panfletário, boêmio” (Lucas Assis), enfim, um completo artista das letras. O poeta Manuel Bandeira considerava seu verso “tu pisavas os astros distraída” da valsa “Chão de estrelas” (1937), imortalizada na voz de Silvio Caldas, como o mais bonito da língua portuguesa, juízo reiterado por Rubem Braga, Sérgio Porto, Paulo Mendes Campos, Vinicius de Moraes, para citar alguns.

A resenha exigiu um mergulho na história do Rio, desde o início do século XIX, com a vinda da corte lusa, época importante para a formação da nossa música popular, elemento imprescindível para a análise da vida e obra de Orestes. Como sabemos, a corte chega em março de 1808, após abandonar Lisboa às pressas em fins do ano anterior, fugindo das tropas de Napoleão já próximas de Portugal, em retaliação à política lusa de boas relações com a Inglaterra.

Mesmo considerando a rica vida musical do chamado “milagre mineiro” na época, cuja região das Gerais era dotada de uma obra vista como fantástica (“mineiro sabe duas coisas bem, solfejo e latim”, dizia-se então), não se pode desprezar o efeito provocado com a vinda da corte. Dá-se um episódio inédito na história dos países colonizadores.

A corte metropolitana, com seus altos funcionários, clero, preceptores, militares e toda criadagem, transfere-se para uma cidade da colônia, tornando-a a capital de todo o reino. Fez parte da bagagem real o piano, sendo fabricado a partir de 1834 aqui no país. Além disso traz novos hábitos e gêneros musicais como a ópera, a valsa e outras danças cortesãs, além de práticas musicais de salão como os minuetos e gavotas.

Para abrigar o séquito real, cerca de dez mil casas foram pintadas com as letras PR, de Príncipe Regente, o que o espírito carioca passou a interpretar a partir do seu real sentido: Ponha-se na Rua. Até então, o Rio era um burgo colonial. A população estimada entre 60 a 80 mil pessoas (dois terços negra, muitos escravizados e poucos libertos), recebe um imenso aparato administrativo. Calcula-se em torno de 10 a 15 mil pessoas do séquito inicial, chegando a 20 mil com os correr dos anos.

O Rio torna-se a nova capital do reino. O acanhado burgo transforma-se no esplendor da corte, com novas casas de negócios, salões de recepção, edificações refinadas, novos usos e costumes. A corte traz um grande problema para sua segurança, sendo logo criado o cargo de Intendente Geral da Polícia. Uma das suas primeiras ações foi proibir as rótulas, um biombo de lâminas de madeira trançadas, uso árabe muito difundido para proteger a mulher, no interior do lar, dos olhares invasivos masculinos desfechados das ruas. Sua descrição acha-se em Sobrados e mocambos de Gilberto Freyre. Temendo atentados contra o Príncipe Regente ou familiares, as janelas passam a ter vidros transparentes, cuja substituição maciça garante bons lucros à indústria inglesa de ferro e vidro.

Segundo Edinha Diniz, com essa proibição, a mulher chega à janela e logo ganha a rua. Chiquinha Gonzaga, nascida em 1847, portanto após a proibição das rótulas, expressa esse novo espírito da mulher carioca. A partir daí, esse ambiente será importante para a prática das serestas, inclusive com a presença feminina, o que será herdado pelas noites cariocas da época de Orestes Barbosa.

Outro fato relevante dessa mesma época é a iluminação a gás instalada em 1854 no Rio pela empresa de Irineu Evangelista de Souza (Barão de Mauá), oferecendo maior segurança ao lazer noturno. Antes, as ruas eram mal iluminadas por lampiões a óleo de baleia. Com a nova iluminação, prolonga-se a vida noturna, oferendo maior segurança à vida boêmia nos espaços públicos das ruas e praças, como as serestas, além do incremento das práticas musicais nos recintos privados dos salões.

2.

A nova cena urbana entretece um rico fluxo musical: o encontro de músicos de procedência afro-popular formados na prática dos espaços públicos, com os intérpretes da música luso-europeia aceitos nos salões, exímios intérpretes de gêneros como a polca, mazurca, gavota etc., passo crucial para a criação de novos gêneros.

Com esse rico encontro, partiam para as serenatas onde se destacavam três gêneros propícios para a vida boêmia noturna, herdados pela geração de Orestes: a modinha, o choro e a valsa.

