Por ANNATERESA FABRIS*
Considerações sobre o livro de Anna Maria Maiolino
“Na vida, um ponto final é sempre provisório” (Henning Mankell, Kinesen).
Na segunda parte do poema Eu sou eu (2011), Anna Maria Maiolino enfeixa, de maneira paradigmática, os três eixos centrais do livro Digo e tenho dito (2022):
“eu sou eu
[…]
escolhi viver e vivo morrendo
optei por ser artista
ser mãe
constantemente equaciono fantasia com a realidade
entre o eu sou e o eu não sou
há de se ter em conta que não sou de aqui
nem sou de lá, estou de passo
qualquer caminho me levará a outro lugar
[…]
cozinho
também lavo e passo a ferro
grito de prazer e de dor
o meu sexo é um oco
no oco gozo”.
A artista, a mulher e a imigrante entrecruzam suas trajetórias nos poemas e nas memórias que constituem o livro. Organizados na ordem cronológica de sua redação e aparentemente acabados, os textos foram escritos e reescritos ao longo do tempo, funcionando, nos dizeres de Paloma Durante, “como uma constante ilha de edição de sua memória não para acrescer fatos ao passado, mas como forma de atualizá-los para que tenham lugar de acontecimento no presente, na feitura de uma ponte para a continuidade, explicitada pelo corpo de quem irá ler”.
A descoberta de que tinha vocação para a escrita foi feita em Nova York, onde estava acompanhando o marido Rubens Gerchman, bolsista da Fundação Guggenheim. Mãe de duas crianças pequenas, além de cuidar da casa, era empregada de um estúdio de desenho têxtil, não tendo tempo para dedicar-se ao próprio trabalho visual. A condição de “extrema fadiga” e o desassossego com a situação são percebidos por Hélio Oiticica que a aconselha a tomar apontamentos: “Desenha, escreve, rabisca, escreve poemas. Uma palavra, qualquer coisa… será um registro do existir… um indício, um projeto… Um caderno é acessível, ocupa pouco espaço. É fácil de carregar no bolso. Resta sempre a possibilidade da aventura de uma folha em branco, uma hora, um minuto, um instante” (Em Bowery, 1995).
A princípio relutante, por estar no cruzamento de três idiomas – italiano, espanhol e português –, a artista segue o conselho do amigo e passa a levar um caderno na bolsa. Escreve poemas, enquanto os filhos brincam na praça. Faz anotações de projetos futuros ou esboça alguns rascunhos e desenhos: “O encontro com a folha em branco foi incrível. Escrever era uma forma de pensar sobre mim, sobre as coisas. Passei a perceber que, para mim, o pensar é feito de sentir, penso com sentimentos. Pensar, então, passa a ser pura poesia. Nela, encontrei a possibilidade de realizar uma obra com um argumento mínimo. O meu vocabulário se enriqueceu de outras ferramentas. […] Ainda hoje pensar não consiste, em meu sentir, em algo lógico, composto. É como uma narrativa feita de imagens. […] Nessa percepção dei-me conta de que o pensamento seria uma ferramenta também para dizer coisas e que poderia descartar a representação. Foi a poesia que me possibilitou dar um salto imenso para outro existir, noutro exercício de viver”.
Datada de 1995, a memória nova-iorquina convoca não apenas as figuras da mulher sobrecarregada de trabalho e da artista sufocada (que se expressa em alguns poemas[1]), mas também da imigrante sem green card que, por não saber falar inglês, faz compras em Little Italy, onde se depara com a rispidez do quitandeiro de origem italiana. Mesmo sentindo-se parte daquele grupo de “latino-americanos buscando arrancar, do país rico, migalhas”, a artista acaba por lembrar ao comerciante – marginalizado pela cultura estadunidense e, logo, “nem peixe nem carne” – as ricas tradições culturais da nativa Calábria e da Itália em geral.
A problemática da imigração começa com o poema Quatro lados (1975), que evoca a mudança dos Maiolino de Scalea e prossegue com a evocação da viagem na embarcação que a estava levando para a Venezuela (Meu corpo acompanha o movimento oscilante do navio, 1986), durante a qual se recusara a usar o crachá com a identificação “imigrante”, por sentir-se humilhada por “aquela cicatriz exposta, estigma gritante de nossa pobreza” (Estudo arte, 1989). A transferência para a Venezuela tinha sido antecedida por um deslocamento para Bari, evocado em O trem para Bari (1989), no qual se misturam a tristeza por deixar Scalea e pela morte de Antonio, o irmão mais novo. Por sua vez, Migro, as, avi, atum, are (1991) remete, a partir do dicionário latim/italiano, aos diversos significados do verbo “imigrar”: “ir embora, partir, transferir-se, levar, transgredir, violar, morrer”.
