Por DOROTHY SÖLLE*
Pode a teologia se dispor a ignorar a história social da Cristandade?
Nosso problema hoje não é tanto o mito enquanto ideologia cristã. Apenas abrir a Bíblia e esperar receber instrução não é suficiente, nem mesmo quando os métodos de crítica textual e desmitologia[i] são empregados. A pessoa que busca determinar a natureza da obediência,[ii] de acordo com seu significado original no Novo Testamento, não pode ser absolvida do reconhecimento de que sua natureza original é solidamente embutida na história. Uma hermenêutica teológico-existencial do significado simplifica demais a questão, dando um salto direto do século I ao século XX. Um salto tão impressionante, capaz de mover o coração de um indivíduo; mas a realidade social, a qual em parte tem sido formada pelas práticas educacionais da Igreja cristã, resta intocada.
Pode a teologia se dispor a ignorar a história social da Cristandade? Pode a hermenêutica se dispor a proceder somente desde a palavra da Escritura, num esforço para nos confrontar com esta palavra abstrata, a partir de suas realizações, desprovida de sua própria história? Ao fazer isso, a herança muito própria da Reforma, a qual está supostamente preservada, é, na realidade, negada. Para que a Escritura se torne “Palavra de Deus”, que é esclarecedora, ativa, evento transformador do mundo, deve haver um entendimento e uma reflexão sobre sua própria situação. Uma hermenêutica do significado continua a-histórica, apesar, e diretamente por causa, do método histórico-crítico, na medida em que não inclui uma hermenêutica de resultados e considera teologicamente realizações históricas atuais. Não é o suficiente questionar qual obediência é “essencial”; devemos saber quais são os resultados de tal obediência para reconhecer o que isto é capaz de se tornar.
Por essa razão, pode ser dito que a “desmitologia” não compreende a si mesma quando se concentra somente nos textos do Novo Testamento, e se torna um processo definitivo. Para que tenha verdadeiro valor, a desmitologia deve se aprofundar na história contínua da transmissão e examinar os elementos básicos, os quais demandaram uma tal transmissão. Uma desmitologia desse tipo necessariamente levará a uma crítica da ideologia.
Hoje, refletindo sobre nossa fé, raramente lidamos com o mundo da mitologia. Esse mundo comparativamente colorido e bonito, embora não obrigatório, praticamente deixou de existir. No entanto, o seu derivado,[iii] uma ideologia destilada e racionalizada, tornou-se extremamente problemático. Mitos podem morrer quando não oferecem mais expressão aos relacionamentos da vida real das pessoas, suas demandas, seus horrores, seus medos, suas esperanças e seus desejos.
Uma história[iv] mítica sobre uma cura milagrosa já não significa nada a todas essas pessoas quem tem aprendido a colocar suas esperanças na penicilina. Em uma visão de mundo mitológica, tais conceitos como “enfermidade” e “céu”[v] tem um sentido inteiramente diferente em relação ao que fazem num compreensão crítico-racional do mundo. Contudo, se um mito que caducou é mantido na sua forma tradicional, ele se firma numa ideologia, num princípio abrangente, o qual não está mais relacionado com a prática da vida real. Nesse caso, a palavra “ideologia” é compreendida como uma consciência, na qual a teoria e a prática de um grupo de pessoas nada tem a ver uma com a outra, nem sem corrigem.
O princípio abrangente também não é tocado, nem mudado por aquilo que ocorre realmente na vida. Há teólogos que estão tão ideologicamente isolados, que um acontecimento como Auschwitz nunca os movem para alterarem a posição deles. Desde que um certo princípio abrangente não leve em conta a vida prática, não há possibilidade de se afetar ou alterar o curso dessa vida. O rigor mortis[vi] está completo.
No pensamento mítico, em que Deus apareceu diretamente em chamados e comando, em fenômeno natural e mudanças de sorte, um conceito como o de obediência tem um sentido diferente do que é dado na visão moderna de autodeterminação humana. Aquilo que tinha seu lugar certo na mitologia, tornou-se uma relíquia ideológica na nossa era pós-mítica. Uma tal relíquia tende cobrir os interesses daqueles que cuidam e passam adiante mitos mortos. A afirmação de que “a essência da fé é a obediência” é tão formal quanto o é vazia, e requer crítica ideológica em vez de interpretação.
Isso não faz sentido para desmitologizar o Novo Testamento e, depois, apresentá-lo, em sua forma purificada, a uma sociedade capturada em ideologias pós-cristãs. Aqui tem sua origem a fraqueza de muitos sermões exegeticamente sólidos e teologicamente corretos. De modo contrário, a prática da desmitologia, desenvolvida nos estudos do Novo Testamento, deve encontrar seu lugar de prática como uma crítica da ideologia na cena social contemporânea.
O nível atual de especialização científica em nosso mundo torna isso impossível de ser realizado por qualquer uma disciplina; isso demandará um esforço cooperativo. Não há nada mais catastrófico para a hermenêutica do significado, especialmente para aquela que entende a si mesma como “instrutora da linguagem” da fé, do que ser isolada das outras disciplinas humanas. Ainda assim, essa situação é típica nos círculos mais amplos da teologia existencial e é alimentada por um preconceito tradicional contra todas as disciplinas não-teológicas, especialmente contra aquelas mais modernas, tais como a sociologia, ciência política, psicologia e psicanálise. Essa arrogância teológica para com aquilo que é “meramente” psicológico ou sociológico anda de mãos dadas com uma forma de ignorância, a qual acredita que é possível desenvolver uma ética somente na base do passado.
A desmitologia, que não se torna uma crítica da ideologia, reforça o véu ideológico que paira sobre nossa realidade social simplesmente porque suas explicações parciais criam um senso elitista[vii] de esclarecimento[viii] completo. Mesmo assim, a obediência precisa de uma crítica ideológica e não meramente de uma definição exegética.
*Dorothy Sölle (1929-2003) foi teóloga, escritora e poeta. Professora honorária na Universidade de Hamburgo. Autora, entre outros livros, de The White Rose: Munich 1942-1943.
Publicado originalmente como Apêndice do libro Beyond the mere obedience.
Tradução: Ricardo Evandro Santos Martins.
Notas do tradutor
[i] Desmitologia é um termo desenvolvido por um dos mais importantes teólogos do século XX, o alemão Rudolf Bultmann (1884-1976). Influenciado pela filosofia de Martin Heidegger, especialmente pelo seus método hermenêutico-fenomenológico e pelo projeto de uma ontologia fundamental, Bultmann desenvolveu uma teologia existencial que tinha a “desmitologização” como método de interpretação bíblica. Em resumo, não se trata de se perder de vista o caráter mitológico do Novo Testamento, por exemplo, mas se trata de interpreta-lo de modo hermenêutico-existencial, lidando com sua mensagem de fé a partir de uma visão historicizada, fática, desde a existência do ente para qual o sentido do texto está em aberto como intérprete. Como o próprio Bultmann diz no seu famoso artigo Novo Testamento e mitologia, de 1941: “Pois a redenção da qual falamos não é um evento miraculosamente sobrenatural, mas um evento histórico forjado no tempo e no espaço. (…) Os apóstolos que anunciam a palavra podem ser considerados apenas como figuras da história passada, e a Igreja como um fenômeno sociológico e histórico, parte da história da evolução espiritual do homem. Ainda assim, ambos são fenômenos escatológicos e eventos escatológicos” (BULTMANN, Rudolf et al. New Testament and mithology. In: Kerygma and myth: A theological debate. Nova York: Harper and Row, 1961, p. 39; 44).
[ii] O sentido de “obediência”, aqui, está relacionado ao tema central do próprio livro da teóloga Dorothy Soelle, Beyond the mere obedience (1982). O tema da obediência é tratado por quase todos capítulos do livro, a começar pelo próprio Prefácio, escrito pela própria autora aos leitores dos Estados Unidos, e pelo resto dos capítulos de todo livro. Sobre isso, assim a autora diz no referido Prefácio: “Esse livro é uma tentativa de trabalhar através dos aspectos opressores das tradições da obediência que eu internalizei na minha identidade nacional, religiosa e sexual. Sendo uma alemã, uma cristã e uma mulher, fui criada em três tipos de tradições que me exigiram obediência. Esse fato me enche de dor, de raiva e de vergonha.” (1982, p. ix.). Em seguida, ao se referir à perseguição contra judeus no tempo da Alemanha nazista, quando eram obrigados a usar uma estrela amarela, Soelle faz a seguinte questão: “(…) é possível pensar em um filósofo moral ou teólogo quem usaria a palavra ‘obediência’ como se nada tivesse acontecido?” (1982, p. x). Em resumo, ela introduz ao menos três tradições de obediência, nos quais alega ter sido formada como pessoa: 1) obediência cega ao Estado nazista; 2) obediência religiosa, estruturada sobre três elementos: 2.1) aceitação de um poder superior sobre o destino humano; 2.2) sujeição sem necessidade de legitimação moral à regra dada pelo poder superior; 2.3) pessimismo quanto aos seres humanos, vistos como seres impotentes, incapazes de conhecer a verdade e o amor; 3) obediência enquanto conceito dado pela identidade sexual feminina, experenciada sob uma cultura patriarcal. Assim, Soelle apela à tradição mística e aos seus símbolos da “profundidade” e do “mar”, além da alusão à maternidade e à natureza. São símbolos, diz Soelle, em que “[a]qui nosso relacionamento com Deus não é aquele da obediência, mas da união”, e, completa, “[q]uando isso acontece, a solidariedade substituirá a obediência enquanto virtude dominante” (SOELLE, Dorothy. Beyond the mere obedience. Nova York: Piligrim Press, 1981, p. xx).
[iii] A saber, o mundo moderno.
[iv] “story”.
[v] “heaven”.
[vi] Rigidez própria encontrada nos corpos mortos há um tempo.
[vii] “elite sense”.
[viii] “enlightenment”.
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