A modinha terá grande importância para o novo cenário musical. Sua prática estende uma ponte entre dois mundos: o Brasil colonial arcaico, de evocação ainda rural, e o novo Brasil imperial semiurbano, que vinha se transformando desde a vinda da corte. O debate sobre a origem da modinha é polarizado por Mario de Andrade, defensor da “proveniência erudita [lusa] inconteste das Modinhas”, e José R. Tinhorão, defensor da sua origem brasileira, com o carioca Domingos Caldas Barbosa, introdutor do gênero na corte imperial em Lisboa, no século XVIII, onde faz sucesso, com sua forma “sestrosa” de versejar e tocar a viola de arame.

Em Portugal, os músicos passam a compô-las ao piano, elitizando sua forma. A modinha retorna ao Brasil, reconquistando praças e ruas, acompanhada agora ao violão. Sua maior contribuição está na liberdade rítmica do fraseado, no limite, ad libitum, termo que designa a interpretação mais livre, criando assim um padrão de performance das canções seresteiras. Na mesma época das serestas iluminadas pelo lampião a gás, as noites se prologam ao som do choro, um modo peculiar de grande virtuosismo, executado por músicos talentosos chamados de chorões, cujo repertório incluía as modinhas, polcas, mazurcas, gavotas, schottisches (xote), canções, lundus, valsas etc.

“No Rio da assomada do século não se compreende lua no céu sem serenata, sem violão e sem cantigas” citação de Luís Edmundo em O Rio de Janeiro do meu tempo. Nas décadas da virada do século XX, os artistas versejavam as modinhas, nem sempre falando de amor, “mas repercutiam também os problemas urbanos, comentavam os fatos e acontecimentos políticos ou homenageavam figuras da cidade”. O autor refere-se à “Guerra de Canudos” e à figura de Santos Dumont em “A conquista do ar”, modinha de Eduardo das Neves.

Ainda sobre a modinha, no capítulo Concerto moderno, dedicado às serestas, Lucas Assis cita João do Rio, parceiro nas letras e boemia de Orestes Barbosa, em “A Alma encantadora das ruas”. No mesmo capítulo, cita um trecho de Bambambã descrevendo o encontro de Orestes com Catulo da Paixão Cearense falando das antigas serestas com flauta, violão e cavaquinho e dos cantadores “que andavam emocionando pelas noites de luar”. Além de introduzir o violão nos salões, ele é citado como um dos mais importantes modinheiros da época.

A valsa foi um gênero de grande importância para o repertório cancionista de Orestes Barbosa. Oriunda do meio camponês europeu e depois aceita nas cortes como ritmo dançante de pares enlaçados, novidade para a época, aqui nos chega sofrendo uma alteração rítmica para se adequar ao ambiente noturno do sereno. A despeito do ternarismo rígido originário do metrônomo da valsa vienense (UM – dois – três, com o 1º tempo fortemente marcado na entrada do compasso 3/4), um traço típico da valsa brasileira foi liberar-se da ossatura rígida do compasso ternário, dando origem ao “compasso ternário seresteiro”.

Conforme vimos na modinha, a tendência do andamento era mais livre, tendendo à rítmica ad libitum, o que denominamos de “rítmica derramada”. Assim, nas noites do Rio, a valsa passa a ser interpretada, “temperada com uma pitada de malemolência e sotaque local, gerando inclusive a peculiar valsa-canção” (citação de um encarte), tornando-se uma das formas prediletas de nossos intérpretes. E assim chegamos ao “Chão de estrelas”, valsa-canção obrigatória do nosso cancioneiro popular seresteiro.

3.

Passemos à resenha dos capítulos do livro de Lucas Assis. Além da Introdução, a obra abarca seis capítulos – Miolos de ouro, veio de crônicas; Flagrantes da vida carioca; Concerto moderno; Palco iluminado; Cenários do nosso amor; O ouvido da cidade -, e o epílogo Astro desastrado. Já na Introdução, Lucas refere-se à grande intervenção que o Rio sofre em 1904: a operação O Rio civiliza-se para as elites, e operação Bota-abaixo para os segmentos populares, termos para designar o movimento reformista da gestão do prefeito Pereira Passos (1902-1906), com apoio do presidente Rodrigues Alves.

O tempo do progresso é voraz. Em menos de 9 meses são demolidos mais de 600 prédios e moradias populares da área central. Limpo o terreno, retificam-se ruas, rasgam-se largas avenidas como a Av. Central (depois avenida Rio Branco), onde constroem-se praças e edificam-se prédios suntuosos.

Filiada ao ideal positivista, tema que irá inspirar o samba Positivismo de Orestes Barbosa e Noel Rosa em 1933, objeto inclusive da admiração de João do Rio, a ideologia dominante persegue o ideal da civilização e do progresso, encontrando no engenheiro Pereira Passos, um Haussmann tropical.

