Dias perfeitos – o momento exato

Frame de Dias Perfeitos/ Divulgação
image_pdf

Por JOSÉ FERES SABINO*

Considerações sobre o filme dirigido por Wim Wenders

1.

Enquanto planta uma árvore ressequida, um pai conta ao filho que, há muito tempo, um monge, que vivia num mosteiro ortodoxo, plantou uma árvore estéril no alto de uma montanha. O monge diz ao pupilo que ele deveria regá-la todos os dias até ela ganhar vida. O jovem aceita a incumbência e todos os dias, bem cedo, enchia um balde, subia a montanha e regava a árvore seca.

Repetiu o gesto durante três anos. Quando, certa manhã, o jovem subiu a montanha, encontrou a árvore cheia de folhas novas. O pai repete então o que, vez ou outra, diz a si mesmo: “se cada um fizesse todos os dias o mesmo ato, como um ritual, todos os dias exatamente a mesma hora, o mundo mudaria”.

Essa é uma das cenas de abertura do filme O Sacrifício (1986), de Andrei Tarkovsky. E creio que, no filme Dias perfeitos (2023), de Wim Wenders, há algo desse ritual e desse gesto presente tanto no personagem Hirayama (Koji Yakusho) quanto no realizador do filme.

Wim Wenders, numa entrevista ao jornal The Guardian, afirmou que todos os seus filmes se ocupam da questão “como viver?”, e, ao reagir ao comentário do jornalista – o de que Hirayama contrasta com os desassossegados personagens dos filmes Alice nas Cidades (1974) e Paris, Texas (1984), Philip Winter e Travis Henderson respectivamente – responde que nesses filmes os personagens procuram uma resposta a essa pergunta; em Dias Perfeitos, porém, Hirayama não está procurando, pois já vive como se deve.

Talvez três gestos de Hirayama – um limpador de banheiros públicos, que realiza seu trabalho com verdadeiro esmero – marquem seu modo de vida: olhar para o céu antes de sair de casa, levar a vida compassada pelo movimento da natureza e contemplar tudo o que está a seu redor. Situado e observando o momento presente, Hirayama está em relação permanente com as coisas e os seres.

A personagem lembra a figura do sábio estabelecida pelas filosofias da antiguidade: estar aberto tanto ao que o instante lhe oferece quanto a sensação de que sua existência faz parte de algo maior que ele próprio.

2.

A vida de Hirayama, que mora sozinho num minúsculo apartamento na cidade de Tóquio, está reduzida ao consumo essencial, à intimidade necessária e ao compartilhamento de rituais (almoça sempre no mesmo restaurante, toma banho em banheiros públicos, compra livros em sebos). Em tudo o que faz, sua presença está inteira. E não pense que a atitude de Hirayama perante a vida seja a da indiferença. Ao contrário, por não estar trancado na interioridade de si, ele não apenas está imerso no presente e em sintonia com o todo, como carrega consigo também a experiência da vida em comum (do bem comum).

Quando, por exemplo, a sobrinha, filha da irmã, uma senhora rica, foge de casa e o procura, ele a recebe em seu apartamento, apresenta seu mundo, convive com ela, mas “devolve” a menina ao mundo dela ao avisar a irmã de que a filha está em sua casa. Hirayama está em relação emotiva com os outros, mas jamais perde o eixo da vida.

Durante sua jornada de trabalho, Hirayama sempre procura, em meio a metrópole, um jardim ou praça, onde possa fazer sua refeição do meio-dia.

Ao adentrar esses espaços, ele, mantendo a atenção ao momento presente (observa um mendigo, troca olhares com uma moça, colhe um broto de planta), também fotografa, com câmera analógica, o exato momento do jogo de luzes e sombras que se dá quando as folhas das árvores balançam ao vento. A este exato momento – que só acontece uma única vez – a língua japonesa dá o nome de Komorebi.

Os sonhos de Hirayama – que aparecem em preto e branco, como as fotos que faz durante o dia – são experiências de Komorebi. (Todas as sequências de sonhos do filme foram concebidas e filmadas por Donata Wenders, esposa do diretor.)

No documentário, Tokyo-Ga (1985), uma homenagem ao cineasta japonês Yasujiro Ozu e um exercício meditativo sobre o cinema, Wim Wenders busca a imagem do humano que aparecia nos filmes do mestre Ozu, imagem que, com a chegada da modernidade ao Japão, começava a desaparecer. Nas bordas de Tóquio, ainda se vê aquilo que a câmera fixa de Ozu havia captado em seus filmes. (O jornalista José Geraldo Couto lembra que Hirayama é o nome do protagonista do último filme de Ozu, de 1962, que, no Brasil, recebeu o nome A rotina tem seu encanto.)

Wim Wenders insiste em procurar o homem que Ozu filmou – pois é o que ainda dá o sentido de realidade a uma imagem. Nisso, ele se distancia de Werner Herzog, que, de passagem pelo Japão, dá um depoimento, no filme Tokyo-Ga, do alto de uma torre de onde se avista a cidade de Tóquio.

Diz o diretor de Aguirre, a Cólera dos Deuses (1972): não é mais possível captar uma imagem transparente – uma imagem adequada à nossa civilização e à intimidade mais profunda do homem. Para encontrá-la, é preciso escavar como um arqueólogo. No entanto, os dois cineastas estão incomodados com a proliferação de imagens irreais, um lixo imagético que soterra a vitalidade humana.

Não só a proliferação de imagens soterra a vitalidade, mas o próprio padrão civilizatório ocidental, que cresce e produz compulsivamente, não cabe mais dentro da Terra. Somos filhos de uma civilização do excesso: excesso de objetos, de lixo, de calor, de poluição, de tagarelices, de irrealidade. A vida de Hirayama – que ele escolheu levar (entrevemos no diálogo com sua irmã que ele vem de uma família muito rica) – apresenta em sua simplicidade e dignidade um contraponto ao excesso.

Ao ver a vida brotar na tela, quem sabe o espectador não possa abrir uma fresta em si para que a pergunta – o que, de fato, o humano precisa para viver? – adentre seu ressequido íntimo e despeje uma comovida gota de lágrima.

*José Feres Sabino é doutor em filosofia pela Universidade de São Paulo (USP).

Referência


Dias perfeitos (Perfect Days).
Japão, 2023, 123 minutos.
Direção: Wim Wenders.
Roteiro: Takuma Takasaki, Wim Wenders.
Direção de Fotografia: Franz Lustig.
Elenco: Kōji Yakusho, Min Tanaka, Arisa Nakano, Tokio Emoto.


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
O segundo choque global da China
06 Dec 2025 Por RENILDO SOUZA: Quando a fábrica do mundo também se torna seu laboratório mais avançado, uma nova hierarquia global começa a se desenhar, deixando nações inteiras diante de um futuro colonial repaginado
2
Simulacros de universidade
09 Dec 2025 Por ALIPIO DESOUSA FILHO: A falsa dicotomia que assola o ensino superior: de um lado, a transformação em empresa; de outro, a descolonização que vira culto à ignorância seletiva
3
A guerra da Ucrânia em seu epílogo
11 Dec 2025 Por RICARDO CAVALCANTI-SCHIEL: A arrogância ocidental, que acreditou poder derrotar a Rússia, esbarra agora na realidade geopolítica: a OTAN assiste ao colapso cumulativo da frente ucraniana
4
Uma nova revista marxista
11 Dec 2025 Por MICHAE LÖWY: A “Inprecor” chega ao Brasil como herdeira da Quarta Internacional de Trotsky, trazendo uma voz marxista internacionalista em meio a um cenário de revistas acadêmicas
5
Raymond Williams & educação
10 Dec 2025 Por DÉBORA MAZZA: Comentário sobre o livro recém-lançado de Alexandro Henrique Paixão
6
A riqueza como tempo do bem viver
15 Dec 2025 Por MARCIO POCHMANN: Da acumulação material de Aristóteles e Marx às capacidades humanas de Sen, a riqueza culmina em um novo paradigma: o tempo livre e qualificado para o bem viver, desafio que redireciona o desenvolvimento e a missão do IBGE no século XXI
7
A crise do combate ao trabalho análogo à escravidão
13 Dec 2025 Por CARLOS BAUER: A criação de uma terceira instância política para reverter autuações consolidadas, como nos casos Apaeb, JBS e Santa Colomba, esvazia a "Lista Suja", intimida auditores e abre um perigoso canal de impunidade, ameaçando décadas de avanços em direitos humanos
8
Norbert Elias comentado por Sergio Miceli
14 Dec 2025 Por SÉRGIO MICELI: Republicamos duas resenhas, em homenagem ao sociólogo falecido na última sexta-feira
9
Asad Haider
08 Dec 2025 Por ALEXANDRE LINARES: A militância de Asad Haider estava no gesto que entrelaça a dor do corpo racializado com a análise implacável das estruturas
10
A armadilha da austeridade permanente
10 Dec 2025 Por PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS: Enquanto o Brasil se debate nos limites do arcabouço fiscal, a rivalidade sino-americana abre uma janela histórica para a reindustrialização – que não poderemos atravessar sem reformar as amarras da austeridade
11
Ken Loach: o cinema como espelho da devastação neoliberal
12 Dec 2025 Por RICARDO ANTUNES: Se em "Eu, Daniel Blake" a máquina burocrática mata, em "Você Não Estava Aqui" é o algoritmo que destrói a família: eis o retrato implacável do capitalismo contemporâneo
12
A anomalia brasileira
10 Dec 2025 Por VALERIO ARCARY: Entre o samba e a superexploração, a nação mais injusta do mundo segue buscando uma resposta para o seu abismo social — e a chave pode estar nas lutas históricas de sua imensa classe trabalhadora
13
Impactos sociais da pílula anticoncepcional
08 Dec 2025 Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA: A pílula anticoncepcional não foi apenas um medicamento, mas a chave que redefiniu a demografia, a economia e o próprio lugar da mulher na sociedade brasileira
14
Benjamim
13 Dec 2025 Por HOMERO VIZEU ARAÚJO: Comentário sobre o livro de Chico Buarque publicado em 1995
15
Violência de gênero: além do binarismo e das narrativas gastas
14 Dec 2025 Por PAULO GHIRALDELLI: Feminicídio e LGBTfobia não se explicam apenas por “machismo” ou “misoginia”: é preciso compreender como a ideia de normalidade e a metafísica médica alimentam a agressão
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES