Por ANTÔNIO DAVID*
Por baixo da polarização eleitoral, relações de hegemonia vão sendo construídas; desconhecê-las é uma resposta fora do lugar
Os acontecimentos das últimas semanas deram a direção da conjuntura político-institucional do país, ainda que seu sentido não seja óbvio. Esse sentido tem sido visto como a polarização social e política que tem lugar no contexto das eleições que se aproximam. Nada há de novo aqui: durante seu mandato como presidente da República, Bolsonaro nunca saiu de campanha, razão pela qual a polarização manteve-se acesa desde que tomou posse.
Mas um horizonte alternativo a esse, não tão visível, mas não menos real, foi sendo aberto nos últimos três anos. Dois eventos recentes deram-lhe corpo: o aclamado lançamento da “Carta às Brasileiras e aos Brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito” e a disputada posse de Alexandre de Moraes como presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
O primeiro evento tem sido encarado como uma demonstração de força de setores progressistas da sociedade brasileira, no que se incluem os principais veículos de imprensa, com protagonismo da esquerda social – de que é emblemática a intervenção, na ocasião, da presidente do Centro Acadêmico XI de Agosto; o segundo, por seu turno, tem sido analisado em termos de uma contundente afirmação da força das instituições da República, com evidente destaque para o Poder Judiciário. Dessa ótica, ambos os acontecimentos teriam performado a capacidade de sociedade e instituições oferecerem resistência e barrarem os abusos do atual chefe do Poder Executivo, segundo o script dos freios e contrapesos.
Sem tirar a razão dessas leituras, esses dois acontecimentos devem ser inseridos no contexto mais amplo da conjuntura brasileira e global, marcados pelo surgimento (ou extraordinário reforço) do que o teórico estadunidense Bernard Harcourt chama de “estado de emergência”, ou seja, um novo modo de governar pelo qual os governos “fazem todo o possível para legalizar suas medidas de contrainsurgência e colocá-las solidamente dentro do império da lei – por meio de consultas intermináveis a advogados do governo, argumentos legais hipertécnicos e longos memorandos legais”.
Ainda que se possa questionar o autor sobre o que há de novo nesse modo de governar quando a perspectiva que se adota é a de países “periféricos”, a contribuição não perde relevância, haja vista a tendência global de recrudescimento do poder de Estado e de sua capacidade de sujeição e das inovações em termos de estratégias e técnicas de dominação de Estados contraparte de seus cidadãos.
No Brasil, o “estado de emergência” vem sendo aperfeiçoado pelos três poderes nas esferas municipal, estadual e federal há mais tempo do que Harcourt supõe, sendo as polícias apenas uma peça da engrenagem. Mas, desde o fim da Ditadura civil-militar, não houve quem liderasse a montagem da engrenagem, isso a despeito da ambição ditatorial de Bolsonaro. A chegada de Alexandre de Moraes ao Supremo Tribunal Federal (STF) em um contexto de grande evidência e politização do Poder Judiciário, este assanhado pela legitimidade adquirida junto à classe média, e de uma atuação de Bolsonaro marcada por aquilo que o jurista Oscar Vilhena Vieira chama de “método do infralegalismo autoritário”, deu a Moraes a oportunidade de apresentar-se como o homem capaz de encarnar o estado de emergência. É o que ele tem feito. O perfil e o currículo para tanto, já ostentava.
Sua atuação como magistrado, em particular a partir da abertura do inquérito das fake news em 2019, excede em muito o papel reservado a um juiz da suprema corte. Desde então, o inquérito é o carro chefe da presença do STF na mídia. Não há dúvida de que, através de uma calculada performance jurídico-policial-política, e com o inestimável auxílio da mídia (e de Bolsonaro), Moraes tornou-se um ator de peso e relevo no cenário político brasileiro.
Não é novo que ministros do STF ocupem esse lugar. Há pouco mais de uma década, Gilmar Mendes ensaiou ser o porta-voz da direita brasileira ao criminalizar o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST). Mas o espetáculo da posse na presidência do TSE, como experiência nova em um mundo onde no centro da política está o espetáculo, indica que Moraes converteu-se em algo mais do que um ator dentre vários atores no quadro da “República”. Sua estratégia tem lhe aberto o caminho para que seu nome seja visto, cada vez mais, como alternativa de poder. Em um país no qual a política e em particular as eleições são altamente personalistas, não é pouco.
A despeito de Bolsonaro e Moraes serem inimigos, não é certo que Moraes não possa ocupar o espaço e, em qualquer dos cenários, organizar a direita social (e parte do bolsonarismo). Não se trata aqui de profecia, mas de uma possibilidade, que vai se tornando cada vez mais concreta e real. Seja no cenário de derrota eleitoral de Bolsonaro, seja no cenário de o atual presidente vencer as eleições, a possibilidade existe. O que muda é a tática exigida.
A posse de Moraes como presidente do TSE joga luz sobre o lançamento da “Carta às Brasileiras e aos Brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito”. Como em outras ocasiões da história do Brasil, um acontecimento que poderia acumular para a esquerda – e de certa maneira, acumulou – foi, ao menos em parte, sequestrado pela direita. Não é apenas irônico que muitos dos que se somaram no apoio à Carta e ao “Estado democrático de direito” tenham apoiado ou silenciado sobre o impeachment de Dilma Rousseff em 2016 – o qual, alçando Michel Temer à presidência da República, alçou Alexandre de Moraes ao Ministério da Justiça e, em seguida, ao Supremo Tribunal Federal. É sobretudo sintomático. O mais relevante é o fato de este episódio ter mostrado que parte expressiva da direita social anti-Bolsonaro está unida e organizada.
Como os acontecimentos de 2013, o contexto do lançamento da Carta foi ambíguo. Mas a presença de determinados atores e a circulação de determinados discursos no contexto do lançamento davam o tom de uma disputa no interior da própria direita. No momento em que a Carta era lida no Largo São Francisco, a Folha de São Paulo noticiava: “Ao pela democracia une sociedade com falas duras e contra golpismo de Bolsonaro”, e em seu editorial: “Atos pluralistas mostram que democracia se tornou a pele cívica dos brasileiros”. Em 2020 – portanto, quatro anos depois do golpe de 2016, para o qual dera assertivo apoio –, o jornal mudou seu lema, de “Um jornal a serviço do Brasil” para “Um jornal a serviço da democracia”.
A semântica nacionalista da “sociedade unida” empregada em 2022 soa como um ato falho. No fundo, o recado que uma parte dos manifestantes, apresentando-se como fiadores da democracia, quis dar e deu aos militares foi: “fiquem onde estão, não caiam em uma aventura; se for necessário um golpe, 2016 ofereceu o modelo”. Nesse sentido, as analogias que aberta e reiteradamente se fez entre este episódio e outro, de 1977, são mais do que pertinentes.
O ambiente que se criou em torno do lançamento da Carta e da posse de Moraes no TSE são, enfim, sinais de um movimento de reorganização da direita. A novidade é que, às voltas com a combinação entre uma abstrata afirmação da democracia e do Estado democrático de direito, de um lado, e a necessidade de recrudescer as práticas estatais de sujeição e criminalização, de outro, a direita tem hoje um homem em uma posição privilegiada para liderar esse processo, unificando em torno de si o que Florestan Fernandes chamava de Estado autocrático.
Por tudo isso, há que se examinar com lupa a produção teórica e a atuação de Alexandre de Moraes, antes do STF e como ministro. É o caso de examinar, por exemplo, seu voto contrário à proibição de operações policiais em favelas no Rio de Janeiro durante a pandemia, quando, alegadamente “em defesa da sociedade”, sustentou que a proibição representava um risco para “toda a sociedade do Rio de Janeiro”. Na ocasião, Moraes defendeu a “harmonia”, “coesão” e “lealdade” entre os poderes do Estado, contra o que ele vem chamando de “guerrilhas institucionais”. A nomenclatura, sugestiva, designa o que outros teóricos consideram ser apenas e tão somente o exercício de “freios e contrapesos”.
As operações policiais não só continuaram após a proibição, em 2020[i], como se intensificaram, resultando em dezenas de mortes, em uma clara e evidente afronta da polícia do Rio de Janeiro à suprema corte, esta provavelmente vista como desleal por aqueles que mandam na polícia. Por baixo da polarização eleitoral, relações de hegemonia vão sendo construídas. E como já foi dito, desconhecê-las é uma resposta fora do lugar.
*Antônio David é historiador e professor na Escola de Comunicação e Artes da USP.
Nota
[i]Dos 11 ministros do STF, 9 votaram pela concessão da liminar que pedia a proibição, e 2 votaram contra: Luiz Fux e Alexandre de Moraes.
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