Eis um trecho do samba:

O amor vem por princípio
A ordem por base
O progresso é que deve vir por fim
Desprezaste esta lei de Augusto Comte
E foste ser feliz longe de mim

Pereira Passos havia estudado na França (1857-60), e lá presencia a grande reforma de Paris, na gestão do prefeito G.E. Haussmann, que rompe com a arquitetura medieval de ruas estreitas e tortuosas, abrigo das classes dangereuses (classes perigosas), conforme denominação da época, o que não foi suficiente para impedir o ímpeto revolucionário de 1871, das barricadas da Comuna de Paris. O prefeito carioca mereceu um livro de autoria de Jaime L. Benchimol intitulado Pereira Passos: um Haussmann tropical: a renovação urbana da cidade do RJ no início do século XX.

Na época, para combater o que consideravam mau-gosto, as elites criam a Liga Contra o Feio, e a Liga da Defesa Estética. Eis a saudação de Bilac à operação O Rio civiliza-se: “Há poucos dias, as picaretas, entoando um hino jubiloso, iniciaram os trabalhos de construção da avenida Central, pondo abaixo as primeiras casas condenadas … No aluir das paredes, no ruir das pedras no esfarelar do barro, … um grande gemido. Era o gemido soturno e lamentoso do Passado, do Atraso, do Opróbio. A cidade colonial imunda, retrógrada …estava soluçando no soluçar daqueles apodrecidos materiais que desabavam. Mas o hino claro das picaretas [regeneradoras] abafava esse protesto impotente, no seu clamor incessante e rítmico, celebrando a vitória da higiene, do bom gosto e da arte!” (Revista Kosmos, março de 1904).

Por outro lado, mereceu também do modinheiro Madruga, citado por João do Rio, o título provocador de Nero tropical:

Venha quanto antes D. Elisa
Enquanto Passos não atiça
Fogo na cidade.

O escritor Pedro Nava também possuía uma visão crítica à gestão do prefeito Pereira Passos, conforme consta em suas Memórias, ao considerá-lo mais demolidor do que construtor.

4.

No abrir do novo século, inicia-se um Rio conflituoso, herdado por Orestes Barbosa, nascido na Aldeia Campista, subúrbio carioca, e atento aos seus efeitos. Não era “um observador de gabinete, já que vive nas esquinas, nas ruas e cafés, madrugada adentro”. Como vimos acima na citação da Kosmos, “muitos foram aqueles que escreveram sobre a cidade em que viviam, registrando as transformações urbanas, políticas e sociais, como refletindo sobre as implicações destes processos, por vezes projetando um ideal de ‘civilização’ e ‘progresso’ ou deles desconfiando”.

Ainda jovem, Orestes Barbosa convive com a chamada “geração boêmia”, onde “despontam nomes como Olavo Bilac, Coelho Neto e os irmãos Arthur e Aloísio de Azevedo”. “Cada um de nós reproduzia a cidade… O Rio éramos nós’, escreve Martins Fontes nas suas ‘reminiscências da época de Bilac.” Outros nomes são agregados à geração anterior: Lima Barreto e João Paulo Barreto (João do Rio), que também alertam para a polarização “entre o encanto vertiginoso da modernização técnica e a visão trágica de seu avesso”.

Com apenas 24 anos em 1917, Orestes Barbosa publica seu primeiro livro, Penumbra Sagrada, coletânea de poesias. Segue em 1921, a plaqueta Água Marinha. Passa a publicar seus poemas apenas em jornais ou revistas. Dedica-se nas crônicas aos seguintes temas: o lampião a gás, a eletricidade, o bonde, as ruas e avenidas, a multidão, as moradias modernas (os bangalôs). Na era do disco e do rádio, publica A Fêmea, cujo enredo lhe traz dissabores e um processo jurídico.

Duas obras merecem destaque: Bambambã! (1923) e Samba – sua história, seus poetas, seus músicos e seus cantores (1933), únicas obras reeditadas, a primeira em 1993, pela Prefeitura da cidade do RJ (Coleção da Biblioteca Carioca) e a segunda em 1978 pela FUNARTE, RJ. Bambambã! merece destaque pelo seu teor crítico voltado para as ações públicas do poder contra as práticas musicais populares. A primeira crítica é desfechada contra a operação Bota-abaixo, ao dar o golpe de misericórdia nas noites cariocas, com a demolição das pensões do centro. Assim lamenta o autor: “O governo Rodrigues Alves quis reformar tudo. Reformou a cidade com Frontin e Pereira Passos. … e acabou com a serenata. Esta parte coube ao chefe de polícia, Cardoso de Castro [da Guarda Civil do Distrito Federal]”.

Na 2ª citação, em Samba, critica a condenação do violão, contra o qual havia uma legislação específica por ser visto como instrumento degradante, citando uma ação repressiva, no tempo do chefe de polícia major Vidigal (séc. XIX). “O major Vidigal, ao remeter certa vez, a um juiz … desta cidade, um rapaz ‘acusado de serenata’, assim descreveu no ofício: ‘E se V. Ex. ainda tiver sombras de dúvidas quanto à conduta do réu, queira examinar-lhe as pontas dos dedos e verificará que ele toca violão”.

Multiplicam-se os relatos da época contra a polícia que não dava tréguas ao lazer popular. O delegado, ou o chefe de polícia, era figura onipresente nas falas dos compositores da época, como Donga e Pixinguinha, que depõem ao prof. Borges Pereira da USP. “A polícia, sem mais aquela, cercava a casa da gente onde o pessoal se divertia. Sambista era malvisto, violão também” (Donga). “Nessa história da polícia, o Donga tem razão. Quando eu era menino. ia assistir às batucadas dos negros no meio do mato, a polícia perseguia e a negrada ia batucar no mato, escondido” (Pixinguinha). Com o tempo, as coisas mudam.

Em crônica do Bambambã! Orestes Barbosa relata “o percurso do ‘dificílimo e belo’ instrumento até chegar aos salões elegantes, empunhado por homens vestidos de frack. Seu ingresso nos salões, segundo o cronista, “tem sua personificação em Catulo da Paixão Cearense, que ‘com toda sua mudança para poeta expoente do sertanismo’, é conhecido [no Rio], e em todo o país, pelas ‘modinhas sonorosas’”.

5.

No seio das grandes mutações urbanas, o cronista nos convida “a conhecer e acompanhar os tipos do Morro da Conceição, dos bairros do Estácio, da Saúde, da Aldeia Campista, os notívagos do centro, os sambistas e a história do samba, os ‘vícios’ urbanos, os ‘astros’ das esquinas e das revistas, as vitrinas iluminadas e os recantos do ‘Rio criminoso’”. A partir dos anos 1920, o Orestes Barbosa atento às mutações das ruas, registra o sumiço dos “pianos ambulantes, realejos, gaitas, sanfonas, …, guitarras e bandolins” cujo desaparecimento era causado, segundo ele, pela ação de Pereira Passos. “Tempo que, sob o progresso urbano, marcava o fim do ‘tempo das serestas’”. Registra-se nessa época a retomada das intervenções do centro, com a derrubada do Morro do Castelo, visando as comemorações do Centenário da Independência, em 1922, com consequências na boemia da cidade. A memória das demolições do Bota-abaixo vem à tona.

Na vida boêmia carioca, como no Café Nice, nas redações dos jornais, espaços que muitas vezes se cruzavam, Orestes era respeitado e temido. Em Memórias do Café Nice: subterrâneo da música popular e da vida boêmia do Rio de Janeiro, o jornalista Nestor de Holanda dedica o capítulo final do livro ao “famoso letrista”. Chegando ao Rio, no início dos anos 1940, recorda que Orestes era visto como autor de belas canções, e também temido como jornalista.

Depoimento semelhante encontramos no livro Parceiros da Glória: meio século na MPB, memórias póstumas de David Nasser, onde um capítulo é dedicado a Orestes Barbosa. São várias as referências e homenagens que percorrem no nosso cancioneiro popular mais recente, chegando às portas da época presente. Em Figuras e coisas da música popular brasileira, João Ferreira Gomes (Jota Efegê), autor de Ameno Resedá, o rancho que virou escola e Maxixe, a dança excomungada, reverencia Orestes, como “o cronista que toda a cidade conhece”, e o louva como precursor das crônicas de morro.

É relevante sublinhar as intenções de Lucas Assis ao escrever que seu trabalho, ao recorrer às reportagens, poemas e canções de Orestes, “trata de aspectos da crônica social como formulada desde o Rio de Janeiro, então capital da República”. A descrição urbana das crônicas e canções do compositor, bem como as dos colegas “é encarada a partir do seu topos” (do grego antigo τόπος, para designar lugar, sítio, terra), termo usado para designar o contexto que embasa um argumento. “O poeta e o jornalista, a crônica e a música popular, caminham juntos. A crônica da cidade, ou cidade da crônica (sic) não pode ser encarada numa visada apenas, … como também, não está desconectada de sua experiência, de sua vida social” (LA). Outras penas e vozes se juntam a Orestes, como José do Patrocínio Fº, Benjamim Costallat, Genolino Amado … e outros.