O significado profundo da imigração em sua vida é evidenciado em Amor fati (2008): “Gosto de me (auto) apresentar como um ponto de tensões. Uma nômade que, como todo viajante, carrega na alma a subversão das convenções. Estou de passagem, não pertenço a nenhum lugar”. Essa sensação de desterro e precariedade estende-se para outros que viveram a mesma experiência. Em Pé de pobre não tem tamanho (2014), Anna Maria Maiolino narra a comoção que sentiu ao ouvir o relato de um motorista de táxi calabrês, que tinha migrado para Milão no pós-guerra e cuja família era tão pobre que só dispunha de um par de sapatos usados por todos em “grandes ocasiões, como ir ao médico, à igreja”.
Esse episódio desperta uma reflexão sobre a dificuldade de os países europeus em lidar com o fenômeno das imigrações “legais ou não” e sobre a facilidade com que o ser humano “esquece o que sofreu na pele. Pensei também o difícil que foi para muita gente, para minha família e para mim mesma, a imigração, e como os imigrantes foram importantes para a Itália. […] Parece que muitos dos italianos, pela resposta que dão às imigrações no tempo atual esqueceram disso”.
No poema Sotto voce (2016), no qual passa em revista as atrocidades do mundo contemporâneo, a artista não deixa de lembrar a problemática da imigração:
“Há homens, mulheres e crianças caminhando na linha do horizonte
Um; nenhum; cem mil…
São imigrantes.
Os mares Egeu e Mediterrâneo tornaram-se grandes cemitérios de náufragos.
Os desesperados tentam chegar a salvo ao outro lado da bacia mediterrânea.
O cobertor azul das águas agasalha todos os inominados.
Ninguém reclama os corpos doa afogados.
O que fazer?”
Em termos visuais, Anna Maria Maiolino traça um mapa de sua condição de nômade numa obra emblemática intitulada Capítulo I (1971), que integra a série Mapas mentais. Concebida como um campo de linhas ortogonais, que formam uma quadrícula de fronteiras e lugares fixos, a obra remete a fatos de sua vida: o nascimento na Itália em 1942, a infância simbolizada pela Bá Carmela e pelo avô, o casamento (Rubens) os partos (Micael e Verônica), a arte, sentimentos diversos (angústia, solidão, amizade, questionamentos, tristeza, amor, alegria, inquietação).
Se os termos “guerra” e “fome” podem ser vistos como uma tomada de posição política, não se pode esquecer que o trabalho é profundamente autobiográfico e que a principal linha de leitura consiste na reconstituição de seu trajeto de imigrante: Itália, 1954, viagem, América do Sul, Brasil, New York, trópico, volta, Brasil, 1960. Cabe ao espectador mover as peças no tabuleiro de xadrez engendrado pela artista e estabelecer um elo entre o ano de 1954 (imigração da família Maiolino para a Venezuela) e 1960 (chegada ao Rio de Janeiro).
Numa carta à psicanalista Tania Rivera, datada de 8 de fevereiro de 2021, Maiolino descreve como conceberia um novo capítulo dos Mapas mentais, de maneira a superar a questão da imigrante e a englobar toda a humanidade num desenho menos excludente. O novo mapa seria “um campo imaginário branco, infinitamente expandido, infinito como o universo. De norte a sul, de leste a oeste, desenhado sem loteamento, sem quadriculados, sem fronteiras. Um grande lembrete comunitário de emoções estaria impresso, junto com poesias, mais o pensar dos filósofos para iluminar um pouco estes tempos sombrios”. É à poesia que a artista recorre para detalhar que emoções gostaria de compartilhar com os outros: o primeiro livro da Divina Comédia (1265-1321), de Dante Alighieri; O guardador de rebanhos (1925), de Alberto Caieiro; os poemas Os homens ocos (1925), de T. S. Elliot, e Eu-mulher (2017), de Conceição Evaristo; letras de canções da música popular brasileira.
