Democracia ou golpismo permanente?

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Por OSVALDO COGGIOLA*

A democracia militante contrapõe os lutadores à política governamental de resolver a crise mediante uma troca de guarda nas cúpulas fardadas

A demissão do comandante do Exército, general Júlio César de Arruda, substituído pelo general Tomás Miguel Ribeiro Paiva, comandante militar do Sudeste, está longe de ser o último episódio da crise em que entrou a transição do governo bolsonarista para o governo da coalização política “centro-esquerdista” que levou Lula à presidência do Brasil.

Ela foi precedida pela remoção das cúpulas da Polícia Federal, e da Polícia Rodoviária, na maioria, ou em quase todos, os estados da federação (18 no caso da PF, e 26 no caso da PRF); na sequência da dispensa de 84 militares, de praças até generais, lotados no Planalto (38 deles no GSI, Gabinete de Segurança Institucional, o “órgão do governo brasileiro responsável pela assistência direta e imediata ao Presidente da República no assessoramento pessoal em assuntos militares e de segurança”, criado em 1999 e recriado em 2016, no esteio do golpe-impeachment contra Dilma Rousseff); da intervenção na segurança do Distrito Federal, pelo Poder Executivo, da detenção do seu responsável (Anderson Torres, do União Brasil) e da destituição do governador desse Distrito, Ibaneis Rocha, pelo Poder Judiciário.

Esses fatos foram consequências diretas do ataque fascista-golpista de 8 de janeiro contra as sedes dos três poderes da República, anunciado nas ruas e redes sociais pelas concentrações lumpen-bolsonaristas nos QGs das Forças Armadas em todo o país, montadas logo depois de conhecidos os resultados eleitorais do segundo turno das eleições presidenciais – ou seja, anunciado com mais de um mês de antecedência para qualquer um que não fosse, não cego ou surdo (estes sabiam), mas completamente idiota. A conivência com esses fatos, porém, esteve bem longe de ser uma manifestação de “omissão” ou “incompetência”, como pretendeu o novo governo.

Anderson Torres, por outro lado, foi revelado como autor ou fomentador principal, no governo precedente, de um decreto golpista (“estado de defesa no TSE”) que anulava as eleições de outubro passado e perpetuava o desgoverno bolsonarista. O aspecto imediato da crise político-institucional está dado pelo fracasso da ingênua (para não dizer coisa pior) tentativa de assimilação institucional do bolsonarismo, ou de parte dele, uma tentativa não restrita à sedução da maioria parlamentar conquistada pela direita e extrema direita (com 14 senadores e 99 deputados, o Partido Liberal, que postulou a chapa presidencial encabeçada por Bolsonaro, é o partido com maior bancada parlamentar), mas que também inclui concessões no próprio Executivo: no gabinete de Lula encontrou abrigo uma ministra do Turismo (Daniela Carneiro, “Daniela do Waguinho”, também do União Brasil, “partido” que tem um pé na cadeia e outro no gabinete) com vínculos comprovados com os milicianos, que extorquem “segurança”, urbana ou rural, combinada com tráfico de drogas e todo tipo de extorsões mafiosas, ameaça armada mediante.

O ministro da Defesa, José Múcio Monteiro, por sua vez, não teve papas na língua para declarar: “Aquelas manifestações no acampamento, e eu digo com muita autoridade porque tenho familiares e amigos lá, é uma manifestação da democracia”, no discurso de sua posse, em 2 de janeiro. Menos de uma semana depois, os “democráticos” golpistas, incluídos os “amigos” e familiares de Múcio Monteiro, destruíram o Palácio do Planalto, o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal.

O que não impediu que Múcio Monteiro fosse cumprimentado pelo seu papel “apaziguador” (sic) das Forças Armadas até pelo ministro da Justiça, depois de amplamente comprovadas a cumplicidade, e em alguns casos o papel impulsionador, daquelas Forças Armadas no putsch vandálico-golpista de 8 de janeiro. “Quero fazer uma defesa veemente da sinceridade do Ministro Múcio Monteiro (que) escolheu o caminho do diálogo e não pode ser condenado por isso”, disse Flávio Dino, que também parabenizou as Forças Armadas por “não embarcarem no canto demoníaco do golpe”.

Sabendo muito bem que, em meio ao saque das sedes republicanas, houve um embate entre os militares do Exército, que protegeram e orientaram a horda desenfreada, e os militares da tropa de choque da PM, que procuraram minimamente controlar e evacuar pacificamente os vândalos. Estes os agrediram sem encontrar em resposta nenhuma violência comparável à habitual da PM contra as manifestações populares. Os partidários da “política de apaziguamento” como chave-mestra da luta contra o fascismo deveriam dar uma olhada nas opiniões de historiadores (não necessariamente, sequer principalmente, de esquerda) acerca da política do mesmo nome dos líderes “democráticos” ocidentais diante da escalada de provocações guerreiras, na década de 1930, de dois senhores chamados Adolf Hitler e Benito Mussolini.

A quase totalidade dos militares destituídos perderão suas benesses salarias suplementares (se é que estas já não se encontram incorporadas aos seus vencimentos) e voltarão aos seus quartéis ou escritórios para continuar conspirando, na espera de ocasião mais propícia ou de política fascista/golpista menos desastrada. Eles constituem, por outro lado, percentual mínimo dos sete mil membros das Forças Armadas e de segurança encastelados em cargos estatais principalmente (mas não só) pelo governo de Jair Bolsonaro. No centro dos acontecimentos, porém, e de suas consequências imediatas, se encontram os grupos de alguns milhares de desclassificados sociais, acampados em Brasília com excelente infraestrutura, ou transportados de outros pontos do país em duas centenas de ônibus, que protagonizaram a bandalheira infame de 8 de janeiro.

Uma massa lúmpen ou lumpenizada, financiada por uma lumpenburguesia (transportistas ilegais, predadores da Amazônia, madeireiros ou capitalistas-garimpeiros, destrutores da natureza via agrobusiness, magnatas do tráfico de drogas e da extorsão miliciana, e outras variantes assemelhadas) que está longe de constituir uma fração desprezível do empresariado brasileiro, e possui fortes vínculos com o capital financeiro nacional e internacional. Pouco mais de um milhar dos depredadores foi detido em Brasília (sua mobilização reuniu 20 mil pessoas, das quais ao menos quatro mil participaram dos ataques aos três poderes), nenhum deles ferido ou maltratado, boa parte deles foi liberada, ficando na cadeia 1028, cujo julgamento poderá ser adiado sine die (em caso de não haver uma provável anistia) devido, segundo a Folha, ao “gigantismo do caso e à estrutura do Judiciário”.

Nessa “boiada”, o herói do momento, o ministro do STF Alexandre de Morais, fez passar uma proibição de ofício de qualquer manifestação que se sirva do bloqueio total ou parcial das vias de circulação ou transporte, equiparado indiscriminadamente ao terrorismo (que possui uma lei específica, aprovada durante o governo Dilma Rousseff), um recurso que poderá, e será, utilizado contra todo tipo de manifestação operária e popular, para a qual a miséria e a fome do Brasil fornecem mais do que sobrados motivos.

A confusão na adjetivação dos “manifestantes democráticos” de 8 de janeiro não é semântica, mas política. “Aloprados” (Lula), “vândalos”, “terroristas”, “golpistas” e alguns outros epítetos, com consequências jurídicas diversas, foram utilizados. O termo “fascistas” foi, em geral, descartado. Ele não é assumido pelos próprios, que seguramente ignoram seu significado e até sua existência, o que pouco significa, levando em conta que, um século depois da Marcha sobre Roma, o termo se ampliou e emancipou largamente de seu significado original. De modo geral, foram usados termos que, além de depreciativos, tendem a situá-los fora da sociedade civil ou política brasileira, como se fossem uma excrescência inesperada e indesejável, e não uma tendência social e política da sociedade (burguesa e semicolonial) verde amarela, uma tendência que já governou o país durante um mandato presidencial, e obteve quase 50% dos votos na eleição subsequente.

Conceituado professor de ética da USP (e ex-ministro) qualificou a tropa de choque civil de 8 de janeiro de “idiotas úteis”, observando que “a multidão na Esplanada não teria a menor competência para dirigir o país. E nenhuma liderança com dois neurônios parecia estar por lá… eram meros instrumentos de gente mais esperta, escondida”. Esta lógica conspiracionista, em que “idiotas” são instrumentalizados por “espertos” que permanecem nas sombras, se apoia na suposição de que essa massa careceria de programa e liderança política, bastando revelar esta última e suas “verdadeiras intenções” para desmobilizá-la.

Uma suposição que, para dizer o mínimo, não tem pé nem cabeça. A liderança é sobejamente conhecida e dirigiu o país por quatro anos, nada menos, ao que parece sob o beneplácito de muita gente. Os atos vandálicos de 8 de janeiro, incluída a destruição de patrimônio público e de obras de Portinari e Di Cavalcanti, não foram apenas atos simbólicos ou ignorantes, eles constituem um perfeito e claríssimo programa político, tanto quanto o foi a violência nazifascista (cujos programas circunstanciais eram ora nacionalistas, ora liberais, ora abertamente, ora dissimuladamente, antissemitas) ou o é a violência teocrática talibã/xiita contra as mulheres e o patrimônio cultural árabe ou da Ásia Central.

A violência anticomunista (que a “multidão na Esplanada” defende, e da qual tem perfeita e explícita consciência) e anti qualquer coisa que favorecesse o caminho do comunismo (como a alta cultura crítica ou a emancipação das mulheres) é o programa básico de qualquer fascismo. Outra coisa é que o “nosso” seja um fascismo semicolonial, a diferença do italiano ou do alemão, incapaz de qualquer veleidade nacionalista além do culto às cores da bandeira, proponente ou praticante de uma política de terra arrasada para melhor vender ou entregar a riqueza nacional ao grande capital financeiro multinacional.

No final de seu governo, Jair Bolsonaro vendeu a Eletrobrás, uma desestatização autorizada pelo Congresso em 2021, ano em que a companhia obteve um lucro de R$ 5,7 bilhões, deixando a herança (que fará a respeito o governo Lula?) de mais de cem outros processos de privatização. Um fascismo duplamente miserável, nem por isso menos perigoso ou reacionário.

Um fascismo, além disso e por isso mesmo, carente de qualquer estrutura política além de grupos de milicianos e de bandos de corruptos/ladrões obrigados a agir nas sombras ou na semilegalidade, razão da sua precariedade, que motiva a desconfiança política do grande capital (que Bolsonaro pagou nas urnas em 2022) e repõe as Forças Armadas no centro do cenário, econômico e político. Motivo pelo qual é legítima a indignação de Conrado Hübner Mendes, jurista uspiano, contra a “naturalização de ator político ilegítimo”, que “vende-se como instituição marcada pela obediência, hierarquia, disciplina, decência ética e neutralidade política (e) entrega desobediência, insubordinação, delinquência, obscenidade, sectarismo e fisiologismo”, que consome, na sua folha de pagamentos, “mais que saúde e educação juntas. E ainda têm mais de 1.600 agentes recebendo acima de R$ 100 mil”. Propondo “reformar as Forças Armadas e as relações civil-militares”, sem nos dizer, lamentavelmente, qual seria essa reforma e como implementá-la.

Vladimir Safatle apontou que “o início da catástrofe deve ser procurado na anistia que selou o começo da Nova República. Longe de ter sido um acordo nacional, ela foi uma extorsão produzida pelos militares… Não se anistiam crimes contra a humanidade, como tortura e terrorismo de Estado. A anistia não valeu para membros da luta armada que praticaram os chamados ‘crimes de sangue’. Eles ficaram presos mesmo depois de 1979. A anistia só valeu para os militares”. Jair Krischke, histórico ativista contra as ditaduras militares e a tortura, afirmou, muito acertadamente, que “no Brasil não houve transição. Houve transação”. Breno Altman, do seu lado, apontou que “a morada da hidra golpista está nas Forças Armadas”, acrescentando que estas “exercem tutela sobre o Estado desde a Guerra do Paraguai”.

Uma tutela que o professor da UFRJ Francisco Teixeira faz recuar ainda mais, atribuindo-a a uma (falsa) autoconsciência originada nas “batalhas de Guararapes contra os holandeses, em 1648 e 1649, quando o “Exército” salvou o país da invasão estrangeira, até a Proclamação da República, em 1889”. Fazer recuar a origem da tutela militar/golpista brasileira ao início da Nova República, à Guerra do Paraguai ou às Guerras do Açúcar é um exercício histórico correto, sob risco de ser anacrônico, ao mostrar a não consolidação de uma sociedade civil autogovernada em nosso país, e a dependência estrutural do proto Estado colonial e do Estado brasileiro, em relação ao estamento fardado, uma característica, por outro lado, totalmente latino-americana (vide Peru hoje, agora mesmo).

O golpismo hodierno tem a ver com uma crise latino-americana de conjunto, que motiva uma onda golpista de alcance continental, inserida num crise mundial que tem seu epicentro na crise econômica e política norte-americana, com os EUA intentando impor uma ofensiva imperialista sem precedentes via expansão da OTAN contra a Rússia (guerra “na Ucrânia”) e no confronto cada vez maior e multifacetado com a China, objetivos aos quais o establishment ianque busca subordinar seu histórico quintal, a América Latina.

Os fardados de nosso continente promoveram um fracassado golpe fascista na Bolívia, e agora se debatem na defesa de Fernando Camacho, governador de Santa Cruz de la Sierra e nazifascista declarado, seu principal promotor. O ataque de Brasília foi acompanhado pelos bloqueios e provocações contra o governo eleito do país andino. Também pela campanha golpista contra o presidente chileno Gabriel Boric, a pretexto de um indulto que concedeu em benefício dos presos por participação na rebelião popular de outubro de 2018. O golpe contra Pedro Castillo no Peru, monitorado pelas forças armadas de Fujimori, acentuou a crise na América Latina, manifestada também na crise humanitária provocada pela imigração no México e na América Central. Nesse quadro se inserem e “explicam” o golpismo brasileiro assim como a ação autônoma das milícias paramilitares instaladas no Rio de Janeiro.

O manifesto Anistia Nunca Mais, já assinado por mais de 80 mil entidades e cidadãos brasileiros, postula a “desmilitarização imediata do Estado brasileiro. Isso significa tanto o afastamento dos militares das instâncias de decisão e administração do Estado quanto o afastamento de toda a cúpula do comando militar envolvida com o governo anterior. Que todos eles passem para a reserva. Nos últimos quatro anos, os militares chantagearam continuamente a sociedade brasileira, com ameaças de golpe e intervenções diretas nos processos políticos nacionais. Isso não pode passar impune. Em uma democracia, os militares não existem politicamente. Eles não falam, não agem e não intervêm sob circunstância alguma. Uma das maiores aberrações da Constituição de 1988 foi definir as forças armadas como “guardiãs da ordem”. Em uma democracia real, quem defende a sociedade é a própria sociedade e não necessita de qualquer força exterior a si mesma para tanto”.

A democracia militante contrapõe os lutadores à política governamental de resolver a crise mediante uma troca de guarda nas cúpulas fardadas, deixando intocada a estrutura da tutela militar sobre o poder civil, ou seja, a base do “golpismo estrutural” à brasileira. Mas a tarefa colocada é estratégica. Varrer o fascismo e o golpismo militar é parte de uma luta em que estão em jogo as bases da miséria social e da submissão nacional. A luta de classes e a luta anti-imperialista, pela unidade da América Latina, são faces de um mesmo processo.

Brasil vive uma crise nacional, expressa no volume do endividamento público, que já aponta para um montante total de 90% do PIB, com um serviço anual de quase um trilhão de reais, entre 5% e 6% do PIB, equivalentes a sete orçamentos anuais de SUS. Metade do orçamento federal é comprometido com o pagamento dos juros da dívida, mutilando os gastos sociais e o investimento em saúde, educação e outros itens básicos. Quase um terço da população passa fome, e o número de brasileiros com renda inferior a R$ 500 já beira 63 milhões, em torno de 30% da população, o maior índice da série histórica. A classe trabalhadora organizada, protagonista central obrigada dessa luta, teve na crise golpista um papel inferior ao das torcidas organizadas do Corinthians e do Atlético Mineiro.

A condição da superação desse panorama é a existência de uma força política independente, classista e de esquerda, que defenda abertamente um programa revolucionário e batalhe por ele em todas as instâncias do movimento operário e popular. O debate político com esse objetivo é a tarefa e o dever de todos os fóruns democráticos e classistas do país.

*Osvaldo Coggiola é professor titular no Departamento de História da USP. Autor, entre outros livros, de Teoria econômica marxista: uma introdução (Boitempo).

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