Desobedecer a Maquiavel

Imagem: Hamilton Grimaldi
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Por CHRISTIAN DUNKER*

Enquanto não assumirmos nossa própria ilusão inclusiva esqueceremos que há sempre um centro na periferia e uma periferia no centro

Para Maquiavel a arte da política depende da Virtu e da Fortuna, ou seja, da Virtude como método para obtenção e manutenção do poder, pelas razões mais eficazes e sem consideração por valor intrínsecos, mas também, da Fortuna, como acaso ou indeterminação que inverte vantagens e desvantagens conforme o acaso. A Roda da Fortuna inspira-se na alegoria grega das três Moiras ou Parcas, filhas de Nix, o deus da noite e da escuridão. Elas, juntas, teciam o destino humano. Laquésis puxava o quinhão de algodão que seria destinado a cada um, Cloto segurava o fio estendendo o até a roca de fiar e Átropos cortava o fio determinando o fim da vida.

Se o mestre florentino fosse conselheiro de Bolsonaro ou se este fosse um dos Médicis (não vale Garrastazu), a situação seria de fácil leitura. Eleito pelo método da produção de inimigos, pela mobilização do ódio e pela exploração da anti-política ele praticou com destreza a empunhadura do medo. Menos esperado foi a extensão imediata da retórica de campanha em prática de governo: devasta ambientes, reduz de 9 para 1 bilhão o investimento em ciência e tecnologia, asfixia educação e saúde, ameaça servidores públicos e o STF, sem entregar uma vírgula a mais de pão e circo (exceto a paródia involuntária de si mesmo). A curva descendente da popularidade seguia o previsto. Com a interiorização da paranoia, Moro, Santos Cruz e Mandetta confirmavam o cenário de entropia interna. Sua impopularidade externa, junto com o declínio de Trump, começou a pressioná-lo no cenário internacional. Finalmente a vida real da inflação, do desemprego e da pauperização da população, que aplaudia de pé a retirada de direitos trabalhistas e previdenciários, começou a esticar a corda de Cloto por onde já se antevia o cadafalso, entre panelas e impeachments, de um governo tão errático.
Desobedecer a Maquiavel é coisa para corajosos. Até aqui Bolsonaro, reprovado nesta virtude, desrespeitava a ideia elementar de que ganhar um principado é diferente de mantê-lo e governá-lo. Portanto, parecia razoável a estratégia sem estrategista levada a cabo pelo campo progressista, de deixar Átropos fazer seu serviço, já que o quinhão de algodão é pequeno e de segunda categoria e que o fio da paciência brasileira é conhecido por sua baixa elasticidade. Ademais, a retórica do silêncio e da esquiva é perfeitamente funcional para reduzir a parceria imaginária que o discurso do ódio precisa para se manter. Deixado à sua própria sorte, a “natureza” se encarregaria de marcar o governo, e Átropos faria o corte final, depois de tantas auto-crises voluntárias fossem, gradualmente, contabilizados como desordem, corrupção e ineficiência. O ponto crítico aqui era Guedes e o Teto de Gastos: uma equação quadrática digna de Fermat.
Isso significaria deixar o anti-petismo ser varrido pelo tempo e que a crítica da esquerda fosse feita pela própria dialética da realidade. O que de certa forma começou a funcionar: a verdade sobre o caso Lula emergiu pela Intercept, depois se confirmou juridicamente. Laranjais, Rachadinhas e Milícias Associadas começaram a transparecer a anágua impura do bolsonarismo. Não tínhamos apenas um governo tutelado pelos militares, mas também uma separação gradual entre o personagem Bolsonaro e o discurso bolsonarista. Enquanto o primeiro rugia impropérios e dissolvia partidos, o segundo usava a anomia, assim criada, para passar a boiada, a bíblia e a bala. Laquesis foi tirando gradualmente do saco sem fundo, ou da cueca sem fundo, o punhado de algodão que nos qual era o estofo real do bolsonarismo.
Neste ponto mudamos dos gregos para o universo cristão do destino. A Roda da Fortuna, carta X do Tarot, na versão de Marselha, é uma releitura das Moiras, mas acrescentando duas figuras híbridas, em cima a de uma espécie de anjo caído, louco ou diabo, que como uma esfinge, empunha uma espada, quase a dizer: “será difícil tomar meu lugar no ápice da fama e da fortuna” (e aqui fortuna passa a designar dinheiro mesmo). As duas outras figuras são igualmente seres híbridos, como o trikster, xamã enganador, meio ser humano meio animal e que posicionam-se na parte de baixo e na mediana da Roda.
Pois a Roda da Fortuna girou no sentido imprevisto e veio a Covid-19. Com seu cortejo de mortes e incertezas o discurso bolsonarista optou pela gripezinha, “e daí?”, Sou especialista em matar” e pela cloroquina. Rodrigo Maia, o mesmo da aprovação da reforma previdenciária, aprova o auxílio de 600,00 para as pessoas, contra o desejo explícito do governo. Tudo para dar errado. Mas entra aqui os auxiliares das três Parcas: Tiquê, o encontro fortuito do Real, Ilícia, (deusa dos auxílios e das ilicitudes), Tânatos (o deus da morte, com seu corpo de ferro e entranhas de bronze) e Moros (acredite, chama-se assim mesmo, este filho de Nix), deus do destino como fatalidade, com seus pés na terra e mãos nas estrelas, com suas flechas capazes de fazer voltar alguns éons na história da pessoa ou de fazer tudo retornar aos tempos do Caos. Ecoando o pouco valor da vida em situação povoada pela miséria, pela violência e pelo desamparo. A necropolítica ainda nos deve 150 mil vidas e uma das piores respostas mundiais em termos sanitários. Mas na boca do caixa a economia deu um baile popular no sanitarismo.
O Brasil sai artificialmente da linha da miséria. A popularidade de Bolsonaro vai de 18% a 66% nas grandes cidades. Descobre-se amado e popular, sente o gosto da aprovação rumo a 2022 e casa-se com o Centrão, herdando todo o dinheiro na cueca, bem como todas as potestades da corrupção da advocacia maior de Atibaia até o supremo Piauí. A esquerda descobre estarrecida que provas diretas de racismo, discriminação de gênero, de etnia ou de classe, capazes de cancelar qualquer um por décadas na Internet, não fazem a menor diferença no mundo Real. Que a defesa da violência e do extermínio, que a deseducação e a malandragem, que tudo o que puder ser dito de deselegante impróprio ou meramente tolo, não afeta a crença e a soberania do Fake News. A contradição entre ser eleito denunciando o Bolsa Família e crescer a popularidade praticando a Renda Mínima (usurpando a autoria de Eduardo Suplicy) não é suficiente, nem mesmo quando repisada impiedosamente pela própria Rede Globo. Sua aura torna-se imune a defecções internas e denúncias. O mito torna-se realidade.
Não basta mais para o campo progressista manter-se na hipótese de que Bolsonaro se auto-dissolverá em éter e irá embora de volta para de onde veio, sem que se saiba muito bem como de lá saiu. Será preciso desfazer na prática o sistema de ilusões que assim se realizou. Sim, a Roda da Fortuna pode girar de novo, como parece acontecer nos Estados Unidos. Mas enquanto a fortuna não muda é preciso voltar à virtude política. E é preciso fazer isso já nestas eleições municipais.
Para isso seria necessário mudar a percepção de que a esquerda odeia o dinheiro, que ela se ocupa apenas de parasitar o Estado, e que não possui uma retórica do desenvolvimento, coletivo e individual, que reconheça e sancione o desejo mais comum de prosperar na vida. Está por se criar o antítodo discursivo ao neopentecostalismo dispensionalista de resultados, fonte e origem do novo fundamentalismo religioso brasileiro. 270 mil obreiros acompanham diariamente o dinheiro irrastreável do dízimo mudar de mão em mão, da Igreja Universal. Enquanto isso tratamos o camelô empobrecido como um empresário capitalista em potencial.
Freud dizia que as religiões são ilusões. Isso é bem menos crítico do que parece, pois ele entende que as ilusões, ao contrário dos erros e das falsidades tem uma função muito importante na vida psíquica. Elas criam futuros em que não há futuro, elas engendram passados onde só há esquecimento, elas são o espírito de um mundo sem espírito. A ciência e o esclarecimento são importantes, mas eles nem sempre acertam o núcleo de crenças de nossas ilusões. Isso acontece porque ambos não podem oferecer grande coisa em troca. Em vez de um mundo guiado pelas conspirações e planos malignos teríamos apenas uma incerteza real e objetiva. Vimos isso derreter quarentenas, máscaras e métodos sanitários. Vimos isso criar um manto de esquecimento sobre benefícios educacionais, cotas e todo o sistema de inclusão dura e precariamente construído antes. A flecha de Moros apaga o passado e reescreve o futuro. A violência policial e a promessa de tornar-se um micro empreendedor, entregando a marmita gourmet alheia.
Dois aspectos parecem decisivos quando se trata de desativar ilusões. O primeiro é admitir que ainda que delirantes, tais ilusões são ilações de desejo, carregam consigo, portanto, algumas gramas de verdade. O segundo diz respeito a segmentar uma crença genérica em uma série de crenças parciais e componentes. Muitos dirão que há exageros e equívocos no discurso bolsonarista, mas no conjunto ele teria que ser confrontado com uma alternativa melhor, em termos de desejo, para poder ser derrotado. Isso não será feito se a nossa paisagem de afetos for a culpa e a denúncia, como parece ser o caso, pelo menos quando olhamos para a paisagem digital da esquerda.
A maior parte da população se sentirá insultada quando confrontada com a hipótese de que é privilegiada, que ela está ainda mais endividada, moralmente, do que seus crediários em atrasos fazem crer. Em decorrência de sua insuficiente purificação dobrará a direita, onde a pureza de alma, pelo menos dá mostras reais de austeridade comportamental cotidiana. Uma esquerda que se queira realmente popular deve renunciar à sua atitude de educadora dos povos e condutora arrogante das luzes. Ainda que ela assim pense (e é possível que todos pensem assim) deveria tomar cuidado com as aparências.
Por isso, a virtude política que nos falta não é apenas união ou fragmentação de forças, mas a radicalização de propósitos. Uma das ideias mais interessante e mais bem realizadas da era Lula é a ideia de inclusão. Inclusão nas escolas, inclusão alimentar, inclusão dos sem-terra e dos sem-teto. Inclusão é o primeiro passo para a cidadania. É por isso também que Bolsonaro se elege com um discurso, cuja eficácia não conseguimos entender, baseada na exclusão, na democracia customizada para poucos, na democracia de condomínio. Mas assim com no afeto da culpa, aqui também a esquerda parece dar as mãos para a direita e continua a se pensar como um sistema de radicalizações tendente à solidão. Enquanto entendermos a luta de classe como ressentimento de classe permanecemos excluíntes. Enquanto caçamos elites insistimos na exclusão. Enquanto não assumirmos nossa própria ilusão inclusiva esqueceremos que há sempre um centro na periferia e uma periferia no centro. Essa é no fundo, a diferença decisiva, entre populismo de esquerda e de direita.
Precisamos de um campo progressista radicalmente inclusivo, que seja capaz de acolher e tornar produtivas suas diferenças, que são enormes quando vistas de perto, mas que deveriam ser mínimas quando vistas pelo telescópio invertido do bolsonarismo. Isso é claro, nos levará de volta ao sintoma não resolvido do lulo-petismo, a saber: o que significa uma aliança? E os sintomas são assim, voltam e se reptem até que nós os escutemos em toda a sua extensão e verdade.

*Christian Dunker é professor titular do Instituto de Psicologia da USP. Autor, entre outros livros, de Litorais do patológico (Nversos).

Publicado originalmente no portal Carta Maior.

 

 

 

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