Dois anos de desgoverno – as bases sociais do bolsonarismo

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Por LUIZ BERNARDO PERICÁS*

A elite nacional, contudo, dificilmente irá abrir mão de seus privilégios, independentemente de quem esteja na presidência.

Diferentes estudiosos e analistas da imprensa e do meio acadêmico, no Brasil e no exterior, têm se debruçado recorrentemente sobre o possível caráter ideológico do atual governo, suas principais características e suas semelhanças e diferenças com experiências políticas de outros países. Além disso, há também uma tentativa de se identificar e classificar os distintos grupos de apoiadores e aliados do presidente Jair Bolsonaro, assim como de se buscar entender o papel da esquerda no atual contexto do país. Afinal, o mandatário conseguiu arregimentar o respaldo de diversos setores do campo conservador, que incluem militares de alta patente, evangélicos, fatias da classe média, policiais e até mesmo grupos extremistas com inclinações para o fascismo.

Nesse sentido, o suporte dos fardados tem sido emblemático e fundamental. Até meados de julho de 2020, segundo levantamento do Tribunal de Contas da União (TCU), 6.157 militares da ativa e da reserva haviam sido nomeados para funções administrativas, distribuídos por vários ministérios e ocupando funções gratificadas ou cargos comissionados (2.643, neste último caso), a grande maioria, do Exército. Vale lembrar que até a metade de março de 2021, dez ministros com origem na caserna haviam passado pelo governo (incluindo o inepto e omisso Eduardo Pazuello, da Saúde, que, a seu turno, nomeou 17 oficiais para postos-chave em sua pasta, dos quais 16 não tinham formação alguma na área médica).

Generais, almirantes, capitães e tenentes-coronéis são ministros, secretários-executivos, secretários-gerais, chefes de gabinete, assessores, diretores e presidentes de conselho. Isso para não falar de oficiais das PMs, também ocupando postos relevantes no governo federal (na Secretaria Geral da Presidência, por exemplo, encontra-se um major daquela corporação).

Esse quadro reflete o grande equívoco de não se ter sancionado exemplarmente após a redemocratização os militares responsáveis por prisões, torturas e assassinatos durante os anos de chumbo. Impunes, setores saudosistas do regime de exceção se mantiveram atuantes nos bastidores, emitindo comunicados públicos antidemocráticos (sem que sequer tenham sido alvos de processos disciplinares ou, pelo menos, de reprimendas de oficiais no topo da hierarquia) e ameaçando de forma velada as instituições, algo que pôde ser verificado com maior nitidez pelo menos desde o primeiro termo de Lula (vale lembrar aqui do malfadado episódio de 2004 que levou ao pedido de demissão do então ministro da Defesa José Viegas), mas que se intensificou nos governos Dilma Rousseff, ganhando força no mandato de Michel Temer.

O papel coadjuvante das FFAA em anos recentes, seu ressentimento com a dinâmica e os desdobramentos da Comissão Nacional da Verdade (CNV) e o incômodo com a permanência da esquerda (ou “centro-esquerda”) no Palácio do Planalto (mesmo que aqueles se caracterizassem como governos de presidencialismo de coalizão, com um amplo espectro de alianças políticas), fizeram com que os oriundos da caserna ansiassem por um retorno à posição de mando.

Os fardados iriam considerar a vitória eleitoral de Bolsonaro uma oportunidade de voltar a ocupar e aparelhar a máquina estatal. Eles podem ser classificados como uma “velha” direita repaginada, que utiliza uma fachada democrática e técnica (ou tecnocrática), em parte do tempo, mas que parece aderir em termos ideológicos (pelo menos, alguns de seus representantes) à atual administração. Se no plano da retórica, por vezes, eles se apresentem como defensores das instituições, em outros momentos, o que se verifica são ameaças veladas (ou mesmo explícitas) a qualquer possibilidade de mudança de rumos no país ou de controle dos aparatos do Estado (o caso do falastrão ex-comandante do Exército, o general Villas Bôas, é notório, assim como o do igualmente boquirroto Augusto Heleno, oficial da mesma patente e chefe do GSI, além dos diferentes manifestos e abaixo-assinados divulgados pelos clubes militares). O fato é que as Forças Armadas ocuparam profusamente a estrutura administrativa federal (em posições de primeiro e segundo escalão) e detêm as armas.

Não podemos nos esquecer que Bolsonaro é capitão reformado do Exército e o vice, Hamilton Mourão, general de quatro estrelas. Mesmo com um aparente discurso mais comedido em meses recentes, este último não pode ser visto como um fator de moderação, mas sim, de preocupação: ele tem o potencial de servir não só como fiador do presidente como até mesmo, em caso de que viesse a ocupar o Planalto, de ser tão ou mais rigoroso com a oposição do que seu chefe atual. Por outro lado, também há um setor “legalista” dentro das Forças Armadas que se sente desconfortável com a manipulação, instrumentalização e uso político da Marinha, Aeronáutica e Exército pelo mandatário. Muitos acreditam que o presidente desmoraliza as instituições castrenses e pressiona os oficiais a tomarem atitudes que não condizem com sua função. Ou seja, reforçam sua posição como instituição do Estado, e não de um governo. O apoio entre os fardados, portanto, não é irrestrito. Aqueles que se consideram guardiões da Constituição são mais moderados e começam a dar indícios de insatisfação com as atitudes agressivas, erráticas e autoritárias do presidente.

A base social do “bolsonarismo” continua, com algumas flutuações, na faixa dos 30% da população, ainda que pesquisas diversas mostrem que esse apoio pode ser ainda menor (entre abril e maio de 2020, segundo a Atlas, ele teve 58% de reprovação e 23% de aprovação; a Fórum, 39% de reprovação e 26% de aprovação; e a Quaest, 49% de reprovação e 19% de aprovação; ou seja, seu tamanho efetivo possivelmente estaria entre 8% e 12%), isso devido em parte à saída do ex-ministro da Justiça e Segurança Pública Sergio Moro (que levou consigo os chamados “lavajatistas”) e em parte, pela desastrosa e incompetente forma como se está lidando com a pandemia do novo coronavírus. Uma pesquisa realizada pelo Datafolha entre 23 e 24 de junho do mesmo ano mostrava que eram 15% os adultos com fidelidade irrestrita ao presidente, um grupo majoritariamente composto por mulheres (neste caso, em torno de 60%) e “brancos”.

Estes seriam os “devotos”, aqueles que dificilmente mudariam de opinião e que apoiariam o mandatário em qualquer situação. Um levantamento realizado pelo Instituto Travessia e divulgado pelo jornal Valor Econômico em 17 de julho de 2020, por sua vez, indicava que o apoiador padrão de Bolsonaro, na verdade, seria homem (55% dos entrevistados), “caucasiano”, morador do Sudeste, com mais de 45 anos de idade, com renda acima de dez salários mínimos e evangélico (54% dos arguidos; os católicos eram apenas 24% do total). Essa enquete específica entre os adeptos “raiz” do “bolsonarismo” (segundo esse instituto, entre 12% e 15% da população), demonstrava que 45% deles defendiam maior intervenção do Estado na economia em contraposição a 42% contra essa premissa; que 62% eram contra um autogolpe, diante de 33% a favor de ações mais autoritárias; que 95% desaprovavam a atuação do Congresso Nacional; e que 90% criticavam o Supremo. Além disso, 55% diziam ser favoráveis a medidas de maior flexibilização das políticas de preservação da floresta amazônica, 98% achavam que a polícia deveria ter uma atuação mais dura e rigorosa contra a “criminalidade” e 75% concordavam com a liberação do uso de armas pelos cidadãos.

Há também indivíduos e grupelhos ainda mais extremistas e agressivos, com clara simpatia pelo fascismo e o neonazismo (como é o caso do autodenominado “300 do Brasil”, que alega ter treinamento paramilitar e portar armas, e que atualmente tem estado ausente do noticiário cotidiano), sem, contudo, indicar qualquer capilaridade ou maior representação social. O mesmo pode ser dito das alas mais radicalizadas das policiais militares (em geral da baixa oficialidade), além das milícias.

A Federação Nacional de Entidades de Oficiais Militares Estaduais (Feneme) avalia que Bolsonaro conseguiu em torno de 14 milhões de votos de PMs em 2018, em sua maioria, de praças. De acordo com Leonardo Sakamoto, em artigo publicado em 31 de março de 2021, “uma pesquisa divulgada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em agosto passado, apontou que 41% dos praças da PM participavam de grupos bolsonaristas nas redes e aplicativos de mensagens, 25% defendiam ideias radicais e 12% defendiam o fechamento do Supremo Tribunal Federal e do Congresso”.

O grupo “ampliado”, por sua vez, é mais flexível. Ou seja, aqueles que não se enquadram no “bolsonarismo” intransigente (aderentes circunstanciais), ainda podem, em algum momento, abandonar o barco. Esta base mais ampla é composta, em boa medida, também por eleitores “evangélicos” e conservadores, elementos da lúmpen-burguesia e lumpesinato tradicional, e de estratos de setores médios ligados ao comércio varejista (em abril de 2020, 70% da faixa do “empresariado” representado por lojistas, donos de pequenas indústrias e de negócios em shopping centers, por exemplo, ainda expressava seu apoio ao governo em pesquisas encomendadas).

Os evangélicos, por certo, são uma fatia importante de suporte ao governante. Eles apoiaram massivamente Bolsonaro nas eleições, ainda que sejam bastante heterogêneos. No último pleito, o então candidato do PSL (atualmente sem partido) teve 70% dos votos deste grupo. Por outro lado, em pesquisa realizada no final de março de 2020, apenas 37% dos crentes aprovavam a atuação do mandatário em relação à pandemia do novo coronavírus. Ou seja, é possível que uma parte deste eleitorado esteja se afastando do governo.

Apesar disso, Bolsonaro ainda mantém o apoio de bispos e pastores de Igrejas pentecostais e neopentecostais poderosas que, ao longo dos anos, diversificaram seus negócios e construíram “impérios” empresariais que contam com enormes templos religiosos, jornais, páginas e canais na internet, rádios, editoras, gravadoras, emissoras de televisão e até mesmo seus próprios partidos políticos. Elas defendem, em grande medida, a “teologia da prosperidade” (popularizada no país a partir das décadas de 1970 e 1980 por televangelistas norte-americanos) e possuem um claro projeto de poder, tendo forte ascendência sobre as bancadas evangélicas do Congresso e das assembleias legislativas estaduais (esses setores se identificam com o chamado Centrão, representado por partidos fisiológicos de direita, siglas de aluguel que promovem pautas de costumes conservadoras e troca de apoio por verbas e cargos).

Entre os pentecostais, as maiores Igrejas são as Assembleias de Deus (com 12,3 milhões de fiéis), enquanto no campo dos neopentecostais, destaca-se a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), fundada em 1977, com estimados oito milhões de fiéis (além desta, é possível citar a Igreja Internacional da Graça de Deus, com um milhão de fiéis; a Igreja Apostólica Renascer, supostamente com o mesmo número de seguidores; e a Igreja Mundial do Poder de Deus, com 800 mil membros). Alguns dos líderes destas organizações, por sinal, estão incluídos entre os cidadãos mais ricos do país, com patrimônios que variam de US$ 65 milhões a US$ 950 milhões (vários deles já foram presos e sofrem processos na Justiça). É bom recordar que há uma intensa penetração dos evangélicos nas favelas e comunidades periféricas, e que estes estão aliados com o narcotráfico e as milícias.

Todos os supracitados (com exceção da oficialidade militar) têm em comum, de maneira geral, uma escolaridade baixa ou mediana (há também elementos formados em universidades particulares de pouco prestígio e qualidade duvidosa), tendo passado por um processo de depauperamento na última década, perdendo privilégios, descendendo na escala social e culpando especialmente o PT por seus problemas, após uma intensa propaganda ideológica promovida pelos grandes meios de comunicação e da atuação da “Lava Jato”, ambos ligados a interesses escusos de setores da burguesia interna.

Esse núcleo duro do “bolsonarismo” não tem maior preparo político ou sofisticação intelectual, agindo, nas ruas ou nas redes sociais, a partir de bandeiras tradicionais da direita, entre as quais, notoriamente, o combate à corrupção e utilizando como táticas, a disseminação massiva de fake news, agressões verbais, manifestações e ameaças a jornalistas e autoridades que discordam da linha política do presidente. Nesse sentido, acreditam que o país só irá melhorar a partir do fechamento dos ambientes institucionais onde supostamente malfeitos ocorrem, como o Congresso Nacional e o STF. Sendo assim, o ataque a parlamentares e a integrantes do Judiciário têm sido constantes.

Em outras palavras, os indivíduos que apoiam o atual mandatário apresentam um nítido viés autoritário e antidemocrático, além de serem contra qualquer tipo de pluralismo e diversidade. Em alguns casos, sua admiração e lealdade ao “grande líder” beira o fanatismo. Muitos têm defendido em tempos recentes uma “intervenção militar” (ou seja, uma espécie de “golpe de Estado” ou “autogolpe”), mantendo Bolsonaro na presidência e lhe dando poderes irrestritos para governar como bem entendesse.

Na prática, contudo, nenhum deles tem um projeto de nação. Pelo contrário. A ideia precípua do presidente e sua equipe é a “desconstrução” de todo o arcabouço político-jurídico e econômico erigido desde o fim da ditadura militar, ao longo na Nova República, nos campos das relações exteriores, costumes, educação, cultura, meio ambiente, direitos trabalhistas e finanças, juntamente com um rápido reaparelhamento das instituições, para servir aos interesses pessoais do mandatário e de sua quadrilha no poder.

O discurso “antiglobalista”, a defesa aos so-called valores da Civilização Ocidental judaico-cristã e a luta contra um imaginário “marxismo cultural” são elementos importantes difundidos pelos ideólogos do “bolsonarismo”, entre os quais, o mais conhecido e influente deles, o astrólogo e youtuber, residente na Virgínia (EUA), Olavo de Carvalho, junto com seus disseminadores das milícias virtuais, especialmente do chamado “gabinete do ódio”.

A atual administração tem demonstrado enorme hostilidade em relação a órgãos de imprensa considerados oposicionistas, às comunidades indígenas, aos quilombolas, aos movimentos sociais e a qualquer um que não esteja alinhado ao presidente. Uma política econômica ultraliberal, que pressupõe como contrapartida a retirada de benefícios sociais dos trabalhadores, contudo, ainda é apoiada pela burguesia tradicional brasileira, ligada à grande indústria, às empreiteiras, aos bancos, à mídia corporativa e ao agronegócio, ainda que esta observe todo esse quadro com um acentuado grau de preocupação, considerando que atual crise sanitária, política e ambiental pela qual passa o Brasil afeta a imagem que o país tem no exterior e resulta em perdas significativas nas transações comerciais.

Já há dissensões e rupturas dentro de alguns desses grupos, como, por exemplo, na Sociedade Rural Brasileira, da qual seu vice-presidente Pedro de Camargo Neto renunciou no ano passado, ao se recusar a aceitar o apoio da entidade ao ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles (aliado dos setores extrativistas madeireiros e mineiros, assim como de todos os que promovem atividades predatórias ilegais na Amazônia), que tem causado grandes prejuízos para o país internacionalmente. Por sua vez, a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), através de seu presidente, Paulo Skaf, flerta cada vez mais com o governo, lhe dando constantes demonstrações de apoio público, pelo menos até o momento.

De qualquer forma, o ideal para a classe dominante seria a manutenção das políticas econômicas de Paulo Guedes e a linha seguida por alguns ministros (como Teresa Cristina, da Agricultura), ao mesmo tempo em que o próprio presidente e seu entorno mais próximo, do campo ideológico “olavista”, fossem retirados de cena, desta forma, afastando a “extrema direita” (excessivamente exótica e perigosa para os negócios), ao operar um arranjo intraclassista “por cima” (como sempre ocorreu no país), garantindo com isso uma transição de poder para um governo de direita “clássico”, encabeçado pelos setores tradicionais da burguesia brasileira. A carta de empresários, economistas e banqueiros, de março de 2021, é um sinal evidente disso. Com mais de 500 assinaturas iniciais, esse manifesto mostra o alto grau de insatisfação da elite financeira brasileira com o presidente Bolsonaro e indica que quer mudanças profundas nos rumos do país o quanto antes…

A elite nacional, contudo, dificilmente irá abrir mão de seus privilégios, independentemente de quem esteja na presidência. Não custa lembrar que, de acordo com o Relatório de Desenvolvimento Humano da ONU de 2019, o Brasil é o segundo país com maior concentração de renda no mundo, em que 1% da população detém 28% da renda nacional e os 10% mais ricos possuem 41,9% da renda nacional. Como lembra o ex-secretário geral do Itamaraty Samuel Pinheiro Guimarães em seu artigo “Guedes, Bolsonaro e o vídeo”, seis mil brasileiros declararam ao IR terem renda mensal superior a R$ 334 mil, enquanto 300 mil têm renda mensal acima de R$ 40 mil. De acordo com o diplomata, citando a revista Forbes, há em torno de 200 bilionários no país.

Do outro lado, são 14 milhões de famílias (ou 56 milhões de pessoas) com renda inferior a R$ 178 por mês, 35 milhões abaixo da linha da pobreza (renda menor que R$ 750 mensais), 13 milhões abaixo da linha da pobreza extrema (menos de R$ 420 por mês), 100 milhões sem esgoto, 35 milhões sem água tratada, 66% com salários inferiores a R$ 2.100 e 30 milhões de pessoas que recebem acima de dois salários mínimos. Isso significa, mais uma vez segundo Guimarães, que dos 150 milhões de brasileiros maiores de 16 anos, 120 milhões ganham menos de dois salários mínimos mensais. Essas distorções dificilmente serão sanadas a curto prazo. Pelo contrário. Afinal, de acordo com um informe da Oxfam de 2020, somente durante os primeiros meses de surto de Covid-19, a fortuna dos 42 maiores bilionários brasileiros, em seu conjunto, cresceu US$ 34 bilhões.

Essa tendência de desigualdade continuou. Em abril de 2021, a revista Forbes incluiu 20 novos brasileiros no ranking dos bilionários, fazendo com que o total dos chamados “super-ricos” do país em sua lista se elevasse para 65. O patrimônio de todos eles, somados, é de US$ 219 bilhões (R$ 1,225 trilhão), o que mostra um crescimento significativo se comparado aos US$ 121 bilhões (R$ 710 bilhões) no ano anterior.

Além disso, a crise econômica, que já vinha se delineando desde o governo Dilma e se acentuara no mandato de Temer, agora, por causa da pandemia do novo coronavírus e das medidas irresponsáveis impulsionadas por Bolsonaro, se agravou significativamente. Segundo estatísticas oficiais divulgadas pelo IBGE, em junho de 2020, o país registrava (no trimestre móvel encerrado em maio), 12,7 milhões de desempregados (uma taxa de desemprego formal “oficial” de 12,9%), 32,3 milhões de trabalhadores na informalidade, 30,4 milhões de obreiros subutilizados, 5,4 milhões de desalentados e 2,5 milhões de perdas de postos de trabalho com carteira assinada.

Em torno de 12 milhões de pessoas tiveram seus contratos suspensos, salários e jornadas de trabalho reduzidos e 53,9 milhões de brasileiros requisitando o auxílio de R$ 600 do governo, que somente aceitou implementar a medida depois de pressionado pelo Congresso. As demissões contínuas, a superexploração da mão de obra com baixa qualificação, a precarização do trabalho e a elevação do clima de tensão e de repressão podem ser catalisadores de futuros protestos, greves e paralisações.

A esquerda, por sua vez, tem se mostrado fragmentada e pouco eficiente na luta contra o atual governo. Ela ainda trabalha principalmente nos espaços institucionais tradicionais e por meio de partidos políticos. Sua força, contudo, não é significativa. Em geral minoritária nos parlamentos municipais, estaduais e federal, serve como contenção, consciência crítica e resistência aos arroubos autoritários da direita e extrema direita. Em outras palavras, ainda opera dentro da lógica eleitoral e a partir de negociações e alianças, por vezes programáticas, por vezes circunstanciais.

Em diversos casos, contudo, esses setores não conseguem sequer fazer isso, mostrando-se incapazes de se unir em torno de um candidato único, dispersando os votos progressistas e resultando em derrotas nas urnas para políticos conservadores (no último escrutínio para prefeito de São Paulo, a maior e mais importante cidade do Brasil em termos econômicos, PT, PSOL e PCdoB lançaram, cada um, candidatos próprios, o que diminuía a chance de vitória de qualquer um deles; esse fenômeno pôde ser encontrado em outras metrópoles, e incluiu também agremiações de “centro-esquerda”, como PSB e PDT, por exemplo).

Segundo o boletim Ponto Newsletter (editado por Lauro Allan Almeida Duvoisin e Miguel Enrique Stédile), de 9 de outubro de 2020, as eleições de novembro passado deveriam confirmar a onda conservadora. A matéria mostrava que “o número de candidatos com títulos militares saltou em mais de 300% entre os prefeitos e 56% entre os vereadores. Já os candidatos com vínculos religiosos no título cresceram pouco mais de 10% entre os candidatos a prefeitos, mas serão 4.500 concorrentes entre os vereadores, um aumento de mais de 40%. Ou seja, as armas e a cruz se apresentam como solução forte para um país que se arrasta numa crise prolongada. Entre os partidos políticos, o PSL foi o que mais lançou candidatos militares às câmaras municipais (308) e o Republicanos foi o que mais lançou com títulos religiosos (367). Os dois partidos são também as legendas com maior número de candidatos em todo o país: cada um tem cerca de 3.000 candidatos aos legislativos municipais nas 95 maiores cidades do país, uma média de mais de 30 por município”.

No ano passado, também se destacaram as torcidas organizadas de times de futebol, que episodicamente se reuniram com grupos “antifas”, estudantes e movimentos sociais para promover manifestações pela democracia e contra o governo, uma clara reação para conter as constantes provocações semanais de bolsonaristas nas ruas. Com essa atitude, conseguiram frear os atos da extrema direita que ocorriam todos os domingos em algumas cidades brasileiras. Mesmo não havendo maior preparo político e intelectual entre seus integrantes, tampouco um programa definido do que queriam para além da retirada de Bolsonaro do poder, eles, pelo menos, mostraram que existia alguma mobilização ao redor de pautas democráticas, o que pode ser visto como um início, ainda que tímido, para uma ulterior reação contra a far right, mesmo que aqueles eventos tenham sido, aparentemente, pontuais.

Há também uma esquerda identitária e pós-moderna, igualmente pouco preparada em termos teóricos. Muitos desses jovens da geração da internet são seguidores de modismos intelectuais e segmentam as lutas por temas e pautas relacionadas à questão étnica, de gênero e de orientação sexual. Conceitos pós-modernos importados dos meios político e acadêmico da Europa e Estados Unidos são usados constantemente por esses “millennials”. A palavra “socialismo”, por sua vez, raramente é mencionada. No fundo, mesmo sem admitirem, eles lutam principalmente para incluir segmentos marginalizados da população em condições mais favoráveis para competir pela ascensão social e melhor colocação no mercado de trabalho dentro do sistema (o qual é criticado por suas desigualdades, mas que, acreditam eles, se pressionado, poderá se tornar, quiçá, mais humano e justo, o que não é algo factível).

A esquerda “marxista”, por sua vez, tem uma influência muito reduzida tanto no campo eleitoral como em relação à sociedade de modo geral. Ela fica restrita a pequenos partidos, editoras independentes e intelectuais acadêmicos, em sua maioria, de universidades públicas.

Manifestos e abaixo-assinados foram outras expressões do descontentamento dos setores progressistas em 2020, em geral, representantes da classe média urbana “intelectualizada”, que tentavam dar um caráter plural à resistência ao atual mandatário. Os mais conhecidos foram o “Estamos juntos”, “Somos 70%”, “Pacto pela vida e pelo Brasil”, “Pela democracia e pela vida”, “Direitos já!”, “Basta!” e “Unidade Antifascista”. Nesse sentido, conclamavam à união de forças heterogêneas, num arco amplo que poderia abarcar dos mais radicais da esquerda até elementos “moderados” da direita.

Na verdade, vão a reboque de uma burguesia e pequena burguesia “cosmopolita” e “globalizada”, mas nunca expressam em seus documentos um claro caráter classista da luta, muito menos, o protagonismo dos trabalhadores. Essa estratégia chegou a receber críticas, inclusive do ex-presidente Lula, que não aceitava a ideia de alianças com personagens que poucos anos atrás criticaram duramente os governos do PT e apoiaram (ou mesmo promoveram) o impeachment de Dilma Rousseff (havia quem quisesse incluir nessa grande coligação heterogênea nomes como Fernando Henrique Cardoso e até mesmo o ex-ministro da Justiça e Segurança Pública Sergio Moro, algo que encontrou enorme resistência entre a esquerda tradicional). Isso, por si só, mostra como não há qualquer projeto de superação do atual modelo político, muito menos do próprio sistema.

Houve apenas uma proclama mais significativa em favor de uma frente classista exclusivamente de esquerda, o “Manifesto pela frente única de esquerda no Brasil”, que contou com o apoio de alguns sindicatos e professores de ensino superior. Mas este é um documento que teve menor repercussão na mídia. De qualquer forma, ele propunha um programa mínimo que incluía reivindicações como a defesa das empresas estatais; a reestatização das companhias privatizadas; a anulação da entrega das riquezas nacionais (principalmente o pré-sal); a defesa intransigente da soberania nacional e dos interesses e direitos do povo; a aplicação de verbas públicas para a população carente, apontando para a insuficiência do chamado “auxílio emergencial”; a disponibilização de fundos públicos para salvar pequenas empresas, evitando falências em função da pandemia; uma mobilização contra todas as medidas provisórias, projetos de leis e emendas constitucionais que visem restringir as liberdades de expressão e organização, cujo objetivo fosse criminalizar e intimidar os movimentos sociais; o controle dos bancos e do sistema financeiro pelos trabalhadores; o não pagamento da dívida interna e externa, responsável pela crise fiscal, preservando as poupanças de ativos ou aposentados; a cobrança imediata dos maiores devedores do Estado; a aplicação de um imposto às instituições financeiras, proporcional ao seu lucro líquido, a ser destinado para a construção de hospitais e fornecimento gratuito de alimentos e remédios para todos que deles necessitem; um imposto geral às grandes fortunas do país, com vistas a constituir um fundo público sob controle do proletariado, para combater a pandemia por todos os meios; uma jornada laboral máxima de 30 horas, sem redução de salário; a regularização fundiária em todos os bairros populares das propriedades da população de baixa renda; o fim do latifúndio e a realização da “revolução agrária”; a revogação das reformas trabalhista e da Previdência; a estatização e centralização de hospitais para o atendimento imediato das necessidades da população; o controle do SUS por seus funcionários; e a construção de um governo popular sem representantes do capital.

De qualquer forma, recorrentemente volta à tona a discussão em torno da constituição de uma possível “frente ampla” para combater o bolsonarismo e, quem sabe, retirar o mandatário do poder ou então para a construção de possíveis coligações eleitorais para 2022 entre setores da esquerda, centro-esquerda e centro-direita, alianças que poderiam incluir até mesmo o apoio de elementos ligados aos bancos e ao empresariado. É preciso, contudo, aguardar a dinâmica dos acontecimentos, que mudam constantemente na política brasileira, para se ter uma ideia mais nítida do rumo que esses atores tomarão nos próximos meses.

*Luiz Bernardo Pericás é professor no Departamento de História da USP. Autor, entre outros livros, de Caio Prado Júnior: uma biografia política (Boitempo).

 

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