Outro “mapa mental”, datado de 1976 e intitulado Capítulo II, enfeixa a questão da mulher de maneira ainda mais radical. Concebido do mesmo jeito que a obra de 1971, Capítulo II representa num tabuleiro diversos momentos e sentimentos da Anna Maria mulher, todos situados na década de 1970 (1971, 1976, 1974, 1973, 1972, 1975). O Brasil como ponto de encontro e de partida, as cidades de São Paulo e Rio de Janeiro, o amor, a arte, os filhos fazem parte de uma trama maior que envolve a pobreza, a ditadura, o desespero, o medo, a amizade, o refúgio, a certeza, a separação, os questionamentos, o recomeço, a doença, a vida, a morte, o destino, a solidão, a dor, o vazio, a repressão, a ansiedade, o pânico e a poesia.
A visão ácida que a artista tem daquele momento particular vivido pelo Brasil, eixo direcional de sua produção visual, tem um paralelo num poema escrito em 1976, “Creia”. Os slogans da ditadura civil-militar, o medo incutido na sociedade, a repressão brutal, o incentivo ao individualismo, a publicidade insistente entremeiam-se com versos do hino nacional:
“Creia!
o Brasil é nosso
creia nos três poderes
na ordem e progresso
na constituição impressa
obedeça!
e ande reto
como todo homem direito
nada de protestos
cuidado!
não pense
é perigoso
nesse instante obscureceu no céu o sol da liberdade
desafia o nosso peito a própria morte
ó pátria amada!
[…]
de nada te adiantará estar deitado em berço esplêndido
ao som do mar e à luz do céu profundo
iluminado ao sol do Novo Mundo
na terra gigante pela própria natureza
engana-te quem diz
teu futuro será o espelho dessa grandeza
nada de preocupações!
[…]
não se desgaste
opere com tecnologia
primeira
segunda
e terceira posição
parabéns!
vá em frente
pra frente que o Brasil é nosso”.
O ser político, que não se furta a manifestar sua visão de mundo, como comprova outro poema escrito em 1984, Los desaparecidos, no qual “os herdeiros de Cortez” são recriminados por trem enterrado “mil em covas rasas / sem cruz, sem nada / semeando com os filhos da terra a terra latino-americana”[3], não deixa em segundo plano uma reflexão aguda sobre o significado do ser mulher. Enquanto mulher, Anna Maria Maiolino não tem pudores em confessar algumas sensações íntimas. Celebra o gozo que gera um “novo corpo” (Poema secreto). Revela a profunda perturbação, misturada a embaraço e pesar, despertada pela visão de uma pedra “impudica, de pernas abertas”, que lembra uma “mulher recém-violada, imóvel, […] exausta” (À procura de uma pedra para um poema, 1991). Admite que o parto da filha Verônica não lhe provocou dor e sim prazer. Pergunta-se se se tratou de um “prazer físico, ou se na presença da vida tivesse juntado em um só prazer nascimento e sexo por analogia” (Nasceu Théo, meu neto, 2008).
O poema Eu te digo (1991) pode ser considerado um momento de condensação de sua autopercepção: “Eu te digo, / esta sou eu / uma mulher qualquer / de vida comum”. Como mulher “de vida comum”, a artista entrecruza em O “O” (1987) os afazeres do dia a dia (“O cheiro de cera fresca e a ordem circundante provocam-me o bem-estar da tarefa concluída”) com o trabalho de criação. Na casa-ateliê, que compartilha com Víctor Grippo em Buenos Aires, “nada é supérfluo. A mesa de comer serve também para trabalhar. Os utensílios da cozinha muitas vezes são auxiliares no trabalho do ateliê, mexendo com gesso, cimento. Tudo é de uso, espartanas sínteses, monacal. Na mesa onde se come, se trabalha. A panela que cozinha os alimentos, logo depois, servirá para o banho-maria dos materiais. Não se salva nem sequer a cama no seu uso de dormir e fazer amor, pois quando necessário, é lá que se colocam os desenhos para secar. Amamo-nos. Somos um do outro neste pedaço de mundo, a casa na rua Juncal”.
A arte, que a livrou “da loucura, da morte” (De boca aberta, 1991), que se estrutura a partir de seu corpo, visto como “matéria / físico é meu instinto sexual: oral, anal, genital”, parece não ser suficiente para enfrentar a violência que toma conta do mundo na segunda década dos anos 2000. No mesmo poema em que expõe sem receios a matéria-prima de seu processo criador (Borges diz: O tempo é a substância da qual sou feito, 2014), Anna Maria Maiolino declara-se “omissa” e se pergunta em qual círculo do Inferno Dante a colocaria. Não por acaso, esse questionamento particular é seguido por um questionamento sobre a violência contra a mulher e pela denúncia das nações que mais a oprimem:
“O Afeganistão, a República Democrática do Congo, o Paquistão, a Índia e a Somália são
[os cinco países mais perigosos para as mulheres,
A violência, a falta de sistemas de saúde, a corrupção e a pobreza colocam o Afeganistão
[em primeiro no ranking mundial.
A Somália figura em quinto lugar no ranking, pois 955 mulheres foram vítimas de
[mutilação genital”.
Há momentos no livro em que os trabalhos manuais, secularmente considerados território do “feminino”, se confundem com o fazer artístico. É o que demonstram os poemas A forma tenta existir (1993) e Como um rio corre a linha (2001). No primeiro, a gestação de uma obra, feita de recomeços, dúvidas e paciência, é apresentada por meio de objetos que remetem à costura: o novelo desenrolado, a ponta do fio encontrada, o nó desfeito, a agulha enfiada… No segundo, linha, ponto e carretel perdem sua função utilitária para transformar-se em metáforas da criação à luz do pensamento de Vassili Kandinsky:
“lá está ele
afirmando sua nudez na aparência solitária de morto-vivo que suplica movimento
sem sentir, a mão obedece-lhe
multiplicando-se ele vive
nasce a linha que o humaniza
faz-se o desenho
o som
a escrita
ele brilha na imensidão do firmamento
é o sol que nos ilumina
e lá se foi o fio
atravessando a porta
chegando até a cozinha
livre e preso ao carretel de linha”.
Esse jogo entre arte e atividades como a costura está na base de diversas obras de Anna Maria Maiolino: Linha solta (1976, da série Desenhos/Objetos), Na linha (1976) e Trajetória I (ambas da série Livros/Objetos), além da série Indícios (2000-2006). Ocupando a frente e o verso da folha de papel, a última série é assim caracterizada por ela: “Desenho com a linha de costura guiando-me pelo tato/intuição. Ela trabalha a um só tempo o verso/inverso do papel. De novo encontro-me de volta com a obsessão do uno e do dois, tentando construir o uno sem negar a face que não aparece, a oculta”.
O fio é também usado pela artista como elemento de ligação entre gerações e continentes numa obra da série Fotopoemação (1973-2011). Por um fio (1976) mostra Vitalia, Anna Maria e Verônica unidas por um barbante inserido em suas bocas. As figuras da avó, da filha e da neta podem remeter a um saber transmitido às mulheres da família, já que o barbante pode lembrar um fio de macarrão. Mas é também possível pensar que o barbante simbolize um cordão umbilical que, por meio de Anna Maria, cria um elo indissolúvel entre a Itália e a América do Sul, representada pela equatoriana Vitalia e pela brasileira Verônica.
Presente em todos os textos que integram o livro, a artista recorta um espaço próprio mais determinado em poemas como Com mão segura desenho (1985), Com uma pena invisível e o coração (1993), Desenhando atravesso o umbral do silêncio (2006), Eu sou eu, Borges diz: O tempo é a substância da qual sou feito e as memórias Estudo arte e O encontro com a arte brasileira (1998). Os poemas podem ser haicais ou se esparramar num fluxo lírico, no qual convergem arte e vida. O haicai é representado de maneira paradigmática pela estrofe: “Com mão segura desenho / traços candentes no céu / cicatrizes dolorosas / marcas do meu desejo”. O fluxo lírico pode ser resumido nos versos de 2006, nos quais Anna Maria Maiolino reivindica a importância da mão do artista no processo de criação, sem obedecer aos modismos contemporâneos que parecem querer banir o humano:
“Desenhando atravesso o umbral do silêncio
falo, crio e restauro mundos entre o princípio e a infinitude
longe das novas tecnologias, unificam-se os atos da minha mão com o cérebro
com ele eu vivo
imanente, o desenho pulsa no código genético
ele é necessidade natural, como comer e andar
sutil, é mais próximo da psique que a matéria
bastam-lhe emoções feitas de pontos e de linhas para impelir o alento fora do peito,
pousando-o na ponta da língua, dando água na boca
colocando-o na ponta dos dedos, possibilita esboçar múltiplas e opostas realidades:
marcas inquisitivas, projetos, indícios, vestígios – tempos plenos de visões de signos”.
Embora sem a mesma carga poética, uma reflexão semelhante tinha sido esboçada em Estudo arte, no qual Anna Maria Maiolino evoca o início de seus estudos artísticos em Caracas. Depois de ter sido elogiada pelo professor de Arte Pura, a jovem Anna Maria sente-se recompensada das dificuldades enfrentadas no começo da estadia venezuelana:
“Que grande possibilidade de cura é a arte, no exercício da liberdade do fazer. […] Construindo e reconstruindo mundos imaginários, nosso desejo se materializa e nos faz superar frustrações. Foi nesse processo de descoberta das possibilidades da imaginação que sarou minha alma ferida por deixar a Itália, conturbada com o impacto de outra cultura. A escola opera em mim transformações contínuas. Nesta chama alquímica, todos os dias, descubro mundos insuspeitáveis fora e dentro de mim. […] Transcorro muitas horas nos ateliês trabalhando e na biblioteca folheando livros de arte. […] Gosto ainda mais dos ofícios praticados nos ateliês. Trabalhando, o tempo escorre sem sentir. Parece que minha cabeça troca de lugar, junta-se às mãos, ausente do entorno. Mergulha tão fundo… entregue ao fazer, absorta num tempo sem presenças. […] De todas as aulas teóricas, “Elementos de expressão das Artes Visuais e do Espaço” […] é a que eu mais aprecio. Essas aulas revelam e afirmam o funcionamento do sistema inerente ao homem que nós, intuitivamente, utilizamos: a relação do seu corpo/olho com o mundo físico circunspeto e o espaço”.
Artista internacionalmente reconhecida, que receberá o Leão de Ouro da 60ª edição da Bienal de Veneza (2024), Anna Maria Maiolino poderá finalmente empreender simbolicamente a viagem de regresso auspiciada no poema Apague a luz ao sair (2016). O fim de um relacionamento amoroso leva-a a querer viajar:
“‘Anna, apressa-te, digo-me agora
Vai!’
já estou na estrada,
cheguei aos pontos dos quatro cardeais cruzados
Norte, Sul, Este, Oeste
tomo direção Sul, a via do retorno
urge-me voltar para casa,
a Scalea”.
Se não para Scalea, Anna Maria Maiolino voltará como vencedora para o país em que nasceu e do qual foi obrigada a partir, conservando dentro de si o sentimento de ser “outra” em todos os lugares nos quais viveu.
*Annateresa Fabris é professora aposentada do Departamento de Artes Plásticas da ECA-USP. É autora, entre outros livros, de Realidade e ficção na fotografia latino-americana (Editora da UFRGS).
Referência
MAIOLINO, Anna Maria. Digo e tenho dito. São Paulo: Ubu Editora, 2022, 112 pp. [https://amzn.to/4b9psMc]
Bibliografia
DURANTE, Paloma. “A experiência de ler Anna”. In: MAIOLINO, Anna Maria. Digo e tenho dito. São Paulo: Ubu Editora, 2022.
GONÇALVES, Vinícius de Oliveira. Anna Maria Maiolino: projeto artístico em construção. São Paulo: CIAC, 2022. Disponível em: <http://hdl.handle.net/10400.1/19806>
MAIOLINO, Anna Maria; RIVERA, Tania. “Correspondência 1”. Presente, abr. 2021. Disponível em: <artes.uff.br/taniarivera/data/uploads/presente_2021abril_pt_pagina-13-21.pdf>.
Notas
[1] O livro traz quatro poesias de 1971. Enquanto Poema secreto e Mar-céu-amor tratam da fusão amorosa e da solidão, respectivamente, AJJJJJJJJJ e Ar são marcados pela dor e pela dificuldade de respirar.
[2] Poderiam ser lembradas, por exemplo, obras como O herói (1966-2000), Schhiii (1967), Situação geográfica: alma negra da América Latina (1973-1996, da série Mapas mentais) e S.O.S. no Trópico do Capricórnio (1974, da mesma série).
[3] Como parte da série Fotopoemação, a artista realiza Os desaparecidos (1979), na qual apaga rostos e fisionomias com tinta preta ou faz usar vendas a seus modelos. Na instalação Las locas: o amor se faz revolucionário (2022), Maiolino homenageia as Mães da Praça de Maio, com as quais entrou em contato no período em que viveu em Buenos Aires (1984-1989). Uma espécie de santuário de paredes pretas abriga efígies moldadas em argila, que lembram máscaras mortuárias; do teto pendem lenços bordados com os nomes dos desaparecidos.
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