Em Cenários de nosso amor, Lucas Assis chama a atenção para a figura do Orestes flâneur. Assim como o filósofo Walter Benjamin, ao descrever Paris, capital do século XIX, convidando-nos à flânerie, a experiência de ver a cidade com olhos despreocupados, durante passeios ao léu e sem destino. “Na crônica como na canção”, Orestes Barbosa nos convida a acompanhá-lo, “página a página, verso a verso” como um flâneur do Rio de janeiro, capital do século XX.

E assim, com o livro aberto, “o leitor ouve o ronco dos motores, tropeça nos camelôs, esbarra nos jornaleiros, ouve repetidos os pregões. Na avenida, diz o cronista, ‘vê-se o mundo’”: “Estou na avenida ouvindo sambas. Em cada esquina há dedos tamborilando em caixas de fósforo”. A cidade é a moldura viva do flâneur. Com o impiedoso “progresso técnico”, parece que a cidade não mora mais aqui, ou seja, na alma do flâneur. Numa passagem nostálgica do livro Samba, um saudoso Orestes lamenta: “Que fim levou o homem dos sete instrumento? A carroça do caldo de cana, que tocava música também acabou”.

6.

Nos limites da resenha, passo a enfatizar o livro Samba – sua história, seus poetas, seus músicos e seus cantores, abordando o capítulo o Ouvido da cidade, pela relevância de seu teor e riqueza de análises de personagens e ambiente da época, para a gestação do gênero identificador de nossa moderna música popular urbana e seus principais criadores e intérpretes.

Num ano também rico na criação de canções, o livro vem a público em 1933, alguns anos após o samba ser consagrado no carnaval carioca, nos programas radiofônicos, bem como em discos gravados pelo sistema fonoelétrico, substituindo as gravações fonomecânicas, sofrendo disputas acirradas sobre suas origens, autorias e definições do gênero, como a célebre polêmica entre Donga e Ismael Silva, envolvendo, além do samba, o maxixe. Acrescente-se ainda à época, o processo de profissionalização artística nos meios radiofônicos e discográficos.

Como modelo do artista profissional Orestes Barbosa aponta o cantor Francisco Alves. Seu nome aparece como artista que usava seu prestígio para negociar parceria em sucessos da época, em troca de sua difusão no rádio e disco a exemplo do samba Se você jurar de N. Bastos e I. Silva. Quem participava desse recurso era tachado de com(pro)sitor, termo usado pelo próprio Orestes Barbosa.

Várias passagens de Orestes Barbosa citadas por Lucas Assis se dedicam a outra grande polêmica sobre a origem do samba. Vejamos algumas. Na página inicial do Samba, eis uma declaração de identidade e de princípios do gênero, portador de sensíveis afetos, proferindo a razão a que veio: “O samba é carioca. A emoção da cidade está musical e poeticamente definida no samba”.

Este é o estilo da escrita de Orestes Barbosa no livro Samba, qualificado de síntese telegráfica, sem perder a densidade de seus sentidos e intenso afeto à nossa música popular. Vejamos mais alguns exemplos: “O carioca, diverso em tudo, de todos os povos, criou a sua música original. Este livro, que é a história do samba, mostra este gênero musical em plena definição. Seus músicos, seus poetas e cantores, aqui aparecem, destacados de outros músicos, de outros poetas e de outros cantores do próprio Brasil”.

E: “O Rio, laboratório de emoções, criou a sua alma, e com ela o seu ritmo musical”. Mais adiante reitera: “É carioca. Eles têm que respeitar!”.

Numa surpreendente e certeira passagem, Orestes Barbosa menciona o filósofo Artur Schopenhauer que profere ser a música expressão do “em-si” do fenômeno. Ou, dito de outra forma: a palavra descreve o mundo, já a música é o próprio mundo.

Como estratégia editorial, Samba estava prometido para 1932, para aproveitar a recente institucionalização do carnaval, mas não consegue cumprir o prometido. Sai no início do segundo semestre de 1933, quando sai a público, meses antes, Na roda do samba de Francisco Guimarães, o Vagalume, ambos envolvendo uma candente discussão sobre o samba e o carnaval.

O estilo de Orestes Barbosa “enlaça ‘reminiscência’ (testemunha ocular) e ‘investigação’ (crônica histórica), ou, como pontua o autor, ‘reportagem’ e ‘reivindicação’, uma vez que ele contava uma história colhida ‘no meio dos sambistas da terra em que nasci’. O ‘mérito’ de Samba devia-se, então, à ‘autoridade’ do autor. Jornalista, compositor, notívago, dono das calçadas, escritor e personagem daquela história, Orestes não era um observador alheio. ‘Eu sou da rua. E esta autoridade ninguém me negará’… Pelas ruas da cidade, no Buraco Quente, na Praça Onze, ou sentado à mesa no Café Nice [espécie de quartel general da boemia carioca], Orestes Barbosa anota o ‘registro imprevisto das emoções’.

No livro, ao desfilar suas impressões, o cronista, em sobressaltos, como característico no seu estilo taquigráfico, [como um flâneur] convida o leitor a ‘passear’ com ele ‘nos morros, nos subúrbios, nos arrabaldes, nas rampas marítimas – em todas as claridades e em todos os desvãos soturnos onde vive a alma do povo singular da cidade mais linda que o mundo tem’” (LA).

Orestes elogia o carnaval da época, por julgar que, com a República, a festa tinha se livrado do entrudo luso e “mudado para melhor”.

“Já não há mais os foliões de graçola sem sal.
Hoje o carnaval é alegria.
E o samba.
O samba dominando.
Sai do Rio e invade os Estados.
O Rio influi”.

As escolas de samba, cuja organização pioneira, a “Deixa falar” do Estácio, saíra pela primeira vez em 1929, recebem elogio de Orestes ao afirmar que as “escolas de samba de hoje são organizações perfeitas”. Na página 28, duas menções fundamentais para o moderno samba urbano: o Estácio e o compositor Newton Bastos, coautor de Se você jurar. Na página seguinte os famosos versos que fazem a história da polêmica do que seria o primeiro samba, envolvendo Donga e Ismael Silva, visto na época como “encrenca feia”, disputa reacendida por Sérgio Cabral décadas mais tarde:

“Se você jurar,
que me tem amor,
eu não posso me regerar.
Mas se é para fingir, mulher,
a orgia assim não vou deixar”.

Desde essa época, nos fica certo qual incertos eram os parâmetros definidores do gênero, na discussão do “primeiro samba”: Jura, Pelo Telefone, Faceira? O diálogo promovido nos anos 1960 por Sérgio Cabral, décadas depois da famosa polêmica sobre o “primeiro samba”, entre Donga e I. Silva, vinda dos tempos heroicos dos inícios da profissionalização do artista popular, outro tema de Orestes, fica claro que a questão ainda persistia. À pergunta sobre o verdadeiro samba, eles respondem: Donga: Ué. Samba é isso, já muito tempo; [canta Pelo Telefone].

Ismael: Isso é maxixe.
Donga: Então o que é samba?  
Ismael canta: Se você jurar.
Donga: Isso não é samba. É marcha.

O próprio Donga, em entrevista para o MIS do RJ, afirma: “fiz [Pelo Telefone] não procurando me afastar muito do maxixe, música que estava bastante em voga”. A disputa entre os dois gêneros, além da questão musical de natureza rítmica, buscava razões práticas. Os sambas amaxixados, com o movimento dos braços e do corpo para as laterais, “eram bons para dançar” em recintos fechados, mas “ruins para dançar e caminhar”, conforme exigiam os novos tempos que começavam a favorecer sua prática em lugares públicos.

No diálogo, diz ainda Ismael: “a gente precisava de um samba para movimentar os braços para a frente e para trás durante o desfile”. Babau da Mangueira sintetiza a necessidade do novo gênero, um tipo de samba próprio para ser dançado e cantado ao mesmo tempo no cortejo: era samba de sambar. Surge a síncope do moderno samba urbano, tema que irá atrair a consideração e a pena de vários autores.

A personagem dessa época mais reverenciada por Orestes foi João Batista da Silva, Sinhô.

“Mulato disfarçado, esguio e boêmio, em um
Extraordinário valor.
O Jura foi uma consagração:
‘Jura, jura,
Pelo Senhor…’”

Orestes Barbosa cita ainda as canções Cansei e Gosto que me enrosco de Sinhô.

Numa página de poucas frases, típica de seu estilo telegráfico, Orestes Barbosa cita o título da canção: Um sou eu, o outro não sei quem é, menção ao samba de Sinhô que se envolve em mais uma encrenca sobre a autoria. Sinhô teria auto atribuído o título “Rei do samba”, o que não agradou a outros autores. Na época, com as chances de se profissionalizar, cada um buscava demarcar seus territórios: o samba como gênero bem definido e a individualidade autoral de sua criação.

