Dizer o que não somos

Imagem: João Nitsche
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Por VITOR PIAZZAROLLO*

O significado filosófico do estado de coisas inconstitucional

1976, final de uma manhã em Cabo de Santo Agostinho, região metropolitana do Recife (PE). Um táxi diminuiu a velocidade e estacionou em uma vaga. De dentro dele, saiu Marcos Mariano da Silva, 28 anos, casado e com filhos, dirigindo-se a um estabelecimento na intenção de almoçar e retornar ao trabalho. Este é o início da história classificada pelo Superior Tribunal de Justiça como “o mais grave atentado à violação humana já visto na sociedade brasileira”.

Acusado de homicídio, relatou-se que um homem ferido encostou no táxi de Marcos, sujando o para-brisa e o capô de sangue. A acusação foi sustentada pela família da vítima e se tornou o suficiente para que Marcos Mariano da[i] Silva fosse posto seis anos na prisão, só alcançando a liberdade em 1982, quando o verdadeiro assassino, Marcos Mariano Silva, confessou o crime.

Naquele momento com 34 anos, abandonado pela família e ex-esposa, Marcos encarou a dura tarefa de se reinserir na sociedade enquanto ex-detento. Trabalhou por três anos como motorista, até que em 1985, abordado por um policial civil numa blitz em uma sexta-feira, foi mais uma vez confundido. O policial reconheceu Marcos e pensou se tratar de um foragido, conduziu-o até o juiz Aquino de Farias Reis que ordenou-lhe nova prisão.

Dessa vez, porém, as consequências foram mais graves. Marcos imaginou que passaria apenas um final de semana aprisionado, até que verificassem que se tratava de um engano. Contudo, passou mais treze anos no cárcere. Nesse período, contraiu tuberculose e perdeu a visão dos dois olhos, ao ser atingido por estilhaços de uma bomba de gás lacrimogêneo numa rebelião. A situação só foi descoberta quando um diretor do presídio, o Major Roberto Galindo, se empenhou em revisar os arquivos da instituição, constatando o erro gravíssimo.

Marcos foi posto em liberdade em 1998, aos 50 anos, após 19 anos de prisão sem qualquer crime. Processou o Estado de Pernambuco e ganhou, após ação que durou mais de dez anos, o direito de receber indenização, no valor de dois milhões de reais. Recebeu metade do valor, e faleceu de infarto, aos 63, no mesmo dia em que recebeu a notícia de que o Estado havia perdido o último recurso pendente, e seria obrigado a pagá-lo o restante da indenização.

Essa história é um grave alerta que exemplifica o modus operandi da justiça criminal e do que pode significar estar preso no Brasil: verdadeira condenação à morte em vida, descaso e abandono.

Ainda que possa ser considerada extrema, engana-se quem imagina ser o relato um fato isolado. Garimpando-se na jurisprudência do país, os casos surgem aos montes[ii]. Assim, ao contrário, precisa ser motivo de temor imaginar que, provavelmente, essa foi uma das poucas histórias que veio à tona, ilustrando o verdadeiro abismo entre a norma e a realidade, especialmente quando se fala nas condições de vida dos estabelecimentos prisionais.

Nesse sentido, superlotação das penitenciárias, número expressivo de presos provisórios, complexos degradados e sem manutenção, ausência de acesso à justiça e a advogados, bem como precária (e muitas vezes inexistente) assistência para educação e saúde, são fantasmas que assombram não só aqueles presos injustamente, mas todos aqueles que ingressam no “inferno prisional brasileiro”.

Esses apontamentos são alguns indicativos de uma realidade muito mais cruel e preocupante acerca do nosso sistema prisional, qual seja: a pessoa que tem sua liberdade privada sofre não somente a privação da liberdade, mas também está exposta a todo tipo de violência física e psicológica, doenças, tratamento degradante e torturas. Situação absolutamente recriminada pela nossa legislação constitucional e infraconstitucional.

Não podendo ser exclusiva a revolta contra esse estado de coisas considerando-se apenas aqueles que caem no sistema prisional injustamente, preocupa também o fato de que não se deve permitir tal realidade para nenhum detento, de acordo com a Constituição Brasileira e os seus princípios alicerçados pela dignidade humana. Evidentemente, a pena privativa de liberdade não possui este nome por acaso. É privativa de liberdade, não condenatória a tortura e maus tratos, doenças e violência, entre outros.

A verdade é que grande parte da população não possui real dimensão do que ocorre com os encarcerados dentro sistema prisional brasileiro, tampouco demonstra empatia quando o sabe. Comumente, ao se falar sobre a investigação de um crime, a detenção de um suspeito, ou o julgamento de um réu, encerra-se a narrativa com a frase “ele está preso”. Ponto final, como se a prisão fosse o fim.

Mas, e o que acontece dentro da prisão? E o que acontecerá até aquela pessoa ser solta? Como ela sairá de lá e que custos ela demandou do Estado e da sociedade? Esses questionamentos não podem ser ignorados.

O prognóstico não é bom. Em relatório finalizado em 2008, a CPI do Sistema Carcerário classificou a situação como: “Apesar da excelente legislação e da monumental estrutura do Estado Nacional, os presos no Brasil, em sua esmagadora maioria, recebem tratamento pior do que o concedido aos animais: como lixo humano (…) Ao invés de recuperar quem se desviou da legalidade, o Estado embrutece, cria e devolve às ruas verdadeiras feras humanas”.[iii]

Essa realidade favorece o crescimento do crime organizado e, sem dúvida, transborda para as ruas, afetando a toda a sociedade.[iv]

Assim, a consolidação de um ambiente extremamente violento dentro das instituições prisionais contribui não só para a frustração do objetivo de ressocialização da pena, mas também manifestamente viola direitos e garantias fundamentais presentes na Carta de 1988 de maneira sistemática. Essa foi a realidade que objetivou o ajuizamento da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 347 perante o Supremo Tribunal Federal, em 2015, a qual será tratada adiante.

De acordo com dados do Sisdepen[v], em 2015 havia o total de 698.618 presos no Brasil para 371.201 vagas, representando déficit de 327.417 na necessidade total de vagas (foi o maior número até hoje, desde o início da série histórica). Não suficiente, na época, do total de presos, 37,47% eram provisórios, que não deveriam ser misturados com os efetivamente condenados.[vi]

Os números são frios, mas a realidade é escaldante. Isso porque a soma das condições narradas com a quantidade de pessoas submetida a elas, neste amálgama de violações, dá a luz a verdadeira quimera na perspectiva de qualquer recuperação dos detentos.

Na ação ADPF 347, que objetiva a declaração do “Estado de Coisas Inconstitucional” (ECI)[vii], a requerente defende que o encarceramento em massa e as condições dos estabelecimentos prisionais no Brasil não só não geram a pretensa segurança que prometem, mas também, e ao contrário, agravam os índices de criminalidade e de violência social para toda a sociedade.

A ação trouxe como novidade, no entanto, a insurgência não contra uma norma nitidamente identificada, ou contra um ato de um dos Poderes especificamente, mas explanou, nas palavras da petição inicial, que falta ao Estado brasileiro, nos seus diversos poderes e instâncias federativas, “a mínima vontade política de transpor do papel para a realidade a promessa constitucional de garantia da dignidade humana do preso”[viii]. Dessa forma, defendeu que o cenário desafiaria a intervenção da jurisdição constitucional brasileira no problema, não apenas no controle de constitucionalidade, mas na garantia de que estaria havendo a proteção à dignidade dos grupos vulneráveis.

Sendo os encarcerados grupo impopular perante a opinião pública, há claro desestímulo para que o sistema político e a burocracia estatal defendam os seus direitos. Não só não votam, de maneira que não conseguem eleger representantes para pautarem seus interesses, como também é nítido que a associação voluntária de qualquer político com os pleitos dos presos pode representar perda de capital político ao representante popular, o que justificaria, de um lado, a inércia dos representantes públicos, receosos de perderem eleições, mas de outro a atuação contramajoritária do STF.

Por essa razão, a requerente pediu que fosse declarado o “Estado de Coisas Inconstitucional”, referente à situação do sistema carcerário brasileiro e os efeitos sobre os presos.

O Estado de Coisas Inconstitucional caracteriza-se como uma técnica judicial constitucional, utilizada pelo Poder Judiciário Constitucional de um país, cujo objetivo maior é romper a inércia dos outros poderes da República, diante de um cenário em que (i) há a violação massiva de direitos e prerrogativas fundamentais de um grupo, (ii) omissão continuada de autoridades públicas, que gera e agrava essas omissões, e que (iii) a solução dependa de uma atuação coordenada entre os poderes.

A violação massiva e generalizada de direitos fundamentais indiscriminados deve afetar um grande grupo indeterminável de pessoas de maneira sistemática. Ademais, não é obrigatório, mas efervesce essa determinação quando o grupo de pessoas não possui representação política efetiva ou adequada nos órgãos representativos, tornando-se invisíveis ao Estado.

Já a omissão das autoridades públicas deve ser atribuível a mais de um ente, o que configura uma “falha estrutural”. Nas palavras de LAGER E BUGGER não se trata da inércia de uma única autoridade ou instituição, mas sim do funcionamento deficiente do Estado como um todo. Importante destacar, ainda, que a omissão aqui pontuada se relaciona ainda a outro fator: a ausência de discussão do problema. Isto é, não há vontade política para a solução do problema, o que é diferente de uma má-gestão no trato público[ix].

Finalmente, sobre o terceiro pressuposto, os dois anteriores fazem concluir que há uma ferida estrutural na sociedade, cuja solução não será alcançada somente pela tutela simples de um órgão judicial ou de administração pública. Ao contrário, exatamente pelo cenário complexo de pluralidade de vítimas e causadores da problemática abordada, torna-se necessário buscar diferentes remédios para a solução.

Junto a tudo isso, a Corte Constitucional não resolverá o quadro litigioso isoladamente, por meio de ordens de cumprimento direto, mas deve endereçar os problemas institucionais promovendo o diálogo contínuo entre os poderes.

Desse modo, a técnica consiste em uma avocação pela Corte Constitucional para o início do debate de uma questão severa, após a constatação dos pressupostos indicados.

Sendo assim, o Estado de Coisas Inconstitucional foi primeiro introduzido no Brasil por meio da ADPF 347 protocolada pelo PSOL (Partido Socialismo e Liberdade) em 27/05/2015. O objetivo da ação é o reconhecimento da figura do ECI relativamente ao sistema penitenciário brasileiro, para que haja a adoção de providências estruturais que mirem na resolução das lesões a preceitos fundamentais sofridas pelos encarcerados.

O requerente indicou haver a violação massiva e sistemática de direitos fundamentais, discorreu sobre a omissão dos poderes na resolução da questão, e pontuou que a superação desse estado de coisas necessita coordenação entre diferentes órgãos. No mais, fez pedidos específicos para diferentes esferas dos poderes judiciário, legislativo e executivo.

A relatoria do caso ficou com o Ministro Marco Aurélio, que no julgamento da Medida Cautelar entendeu cabível o reconhecimento dessa nova modalidade de inconstitucionalidade no direito brasileiro. Após descrever a urgente situação da população carcerária no Brasil, o relator confirmou que dela decorrem inúmeras violações a direitos fundamentais, bem como a preceitos básicos da Lei de Execução Penal (Lei 7210/1984).

De acordo com o Ministro, tais violações não teriam seu impacto restrito somente a situações subjetivas e individualizadas, mas afetariam a integralidade dos encarcerados no país e, por consequência, toda a sociedade, concluindo que o cárcere brasileiro não servia para a ressocialização. Assim sendo, declarou a existência do Estado de Coisas Inconstitucional, evidenciando que o STF deveria funcionar como um coordenador institucional para produzir um efeito desbloqueador da discussão, e não como um elaborador de políticas públicas.

Diante disso, deferiu os pedidos liminares para que juízes realizassem audiências de custódia em todo o território nacional, no prazo de 90 dias; ordenou a liberação dos recursos do – dito contingenciado – Fundo Penitenciário Nacional (Funpen) para reforma, melhoria e construção de novos presídios, como forma de criar novas vagas e diminuir o déficit; e solicitou de ofício informações da União e dos Estados a respeito de seus sistemas prisionais. Ministros Fachin, Barroso, Zavascki, Weber, Fux, Carmen Lúcia, Celso de Mello e Lewandowski repetiram, com pouca variação, os argumentos defendidos por Marco Aurélio.

Instado a agir, o Poder Executivo editou as Medidas Provisórias 755 e 781 (depois convertidas em lei), que alteraram a Lei Complementar que criou o Funpen (LC 79/94) com o objetivo de facilitar o seu descontingenciamento, por meio da desburocratização de repasses. Ocorre, porém, que a atuação foi alvo de críticas, inclusive resultando no aditamento da inicial na APDF 347, sob o argumento de que as medidas do Executivo acabaram dando ao Fundo Penitenciário destinação estranha a simplesmente melhorar o sistema penitenciário, como o fortalecimento da inteligência das polícias e a realização de campanhas educativas sobre segurança, o que pioraria materialmente o caos dos cárceres e aprofundaria o Estado de Coisas Inconstitucional.

Outrossim, o Supremo Tribunal Federal não só não julgou o mérito da ação em seis anos, como não acompanhou o cumprimento das medidas, por meio de sentenças flexíveis. Da mesma maneira, quando provocado em outras ações, negou nova declaração de ECIs para problemas semelhantes[x], do mesmo modo que se tornou endereço preferencial de reclamações constitucionais de pessoas físicas que desejavam alcançar a obrigatoriedade da realização de audiências de custódia em seus processos criminais, congestionando a pauta do Tribunal.

Como resultado, porém, o maior avanço está na redução do percentual de presos provisórios. 37,47% em 2015 para 30,15% em 2020, não sendo claro, porém, se essa diminuição é consequência direta da ADPF 347.

Com essa análise em pauta, não é incomum surgir a pergunta: devemos desistir do ECI enquanto mecanismo para alterar a nossa realidade social? Ele está fadado ao fracasso? A utilização deste conceito no Brasil foi feita corretamente? O Supremo Tribunal Federal se precipitou?

Contudo, antes de haver qualquer tipo de antecipação que tenha como mote a destruição ou exaltação exacerbada do instituto, para responder a essa pergunta, o presente artigo deseja jogar luz sobre um aspecto que não foi identificado em nenhum outro estudo a respeito do tema, qual seja: o significado filosófico de uma declaração de estado de coisas inconstitucional.

 Antes de nos debruçarmos sobre o questionamento colocado – “qual é o sentido filosófico de se declarar um estado de coisas inconstitucional?” -, é preciso tecer considerações sobre a dialética e a fenomenologia de Hegel, essenciais enquanto instrumento teórico utilizado para respondê-lo neste artigo.

O pensamento hegeliano, tem como contribuição mais notável a insistência de que toda e qualquer normatividade que se coloca a nós como “necessária” tem uma “gênese”, que não só justifica a necessidade dessa validade, mas uma gênese que explicita aquilo que a normatividade procura deixar implícito[xi]. Ao frisar essa insistência e apresentar a busca pela gênese, faz-se uma crítica ao que é colocado a nós como absolutamente evidente, necessário e, em suma, “natural”. Ademais, é impossível se afastar da historicidade que marca a sucessão dos acontecimentos.

Somado a isso, com fins de operacionalizar essa investigação da gênese e evolução significativa, Hegel recuperou o conceito grego de dialética, modificando-o de maneira decisiva. A sua filosofia pode ser compreendida como a realização do conceito de dialética em seu movimento do “conceito” até culminar na “ideia”, recuperando a historicidade dos acontecimentos. Este desenvolvimento, inclusive, possuiria uma direção geográfica específica, vai do Oriente ao Ocidente.[xii]

Explica-se.

Historicamente, a dialética está associada à história da filosofia na Grécia. Vem do termo grego que fala sobre a arte de dialogar com a razão. Ela está presente na maiêutica[xiii] socrática, como forma de entrar no pensamento do outro por meio de perguntas e fazê-lo entrar em contradição dentro de seu próprio raciocínio, reduzindo-o ao absurdo, e é também definida por Platão como: “Este que sabe interrogar e responder até alcançar o esclarecimento dos princípios gerais”.

Platão pontua que a dialética enquanto processo serve para destruir as hipóteses até chegarmos a um princípio. Por tudo isso, a dialética ficou associada, inclusive na experiência medieval, muito mais à ideia de retórica do que de lógica, vinculada à arte da raciocinação. Capaz de chegar aparentemente a conclusões acertadas, embora não ligada verdadeiramente à lógica.

Hegel recuperou o conceito de dialética de uma maneira sugestiva e peculiar. Não apenas a partir dos princípios medievais de “tese, antítese e síntese”, mas como espírito da contradição. Assim, a dialética hegeliana é o espírito da contradição organizado, ou seja, uma forma de se pensar, na qual a contradição é o motor do pensamento.

Isso nos é contra intuitivo, porque no senso comum a contradição é justamente o que barra e interrompe o pensamento. Hegel, por sua vez, trouxe a contradição ao patamar de pensamento em movimento. Este movimento é pautado no seguinte processo: primeiro produz algo que destrói o próprio conceito sobre o que se pensa; depois a destruição, então, causa um segundo movimento que é o “retorno a si”, integrando então o conceito a um outro plateau.

Assim, a “experiência” de Hegel é o processo através do qual algo se aliena de si mesmo, coloca-se naquilo que seria a sua negativa, e então retorna dessa alienação com um novo significado. Sem temporalidade definida, não há critério de duração deste processo historicamente.

E é exatamente isso que a declaração de um Estado de Coisas Inconstitucional por uma Corte Constitucional faz, filosoficamente.

Ao se deparar com uma alegação de violação massiva de direitos fundamentais e comparar a norma com a realidade, a Corte Constitucional declara “aquilo que não somos”, a nossa antítese, pautada no referencial constitucional fundado na dignidade humana, na proteção da vida, e no acesso a direitos sociais. Essa determinação, com o objetivo de romper a inércia dos diferentes Poderes e, logicamente, alterar a realidade, nada mais é do que o movimento proposto por Hegel, no sentido de alcançarmos um novo patamar enquanto sociedade, em que o problema pontuado esteja superado.

Evidenciando a comparação entre a realidade brutal do sistema prisional e as garantias fundamentais da Constituição, há a destruição do que se pensa sobre nossa sociedade com a declaração do Estado de Coisas Inconstitucional. Após essa destruição, com o rompimento da inércia e adoção de medidas coordenadas pelos diferentes agentes públicos, caminha-se para o segundo movimento, o “retorno a si”, com a colheita dos resultados práticos que podem ser, inclusive, a criação de novos marcos legislativos para solucionar o problema. Há, assim, um novo plateau social, que pode ou não ser suficiente para os objetivos pretendidos e indicar novos caminhos de atuação.

Dessa maneira, ganha especial destaque a ideia do Estado de Coisas Inconstitucional não como panaceia, como muitos críticos tentam fazer parecer ser, mas como uma técnica eficiente e filosoficamente orientada para impulsionar o pensamento e o debate público, em situações que se requer o movimento de muitos órgãos do poder para solucionar uma questão que afeta, sobretudo, pessoas e grupos que não possuem voz institucional.

O exemplo brasileiro, embora não seja dos melhores, no que tange aos resultados da declaração da ECI, não é para ser completamente descartado. Primeiro porque o processo que originou o instituto ainda está em trâmite, com mérito pendente de julgamento. Segundo porque os dados, apesar de tudo, indicam, sim, certa melhora nos indicadores.

A dúvida que representa o nó górdio da discussão é até que ponto essas mudanças podem ser relacionadas com a ADPF 347? Se não é tarefa simples relacioná-los numa relação causa e consequência, igualmente não é tão simples afastá-los e dizer que não possuem qualquer relação.

Por essa razão, assumindo que o objetivo maior de uma declaração de ECI não é ser um truque de mágica, mas sim uma ferramenta específica para propulsionar um debate, recupera-se a crença de que o instituto pode ser um grande aliado caso utilizado de maneira mais eficiente.

Em suma, encontrar o sentido filosófico de uma prática pode se revelar a melhor saída para responder às críticas que a doutrina enfrenta, encarando o caminho pela qual ela deve seguir, sem descartá-la para sempre diante das primeiras inseguranças observadas.

           Após todo o exposto, sedimenta-se que o sistema prisional brasileiro não possui capacidade de prestar uma pena que signifique a ressocialização dos encarcerados, apresenta déficit crônico de vagas para o número de presos, e passa à margem das garantias constitucionais e da Lei de Execução Penal. Essa realidade acarreta em generalizadas e massivas violações de direitos fundamentais para uma parcela da população que encontra sérias dificuldades em pautar seus interesses no campo político, configurando-se como voz não ouvida.

O problema em voga é complexo e demanda a atuação coordenada de vários órgãos do poder público, com reserva, inclusive, de orçamento, o que impede que o controle de constitucionalidade se dê especificamente sobre uma norma ou ato do Poder Público individualizado. Não suficiente, observa-se a inércia prolongada daqueles que detêm as ferramentas capazes de solucionar a questão.

O instituto do Estado de Coisas Inconstitucional surge diante dessa realidade como uma técnica constitucional valiosa, originada pela Corte Constitucional Colombiana, que pode ser utilizada pelo nosso Supremo Tribunal Federal para endereçar os problemas enfrentados.

Com efeito, trata-se de técnica que objetiva romper a inércia dos poderes para iniciar o debate público a respeito de um tema crítico. Possui como pressuposto a violação massiva de direitos fundamentais a um número considerável de pessoas, a omissão continuada dos órgãos públicos, e a necessidade da coordenação de diversos entes para a melhor solução. Pelo tribunal constitucional, sua melhor aplicação se dá por meio de sentenças flexíveis.

Neste contexto, o sentido filosófico do ECI é de extrema importância para revelar o caminho que queremos seguir como sociedade para alcançar um plateau novo, em que a nossa norma e a realidade estejam mais identificadas uma com a outra, não se tratando, evidentemente, de declaração panaceia capaz de solucionar o problema sozinha

Ao contrário, como indicativo de continuidade do debate, outras questões que precisam ser debatidas ao se falar sobre a situação do sistema carcerário brasileiro são a cultura do encarceramento, tanto da justiça criminal, quanto referente aos anseios de parte significativa da sociedade que é extremamente punitivista, clama por mais prisões, deseja criminalização de práticas e defende o embrutecimento de penas.

Quantas pessoas estão presas por quais crimes? A maioria dos crimes refere-se a práticas violentas? Quais são as condutas que mais causam repulsa na sociedade brasileira? Elas refletem nos indicadores do sistema prisional? Prendemos muito? Prendemos mal?

*Vitor Piazzarollo Loureiro é mestrando no Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da FD-USP.

Referências


APDF. Petição inicial da ADPF 347, página 06. Disponível em https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=8589048&prcID=4783560&ad=s#

CAMPOS, Carlos Alexandre de Azevedo. Da Inconstitucionalidade por Omissão ao Estado de Coisas Inconstitucional. (Tese de Doutorado, UERJ, 2015)

CONGRESSO NACIONAL. Câmara dos Deputados. Relatório da CPI do Sistema Carcerário, 2009, p. 172. (doc. 6). Disponível também em: https://bd.camara.leg.br/bd/handle/bdcamara/2701

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HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Filosofia do Direito. Tradução de Paulo Meneses et. al. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2010 (Segunda Parte, pp. 129-166; e Terceira Parte, Terceira Seção, pp. 229-314).

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Notas


[i] Sublinhado para demonstrar que o equívoco se sustentou, inclusive, por uma única preposição que diferenciava o nome do verdadeiro criminoso com o do inocente.

[ii] Exemplo clássico é o conhecido “Caso dos Irmãos Naves”, de 1937, em Araguari/MG. Mais recentemente, também em MG, ganhou notoriedade o caso do artista plástico Eugenio Fiuza de Queiroz, preso durante 18 anos por estupros que não cometeu. Sua inocência veio após o reconhecimento do verdadeiro criminoso, Pedro Meyer, em 2012.

[iii]  Câmara dos Deputados. Relatório da CPI do Sistema Carcerário, 2009, p. 172. (doc. 6). Disponível também em: https://bd.camara.leg.br/bd/handle/bdcamara/2701

[iv] A CPI encontrou homens amontoados como lixo humano em celas cheias, se revezando para dormir, ou dormindo em cima do vaso sanitário. Em outros estabelecimentos, homens seminus gemendo diante da cela entupida. Em outros estabelecimentos, redes sobre redes em cima de camas. Mulheres com suas crianças recém-nascidas espremidas em celas sujas (…) Assim vivem os presos no Brasil. Assim são os estabelecimentos penais brasileiros na sua grande maioria. Assim é que as autoridades brasileiras cuidam dos seus presos pobres. E é assim que as autoridades colocam, todo santo dia, feras humanas jogadas na rua para conviver com a sociedade. Câmara dos Deputados. Relatório da CPI do Sistema Carcerário, 2009. p. 244. Câmara dos Deputados. (doc. 6). Disponível também em: https://bd.camara.leg.br/bd/handle/bdcamara/2701

[v] Disponível em https://www.gov.br/depen/pt-br/sisdepen. Acesso em 24/06/2021.

[vi] Os dados mais atualizados, de 2020, apontam para número total de 678.506 presos, frente a 446.738 vagas (déficit de 231.768 vagas). Ou seja, houve melhora nos números. No entanto, entre 2016 e 2019 o déficit continuou alto, inclusive acumulando aumento em todos os anos, até recuar na virada da década.

[vii] Trata-se de técnica criada na Corte Constitucional Colombiana, para encurtar o artigo foi suprimida a evolução histórica, mas caso haja interesse contatar por [email protected] para versão completa.

[viii] Petição inicial da ADPF 347, página 06. Disponível em https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=8589048&prcID=4783560&ad=s#

[ix] Por exemplo, é fato notório que os sistemas de saúde e educação ainda têm muito a avançar no país, o que é diferente de dizer que eles não estão na pauta política. Pelo contrário, tais temas são reiteradamente discutidos nas esferas de poder, bem como há políticos identificados com essas causas, cuja base eleitoral, inclusive, advém da sua militância em prol desses temas.

[x] Reclamações Constitucionais nº 23.872 e 26.111.

[xi] Dito de maneira mais simples: as coisas possuem uma “razão de ser” compreendida quando buscamos as respostas na história.

[xii] Especificamente sobre este ponto, vale mencionar que diversos autores importantes discordam dessa ideia de direção geográfica do pensamento, incluindo este autor.

[xiii] “Parto das ideias”. A mãe de Sócrates era parteira e o filho a ajudou diversas vezes em seu ofício. Quando adentrou no campo da filosofia, Sócrates dizia que, assim como o parto de um bebê, as ideias estavam dentro de nós, bastando que lhe déssemos à luz, assim como em um parto. Ainda, na Grécia antiga, Maia era a deusa da fertilidade, o que dá a origem à palavra “maiêutica”, método para facilitar o parto das ideias, por meio de sucessivas perguntas.

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