Do espírito das leis

Tim Mara, Escultura de alfinetes, 1995–6
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Por MONTESQUIEU*

Prefácio do autor, na versão da nova tradução brasileira

Advertência do autor

Para a compreensão dos quatro primeiros livros desta obra é necessário observar que aquilo que denomino de virtude na república é o amor pela pátria, isto é, o amor pela igualdade. Não é uma virtude moral nem uma virtude cristã, é a virtude política, e está é o móbil que faz o governo republicano se mover, assim como a honra é o móbil que faz a monarquia se mover. Portanto, chamei de virtude política o amor pela pátria e pela igualdade.

Como concebi ideias novas, foi-me necessário encontrar novas palavras ou conferir novas acepções às antigas. Aqueles que não compreenderam isso imputaram coisas absurdas às minhas palavras e que seriam revoltantes em todos os países do mundo, pois em todos os países do mundo a moral é desejada.

2º. – É necessário notar que existe uma enorme diferença entre dizer que uma certa qualidade, modificação da alma, ou virtude, não é a mola que faz um governo agir e dizer que ela não existe nesse governo. Se dissesse: “tal engrenagem, tal carrete não são a mola que faz o relógio se mover”, concluir­-se-ia disso que elas não estão presentes no relógio? Longe de as virtudes morais e cristãs estarem excluídas da monarquia, a própria virtude política também não o está. Em poucas palavras, a honra está presente na república, embora a virtude política seja sua mola; a virtude política está presente na monarquia, ainda que a honra seja sua mola.

Enfim, o homem de bem sobre o qual tratamos no Livro III, Capítulo V não é o homem de bem cristão, mas o homem de bem político, que possui a virtude política da qual falei. É o homem que ama as leis de seu país e que age pelo amor das leis de seu país. Nesta edição, lancei nova luz sobre todas essas coisas, fixando ainda mais as ideias; e, na maior parte dos lugares em que utilizei a palavra virtude, grafei-a virtude política.

Prefácio

Se, dentre o infinito número de coisas contidas neste livro, houver alguma que, contra os meus propósitos, possa ofender, ao  menos não há nenhuma que tenha sido apresetada com má intenção. Não possuo, por natureza, um espírito desaprovador. Platão agradecia ao céu por ter nascido na época de Sócrates; quanto a mim, sou-lhe grato por ter me feito nascer no governo em que vivo e por ter me feito disposto a obedecer àqueles que me fez amar.

Peço por uma graça que receio não me ser concedida; de não julgarem, por uma leitura pontual, um trabalho de vinte anos; de aprovarem ou condenarem o livro inteiro, e não algumas frases. Quem pretende encontrar o desígnio do autor apenas pode descobri-lo a contento no desígnio da obra. Comecei por examinar os homens e considerei que, nessa infinita diversidade de leis e de costumes, eles não eram dirigido unicamente por suas extravagâncias.

Estabeleci os princípios e observei os casos particulares se conformarem a eles como que por si próprios, as histórias de todas as nações se sucederem apenas como suas consequências, e cada lei particular ligar-se a uma outra lei ou depender de uma outra mais geral.

Quando me voltei à Antiguidade, busquei apreender seu espírito, a fim de não enxergar como sendo semelhantes casos realmente diferentes e para não deixar escapar as diferenças daqueles que me pareciam semelhantes.

De nenhuma forma extraí meus princípios de meus preconceitos, mas sim da natureza das coisas.

Aqui, muitas verdades apenas serão sentidas após termos observado o      encadeamento que as liga a outras. Quanto mais se refletir sobre os detalhes, mais a certeza dos princípios será sentida. Esses próprios detalhes, eu não os ofereci todos: afinal, quem poderia tudo dizer sem causar um tédio mortal?

Não serão encontrados aqui os traços proeminentes que parecem caracterizar as obras atuais. À medida que vemos as coisas em uma perspectiva mais ampla, tais proeminências se dissipam: elas normalmente apenas nascem porque a mente se fixa em um só aspecto e abandona todos os outros. Não escrevo para censurar o que está estabelecido em qualquer país que seja. Cada nação encontrará aqui as razões de suas máximas, e disso naturalmente se extrairá a seguinte consequência: a proposição de mudanças apenas cabe àqueles venturosamente nascidos para descortinar, em um rompante de gênio, a constituição inteira de um Estado.

Não é indiferente que o povo seja esclarecido. Os preconceitos dos magistrados começaram sendo os preconceitos da nação. Em uma época de ignorância, não há hesitação nem. mesmo quando os piores males são cometidos; em uma época esclarecida, há vacilação mesmo quando os maiores bens são realizados. Percebem-se os abusos antigos, contempla-se sua correção, mas também são contemplados os abusos da própria correção.

Caso se espere pelo pior, o mal é mantido; caso se duvide do melhor, o bem  é mantido. As partes são observadas somente para julgar o todo reunido; examinam-se todas as causas para contemplar todos os resultados.

Se pudesse fazer que o mundo inteiro tivesse novas razões para amar seus deveres, seu príncipe, sua pátria, suas leis, que todos pudessem sentir melhor sua felicidade em cada país, em cada governo, em cada cargo que ocupa, considerar-me-ia o mais feliz dos mortais.

Considerar-me-ia o mais feliz dos mortais se pudesse fazer com que os homens pudessem se curar de seus preconceitos. Aqui chamo de preconceitos não aquilo que faz com que se desconheçam determinadas coisas, mas aquilo que faz com que se desconheça a si mesmo.

É ao procurar instruir os homens que se pode praticar essa virtude geral que inclui o amor de todos. O homem, este ser flexível, conformando-se, na sociedade, aos pensamentos e às impressões dos outros, é igualmente capaz de conhecer sua própria natureza quando esta lhe é apresentada e de perder até mesmo o sentimento de sua natureza quando ela lhe é ocultada.  Muitas vezes comecei e muitas vezes abando nei esta obra; mil vezes joguei aos ventos as folhas que havia escrito; todos os dias  eu  sentia as  mãos paternas caírem; buscava meu objeto sem constituir o desígnio; não conhecia nem as regras, nem as exceções; encontrava a virtude  apenas para perdê-la.

Mas, quando descobri meus princípios, tudo o que buscava veio até mim; e, ao longo de vinte anos, vi minha obra começar, crescer, avançar e terminar.

Se esta obra for exitosa, deverei muito à majestade de meu tema. Contudo, não creio ter prescindido totalmente de gênio. Quando vi o que tantos homens eminentes na França, na Inglaterra e na Alemanha escreveram antes de mim, fiquei admirado. Porém, de nenhuma forma perdi a coragem: “E eu também sou pintor”, disse Correggio.

*Montesquieu (1689-1755) foi um politico, filósofo e escritor francês.

Referência


Montesquieu. Do espírito das leis. Tradução: Thiago Vargas e Ciro Lourenço. Revisão técnica: Thomaz Kawauche. São Paulo, Unesp, 922 págs. [https://amzn.to/4cUGf6l]


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