7.

A briga em torno de Pelo Telefone havia provocado o primeiro dissenso grave entre eles, apartados agora em dois grupos: a turma do Donga x a turma do Sinhô, inspirando composições com mútuos ataques. Sinhô, referindo aos frequentadores da casa da famosa baiana, Tia Ciata, na Pequena África, cujas festas costumavam se prolongar por mais de uma semana, lança no carnaval de 1918, Quem são eles? também conhecida como A Bahia é boa terra, logo seguida com a explícitaprovocação Ela lá e eu aqui, com clara intenção de retaliação.

Sinhô é revidado com Já te digo, de Pixinguinha e o irmão China, no carnaval seguinte, pegando pesado com ataque direto à “feiura” de Sinhô, visto como péssimo flautista.

“Um sou eu,
O outro eu sei quem é…
Ele alto, magro e feio …
Ele fala do mundo inteiro
E está avacalhado no Rio de Janeiro.
No tempo que tocava flauta,
Que desespero!
Hoje, ele anda janota,
Às custas dos trouxas do Rio de Janeiro.

A disputa mais célebre de autoria se dá com Sinhô e Heitor dos Prazeres por causa do Gosto que me enrosco,quando Sinhô diz a famosa frase “samba é que nem passarinho; quem pega é dono”. Sinhô, com o autoatribuído título Rei do samba, segundo seus desafetos, era o rei das apropriações de obras alheias. Contra isso, Prazeres reage com dois sambas: Olha ele e Rei dos meus sambas, cujos versos desferem um ataque frontal a Sinhô.

“Eu lhe direi com franqueza…
Tenho razão de viver descontente
És conhecido por ‘bamba’,
Sendo “rei” dos meus sambas.
Assim é que se vê
A tua fama, Sinhô
Desta maneira é rei
Eu também sou!

Ainda sobre as suas origens, Lucas Assis cita a letra de um samba de Oswaldo Silva de 1932, cuja disputa entre cariocas e baianos continua acessa.

O samba
Para ser bem brasileiro
Tem que ser feito
No Rio de Janeiro (bis)
O carioca
Não tem medo de moamba
E na Bahia
Só se fala em vatapá
Caruru e mungunzá
E mingau de tapioca
O samba é a canção
Que anima o carioca
Substitui o maxixe
Qualquer dia vai à Europa.


O que é contestado com o samba lançado por Carmen Miranda, em 1935:

Foi na Bahia
Que o samba apareceu
E aqui no Rio
Ele um dia ingressou
Assim venceu
Depois de um desafio
O samba subiu o morro
Triunfou com harmonia.

“No debate que se travou na imprensa e na letra das canções, o motivo da origem identifica laços e filiações, situados desde a experiência e memória daqueles que há muito estão ‘dentro do samba’”. A disputa da origem parece interminável. Uma nova discussão se impõe definindo os limites das origens, não apenas entre Rio e Bahia, mas recuando ainda às origens primeiras no solo africano. Além da discussão sobre sua paternidade, surge outra: se desceu do morro ou floresceu no asfalto. Em meio a tais disputas sobre a origem, é sempre bom dizer origens e não origem para não cair na armadilha do mito de origem.

Lucas Assis toca um ponto crucial da discussão sobre o moderno samba urbano: o papel dos “bambas do Estácio”. “Com os irmãos Rubem e Alcebíades Barcelos, personificavam os tempos ‘áureos’ da turma do Estácio, período em que o samba começou a ser ‘compreendido’ na cidade”. Para sua integração no carnaval de rua e nos desfiles das Escolas de Samba, foi fundamental a introdução do surdo de marcação para se libertar de suas origens amaxixadas.

8.

Retornemos ao samba de sambar de Babau da Mangueira.

O novo samba seria responsável por uma mudança sutil na figuração de sua rítmica básica. Para adequá-lo ao movimento da rua, é propiciado um andamento mais leve e solto dos foliões. Para fazer avançar o samba, é introduzido o surdo de marcação, cuja pancada faz prevalecer o tempo forte do ritmo binário 2/4. Assim, a batida no 2° tempo do compasso, pela pancada do surdo, de som mais grave, contribuiu para anular o amaxixado do ritmo. A par disso, outros instrumentos de registro médio e agudo, como o tamborim, preenchem os claros entre os tempos fortes do surdo. Essa iniciativa teria partido dos irmãos Bide e Marçal, segundo depoimento de Heitor dos Prazeres Filho.

Outro efeito sutil no pulso foi gerado pela articulação da nova batida com a nota de antecipação. Recuada no final do compasso, esta passa a anunciar no compasso anterior, a nota idêntica situada no compasso seguinte, roubando seu valor, o que, por si só, já quebrava a previsibilidade rítmica do seu andamento. A flutuação provocada pelo balanço, entre o tempo fraco e o tempo forte, favorecia uma leve sensação de vazio espacial, exigindo seu preenchimento pelo movimento do corpo que, num só instante, dançava e caminhava, cujo ritmo articulava, no mesmo movimento, tempo e espaço.

Assim, nessa malha entretecida por tempos de intensidades e distintas durações explícitas, tal experiência passa a provocar uma sensação de tempo suspenso e vazio, atraindo o corpo a ocupá-lo. É a tal síncope do samba moderno. Ou seja, a síncope resultante dessa operação, como diz Muniz Sodré, incita as pessoas a preencherem o tempo vazio “com a marcação corporal – palmas, meneios, balanços, dança. É o corpo que também falta – no apelo da síncope. Sua força magnética, compulsiva mesmo, vem do impulso (provocado pelo vazio rítmico) de se completar a ausência do tempo com a dinâmica do movimento no espaço”.

Não é difícil fazer a experiência. Pela entrega efetiva à síncope do samba, pode-se sentir o apelo da dança através da sensação de leveza corporal. O efeito dinâmico, suavizado pelo ritmo samba no corpo dançarino, fica claro com essa citação de Raymond Williams, aplicável ao samba de sambar: “Parece claro que o ritmo é uma maneira de transmitir uma descrição de experiência, de tal modo que a experiência é recriada na pessoa que a recebe não simplesmente como uma ‘abstração’ ou emoção, mas como um efeito físico sobre o organismo – no sangue, na respiração, nos padrões físicos do cérebro”.

É a insustentável leveza do corpo negro dançante.

*Dilmar Miranda é professor do Instituto de Cultura e Arte da Universidade Federal do Ceará. Autor de Tempo da festa x tempo do trabalho: carnavalização na belle époque tropical (Dialética).

Referência


Lucas Assis. Delírios nervosos: o Rio de Janeiro de Orestes Barbosa. Fortaleza, Plebeu Gabinete de Leitura, 2025.


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Arquétipos e símbolos
Por MARCOS DE QUEIROZ GRILLO: Carl Jung combinou a literatura, a narração de histórias e a psicanálise para chegar às memórias inconscientes coletivas de certos arquétipos, promovendo a reconciliação das crenças com a ciência
Apelo à comunidade acadêmica da USP
Por PAULO SÉRGIO PINHEIRO: Carta para a Agência USP de Cooperação Acadêmica Nacional e Internacional – AUCANI
Fundamentos da análise social
Por FABIO DE OLIVEIRA MALDONADO: Apresentação à edição brasileira do livro recém-lançado de Jaime Osorio
O humanismo de Edward Said
Por HOMERO SANTIAGO: Said sintetiza uma contradição fecunda que foi capaz de motivar a parte mais notável, mais combativa e mais atual de seu trabalho dentro e fora da academia
O marxismo neoliberal da USP
Por LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA: Fábio Mascaro Querido acaba de dar uma notável contribuição à história intelectual do Brasil ao publicar “Lugar periférico, ideias modernas”, no qual estuda o que ele denomina “marxismo acadêmico da USP
O martírio da universidade brasileira
Por EUGÊNIO BUCCI: A nossa universidade precisa se preparar e reforçar suas alianças com suas irmãs do norte. O espírito universitário, no mundo todo, só sobrevive e se expande quando sabe que é um só
A ampliação do Museu de Arte de São Paulo
Por ADALBERTO DA SILVA RETTO JR.: O vão livre do MASP será um espaço inclusivo ou excludente de alguma forma? A comunidade ainda poderá ali se manifestar? O famoso “vazio” continuará sendo livre, no mais amplo sentido do termo?
Minha infância nos porões da Bela Vista
Por FLORESTAN FERNANDES: “Eu morava lá na casa dele e queria sair de lá, eu dizia que passava mal, que comia mal, dormia mal e tudo ia mal, e ela não acreditava”
Sofia, filosofia e fenomenologia
Por ARI MARCELO SOLON: Considerações sobre o livro de Alexandre Kojève
A “bomba atômica” do tarifaço de Donald Trump
Por VALERIO ARCARY: Não é possível compreender o “momento Trump” do tarifaço sem considerar a pressão de mais de quarenta anos dos déficits comercial e fiscal gigantescos e crônicos nos EUA
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES