Dismorfia financeira

Imagem: Vijay Sadasivuni
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Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA*

As implicações que o dinheiro tem na vida prática e psíquica do brasileiro

Sou também professor de Finanças comportamentais para planejamento da vida financeira. Meu objetivo nesse curso é propiciar educação financeira para universitários. Outro dia me deparei com uma expressão nova referente à essa especialização: “dismorfia financeira”. Era o título de uma pesquisa do will Bank, executada pelos institutos de pesquisa Skim e Flor de Marcas, para investigar como uma relação conflituosa com dinheiro pode impactar diferentes aspectos de nossa vida.

Buscava o entendimento da situação financeira do brasileiro – um arquétipo questionável do agente representativo de todos os distintos habitantes deste território –, desde suas fontes de renda, seus comportamentos em compras, até questões sobre identificação, autoestima e percepção comparativa com a realidade financeira dos outros habitantes do país. Focalizou o gasto (ou não) de dinheiro.

Tal como sugerem os estudos de psicologia dos investidores (ou dos gastadores consumistas), a pesquisa detectou a pressão emocional em decisões sobre como usar o dinheiro tão exigente de esforço para se ganhar. Registrou os efeitos psicológicos negativos como a sensação de inadequação ou a comparação frequente – e “quem compara, perde!”.

Cerca de 70% dos entrevistados não usaram palavras positivas para descrever sua vida financeira atual. Para 47%, quando nela pensava, a ideia vinda à mente era negativa.

No entanto, a amostra da pesquisa parece ser enviesada porque só considerou a faixa de idade entre 18 e 40 anos. Essa idolatria pela juventude, baseada na ilusão do jovem ter o monopólio de todas as boas coisas da vida, talvez seja por constituir o público-alvo do banco digital patrocinador da pesquisa.

Jung, ao contrário de Freud, via a vida como uma contínua série de metamorfoses. A realização de uma meta de vida é tanto um ideal pelo qual lutar quanto uma tarefa a ser feita com esforço e força de vontade. Os 40 anos com a esperada “crise da meia-idade”, devido à não realização de sonhos juvenis, mesmo em casos bem-sucedidos profissionalmente, são descritos por Jung como uma fase de “crise do desenvolvimento” (psicológico) para obter maior expansão. A entrada na segunda metade da vida é, por conta dessa crise, dolorosa.

A primeira metade da vida, segundo Jung, seria devotada em marcar nossa presença no mundo ao acumular dinheiro, ampliar as conquistas sociais e educar os filhos. Porém, no início da segunda metade da vida, haveria uma espécie de fim no avanço anterior, com o sujeito paralisado psicologicamente ao explorar seu ego. Muitas neuroses têm raízes no trabalho árduo enfrentado diariamente pela pessoa. As dificuldades dos quarentões são causadas pelo medo e sua resistência a enfrentar a crise do desenvolvimento psicológico e a consequente mudança para o amadurecimento.

Sintomas vistos como patológicos por freudianos são encarados por junguianos como saudáveis sinais de crescimento. Implicam em colocar um fim à tendência de auto repressão no sentido de assumir uma maior realização da personalidade, possível de conduzir o ser humano a um tipo diferente de vida com outras atividades ou mesmo experimentações de novos relacionamentos sexuais e/ou afetivos.

Na primeira crise de desenvolvimento psicológico, a da adolescência entre os 12 e 18 anos, há uma confusão de identidade. Nessa fase, adquire-se uma noção mais coerente de “quem sou eu”, levando em conta o passado, o presente e o futuro esperado.

Em termos de consumo, refere-se à passagem dos bens da moda, típico da mentalidade infantil “eu quero porque os outros têm”, para a mentalidade juvenil dos bens esnobes, inversamente, “eu quero porque os outros não têm”. Expressa o desejo de individualização, ou seja, ser reconhecido na sua particularidade dentre a multidão. Pior é a mentalidade senil de “eu quero porque é caro”. Refere-se à busca desenfreada de status social com a comparação da posse de bens de luxos.

Em geral, os modelos de ciclos de vida financeira consideram os indivíduos apenas a partir do estágio entre 18 e 35 anos, quando se busca intimidade em lugar de isolamento. Nessa fase jovem, seduzimos, e se construímos vínculos fortes, amamos.

Essa sedução custa caro, mas os planejamentos financeiros, de acordo com os ciclos de vida, propõem essa ser, contraditoriamente, a fase de acumulação de patrimônio financeiro e/ou imobiliário. Sugere aí determinar os objetivos na vida, poupar o máximo, aprender a investir melhor, assumir riscos até construir uma família própria.

Então, na meia-idade, inicia-se a busca de manutenção do poder aquisitivo do patrimônio com investimentos conservadores sem risco em bolsa de valores ou dólar. Finalmente, na terceira-idade, libera-se o gasto do patrimônio na aposentadoria, provavelmente, mais com a saúde e os cuidadores na fase de doença mental.

Na vida real, costuma ser o inverso dessa sugestão ao assumir uma atitude conservadora do dinheiro, após os 50 anos, quando seria justamente a fase para aproveitar o acumulado, principalmente, após a aposentadoria aos 65 anos. “Aperta o cinto” aí – e não na fase da acumulação de riqueza, quando se torna jovem adulto, por causa do instinto de reprodução sem o autocontrole propiciado por educação financeira.

Daí muitos não acumulam até os rendimentos dos investimentos financeiros em juros superarem a renda do trabalho, indicando uma independência financeira. Aos 65 anos, dispondo de reserva financeira equivalente à nove vezes a sua renda anual, é possível aposentar e sacar durante vinte anos (com taxa de juro de poupança 0,5% ao mês) de modo a manter o padrão de vida alcançado antes. Se trabalhar até os 75 anos e tiver esperança de vida até os 95 anos, acumule doze vezes a renda anual. Só. É suficiente.

De acordo com a citada pesquisa, 90% dos brasileiros não conseguem comprar tudo necessário para sua satisfação, tampouco contam com reservas financeiras para o futuro. Só suprem o básico e pouco sobra para eventuais imprevistos como a pandemia.

Originalmente, dismorfia, também conhecida como Transtorno Dismórfico Corporal (TDC) ou dismorfofobia, é um transtorno psicológico no qual a pessoa possui uma preocupação excessiva e distorcida em relação à sua aparência física. Causa sofrimento emocional e impacta negativamente a vida diária, os relacionamentos e a autoestima. Leva à ansiedade, depressão, isolamento social e até mesmo pensamentos suicidas.

Dismorfia financeira se refere à condição capaz de afetar a forma como diferentes pessoas percebem a própria realidade financeira, ou seja, de quanto dinheiro tem. Ela se baseia na falta de pertencimento a um padrão criado por quem já tem muito dinheiro. O autojulgamento a compara diante de quem já está no topo da pirâmide da riqueza.

O sarrafo a saltar é móvel porque a riqueza é relativa – e não absoluta. O padrão do topo é inalcançável inclusive porque ele se altera de acordo com a especulação com ações predominante em um mercado de rumores ou boatos. Renda variável flutua…

A pesquisa indicou: homens brancos da classe AB1 costumam mais descrever a sua situação financeira como estável. Nesse grupo, 58,1% deram respostas positivas quando, na amostra geral, foram apenas 28,7%. Além deles, 22,5% consideraram-na neutra. Só para 19,4% falar de dinheiro era sinônimo de problema diante de 47,3% no geral.

Dinheiro se compra algo mais além de coisas, mas hoje é muito difícil se adquirir uma condição cultural de classe sem dispor de educação. Escolaridade, experiência de mundo e conexões impactam na intelectualidade, conhecimento e cultura pessoal.

A estética do ‘bom gosto’ se impõe e leva ao maior distanciamento da dismorfia. A definição de consumo, estética, cultura e autoimagem colocam barreiras psicológicas invisíveis por razão de ser imaginada como construída apenas em cima do dinheiro.

A “vitimização” costuma considerar inalcançáveis as distâncias sociais. Em vez de se conformar com a dismorfia, melhor seria cultivar a cultura através do estudo contínuo e esforçado. Ao longo da vida, com a aquisição possível de capacitação profissional necessária e suficiente, é aprendido até lidar com a insaciável busca pela ascensão social.

Muitos adultos, tendo passado dificuldades durante a infância, tentam, depois, curar os traumas do passado por meio do consumismo. Por isso, 79% dos entrevistados disseram ter desejo de consumir muitas coisas desejadas na infância e adolescência.

Não se adquire a sensação de pertencimento com comportamento de turista, ou seja, aproveitar as coisas apenas de passagem. Permanece o sentimento de outros ganharem mais facilmente coisas só possíveis de ser conquistadas com muito esforço.

“Ser rico”, definido como pertencer a outros grupos distantes da sua realidade, imobiliza em lugar de buscar a educação e a cultura propícias aos empreendimentos ou à carreira profissional desejada. Prefiro a definição de “ser rico” como a sensação de trabalhar com o qual gosta, de maneira criativa (ou não alienada), e ainda pagarem bem por isso…

*Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Brasil dos bancos (EDUSP).

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