Por BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS*
Limites e tensões da democracia liberal
Vivemos tempos paradoxais. Durante muito tempo depois da Revolução Francesa, as forças políticas de esquerda foram as mais relutantes em aceitar os limites da democracia liberal. Para vastos e respeitáveis setores de esquerda, a democracia liberal era um regime desenhado para favorecer os interesses das elites e das classes dominantes. Pese embora o fraseado inclusivo (“nós, o povo”, “governo da maioria para benefício da maioria”), a verdade é que os mecanismos tradicionais da exclusão social (desigualdade social, racismo, sexismo) continuavam a reproduzir-se sob fachada democrática.
A divisão a este respeito entre as forças de esquerda chegou a ser dramática e, de fato, causou feridas que até hoje não se curaram. Para uns, socialistas e socialdemocratas, esses limites eram ultrapassáveis, mas, para o serem, era necessário entrar no jogo democrático liberal e aceitar transformações parciais progressivamente mais avançadas. Para outros, comunistas e socialistas revolucionários, tais limites eram inultrapassáveis e, de duas uma, ou se inventava outro modelo de democracia verdadeiramente inclusivo ou se recorria à revolução, com o (eventual) recurso às armas.
No rescaldo das revoluções de 1848, a divisão pareceu resolvida a favor da democracia liberal. Mas foi sol de pouca dura. A Comuna de Paris de 1871 e a Revolução Russa de 1917 vieram dar nova vida à opção entre democracia liberal e democracia não liberal (radical, direta) ou revolução. O século XX foi um período de tensão permanente entre estas opções, com intensidades diferentes nas diferentes regiões do mundo. Os próprios movimentos de libertação anticolonial viveram essa divisão. Depois do colapso da União Soviética (1989-1991), voltou-se a acreditar que a divisão tinha de novo sido superada pela vitória, agora irreversível, da democracia liberal. Em que consiste, pois, o paradoxo?
O paradoxo consiste em que, à medida que as forças de esquerda foram se envolvendo cada vez mais convictamente no jogo democrático liberal, as forças de direita foram aumentando as suas reservas em relação a ele. Em vez de desinvestirem no jogo democrático, passaram a investir nele para o manipular de modo a garantir o que sempre esperaram dele: a reprodução dos seus privilégios.
A manipulação tem sido muito criativa, mas consiste sempre na injeção de antidemocracia nas veias da democracia: golpes brandos, fraudes eleitorais, financiamento de campanhas eleitorais, compra de votos, controle dos veículos de imprensa hegemônicos, pressão externa (FMI, imperialismo), recurso abusivo aos tribunais e à religião, recusa em aceitar resultados eleitorais adversos. Estes processos estão a ocorrer um pouco por todo lado e os casos mais recentes incluem a primeira economia do mundo (EUA) e a quarta economia da União Europeia (Espanha).
Neste último país, acaba de ser revelado que setores empresariais, combinados com o partido de direita e os serviços secretos, se articularam para desacreditar o partido de esquerda emergente (então, Podemos) com ações que envolveram inventar a fatura de um pagamento falso de Nicolás Maduro ao líder de Podemos no montante de 270 mil dólares e promover um canal de televisão e jornalistas com aparência de esquerda para que, em período pré-eleitoral, pudessem neutralizar mais eficazmente os políticos visados com acusações falsas.
Perante isto, o que fazer? A curto prazo (isto é, em período pré-eleitoral), as forças de esquerda têm de seguir firmes na defesa da democracia, mas têm de pensar que tal defesa será cada vez mais complexa quanto aos campos e quanto aos instrumentos. Quanto aos campos, a defesa tem de incluir a vigilância democrática da imprensa, a normalidade da campanha eleitoral, a defesa das instituições que divulgam os resultados eleitorais, o reconhecimento popular deles quaisquer que sejam, a regular tomada de posse de quem ganhe as eleições e a entrada pacífica em funções do novo governo. Quanto aos instrumentos, é fundamental entender que não bastam as instituições para defender a democracia. Ela tem de ser defendida na rua com a mobilização popular pacífica e criativa em todos esses momentos.
Quanto ao médio prazo, as tarefas não são menos exigentes, mas exigem reflexão de outro tipo. Eis algumas das questões mais importantes. Dados os sinais de esgotamento final da democracia liberal, é possível imaginar outros regimes de convivência mais pacífica e mais democrática? É possível responder à pergunta anterior sem ter alternativas credíveis anticapitalistas, anticolonialistas e antipatriarcais?
É possível alimentar a reflexão de longo prazo no decurso de governos de coligação com forças de direita cujos créditos democráticos não têm hoje credibilidade? É irreversível a recusa da luta armada no caso de a extrema-direita continuar a sua ascensão e assumir o poder de governo? É possível pensar todas as alternativas mesmo as mais remotas ou arriscadas? Um novo horizonte se desenha e não necessariamente para melhor. Pode ser para bem pior, se as forças de esquerda continuarem a desarmar-se de pensamento estratégico.
*Boaventura de Sousa Santos é professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Autor, entre outros livros, de O fim do império cognitivo (Autêntica).
Publicado originalmente no blog da Boitempo.
⇒O site A Terra é redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores. Ajude-nos a manter esta ideia.⇐
Clique aqui e veja como.