Por Arlenice Almeida da Silva
Comentário sobre o último romance de Theodor Fontane.
Em 2013 foi traduzido no Brasil, pela primeira vez, Effi Briest, o último romance de Theodor Fontane (1819-1898). Indiretamente, o leitor brasileiro já conhecia o autor por meio de Um campo vasto, romance de Günter Grass, de 1995, no qual o próprio Theodor Fontane é feito personagem num feliz entrelaçamento entre história, literatura e imaginário, no qual Grass tece uma trama que embaralha os impasses éticos e estéticos de Fontane com os dilemas da Alemanha reunificada. Com Effi Briest personagem e obra se encontram, permitindo ao leitor verificar em que medida Fontane é, em território alemão, ao mesmo tempo um grande realista e um admirável contador de histórias.
Theodor Fontane experimentou vários gêneros, antes de dedicar-se ao romance. Nascido em 1819, em Neurupiin, na província de Brandemburgo, de ascendência huguenote, ingressou na atividade de farmacêutico como o pai, mas logo abandona o ofício, voltando-se ao jornalismo no qual se destaca em Londres, no Deutsch-Englischen Korrespondenz, entre 1855 e 1858.
Autodidata, a estadia em Londres permitiu-lhe o contato com a pintura inglesa e com o teatro, em particular com Shakespeare, cuja obra Fontane traduziu. Tais estudos aprofundados e rigorosos abriram-lhe o campo das artes, no qual passa a atuar por meio da atividade crítica. Quando retorna a Berlim, desempenha por quase vinte anos a atividade de cronista teatral do Vossische Zeitung, estimulando o cotidiano cultural da cidade, na qual é respeitado como repórter, crítico e poeta, embora continue pouco reconhecido nas esferas oficiais da intelectualidade.
Como poeta, ele é autor de Balladen, de 1861, poemas narrativos que giram em torno de lendas populares e de motivos históricos, com conclusão moralista; e também de “Wanderungen durch die Mark Brandenburg” (Peregrinações por Brandemburgo), em cinco volumes, de 1862, misto de guia de viagem e descrição de paisagem; escritos, enfim, que lhe serviram como exercício preparatório para o gênero romance, ao qual se dedicaria já sexagenário.
A fonte documental do romance Effi Briest é jornalística e histórica: o plano inicial foi concebido após o relato que Fontane ouviu dos fatos verídicos, conhecidos como o “caso Ardenne”, o qual envolvia Elisabeth Freiin von Plotho e seu marido Armand Léon von Ardenne em um conflito composto por adultério, duelo, morte e divórcio. O assunto mobilizou vários escritores na época, como mostra o Posfácio de Gotthard Erler, entre eles Friedrich Spielhagen que sobre o caso escreveu também o romance Zum Zeitvertreib (Para passar o tempo).
Ao colar-se ao que realmente aconteceu, a ficção deixa para trás os modelos literários e articula-se de antemão com a escritura jornalística, isto é, com o pressuposto de que há um elemento de verdade que o discurso instaura quando enunciado numa atualidade instantânea. O que explica porque Fontane, jornalista e romancista como Sue, Dumas ou Balzac, tenha permitido que a narrativa fosse lida primeiro como folhetim, entre outubro de 1894 e março de 1895, no Deutsche Rundschau, e só editado no final de 1895 em formato de livro; vale sublinhar que no ano seguinte, em 1896, o romance chegou a cinco reimpressões, o único sucesso em vida de Fontane.
A familiaridade com aquilo que supostamente teria acontecido, contudo, permitiu a Fontane ir além do conhecido, introduzindo suspeitas, hipóteses explicativas, desestabilizando o fato em múltiplas percepções, sempre movido pela vontade de atingir uma verdade e não como exercício mimético de uma dada objetividade; o autor penetra, assim, no universo da ficção, liberando na narrativa o imaginário e o que nele transbordam de subterrâneo e misterioso.
Ora, dentre os assuntos enigmáticos preferidos, o do feminino persegue Fontane em vários romances: Ellernklipp (1882), L’adultera (1882), Graf Petöfy (1884), Cecile (1887), Frau Jenny Treibel (1892) Unwiederbringlich (1892), e finalmente Effi Briest (1894). Nesta série as mulheres são nobres, pequeno-burguesas, proletárias, citadinas ou provincianas; nela, contudo, encontramos o topos do feminino apresentado quase sempre em contornos imprecisos, como esboços, que combinam afetividade com instabilidade ou com algum modo de traição, nos moldes do caso Ardenne. Fontane ao enunciar um discurso sobre o feminino não o faz, contudo, como simples moralista, já que intencionalmente modula suas narrativas com base em diferentes pontos de vista, todos eles urdidos em uma trama complexa de causalidades múltiplas.
Em Effi Briest temos um discurso do feminino singular, Effi é uma mulher que não ama, nem é capaz de assumir uma verdadeira paixão. O que interessa ao autor aqui é, portanto, não o surgimento de uma paixão, mas a sua impossibilidade, vivida como gênese de uma infelicidade, de um sofrimento incontornável, que em seus momentos mais agudos assemelha-se ao do bíblico Jó; no entanto, é uma dor que não é dita, senão indiretamente, por meio de alusões e silêncios. Esse emudecer que percorre todo o romance remete diretamente ao estilo de Fontane: uma escrita contida, sóbria, de matriz protestante, huguenote e luterana, que é responsável pela singularidade da obra. Günter Grass, em Um campo vasto, enxerga em Fontane um “observador discreto”: uma “pessoa que escreve laconicamente sobre o que é grande e largamente sobre o que é pequeno” (Grass, 1998, p.601).
A “infeliz Effi” é filha da aristocracia rural, em Hohen-Cremmen, a moçinha vestida com gola de marinheiro, apanhada desde as primeiras linhas, correndo, pulando e brincando imprudentemente em seu jardim e que se casa, poucas páginas depois, aos dezessete anos, com o bem mais velho Barão Instetten, conselheiro provincial em Kessin, na Pomerânia Oriental, especialmente por ambição e respeito aos pais.
Effi é apresentada, de um lado, como uma força indomável da natureza, quase mítica como a fada Melusine, nas palavras de sua mãe, “uma filha das brisas” (Tochter der Luft), de outro lado, como uma personagem paradoxal e enigmática, haja vista que nela “havia um misto de graça e petulância, seus risonhos olhos castanhos traíam uma grande inteligência natural, muita vontade de viver e uma profunda bondade” (Fontane, 2013, p.11). A indeterminação é também histórica, pois estamos na velha Prússia, em declínio, e, em transição para a Alemanha bismarckiana moderna. Aqui, como nos demais romances de Fontane vemos oscilar os dois polos da história alemã, a velha Prússia nostalgicamente idealizada e a moderna Alemanha, vista ainda com reserva e desconfiança.
O formato do romance é misto. De um lado, predomina a descrição épica, repleta de detalhes, seja sobre a sociedade berlinense, seja sobre a província Kessin, acrescida da caracterização sóbria dos personagens, efetuada principalmente por meio de diálogos; de outro lado, há concentração do enredo na personagem de Effi e utilização significativa da forma intimista da carta, o que permite que o romance também efetue intenções dramáticas.
De fato, como sustentou Peter-Klaus Schuster, há na escrita de Fontane um equilíbrio tênue que é, antes de tudo, pictórico, pois suas observações denunciam uma sensibilidade visual desenvolvida no contato principalmente com a pintura inglesa de Turner, Reynolds, Hogarth, e especificamente com os pré-rafaelitas, como Millais, Collins, Hughes ou Rossetti, dos quais conserva as figuras femininas, meio literárias, meio realistas, envoltas em religiosidade e erotismo. (Schuster,1978, p.40).
O chinês
Ao casar-se com Geert von Instteten, Effi vai viver em sua casa, em Kessin; abandona a atmosfera familiar e agradável e vai para uma paisagem erma, desoladora e tediosa. Diante dela surge uma Alemanha exótica, forte, constituída pela mescla de eslavos, germanos e estrangeiros ocasionais, como um criado chinês que ali morara e que estava enterrado em um cemitério próximo. Effi não compreende nenhuma particularidade da região, tudo lhe é lúgubre e, diante do estranhamento, encolhe-se solitária em seu medo. A casa é, sobretudo, mal-assombrada, decorada brutalmente com móveis pesados, antigos ou objetos exóticos; o teto do vestíbulo exibe, como que suspensos no ar, um tubarão e um crocodilo.
Nessa casa sinistra Effi vive com medo, o qual é estimulado pelo marido, serviçais e outros moradores da região, que sempre a atemorizam com a história do chinês. Resumidamente, ele fora o criado de um rico comerciante, Thomsen, que morara na mesma casa de Instetten e, provavelmente, apaixonara-se perdidamente pela neta do patrão. O fato é que, quando ela é obrigada a sucumbir a um casamento de conveniência, a noiva desaparece na noite de núpcias e, dias depois, o chinês é encontrado morto.
Seguindo a tradição alemã, principalmente dos contos fantásticos de E. T. A. Hoffmann ou de Adelbert von Chamisso, Fontane enxerta na suposta racionalidade do gênero, pitadas de sobrenatural, sugerindo relações entre o fantástico e o erótico. O estranhamento é explorado na apresentação de vários opostos irreconciliáveis, que se multiplicam na teia narrativa, como, por exemplo, a casa, que é apresentada ao mesmo tempo como aconchegante e sinistra (es ist sondebarerweise gemütlich und unheimlich zugleich) (Fontane, 2013, p.139).
É nesses termos que surge na escrita pudica de Fontane o motivo do inquietante (Unheimliche), antecipando o sentido que Freud, em 1919, nomeará de “sensação do inquietante”, tomando com base referências literárias e linguísticas,sobretudo no conto “O Homem de areia, de E.T.A. Hoffmann. A sugestão de Freud é a de que no termo unheimlich haveria uma relaçãoentre o familiar e o não familiar; pois o que aí surge “não é algo novo ou alheio, mas algo há muito familiar à psique, e que deveria permanecer oculto, mas apareceu.” Em outros termos, o inquietante é fácil e frequentemente “atingido quando a fronteira entre a fantasia e a realidade é apagada, quando nos vem ao encontro algo real que até então víamos como fantástico, quando um símbolo toma a função e o significado plenos do simbolizado (Freud, 2010, p. 360-364)”.
A história do chinês, narrada igualmente por meio de omissões e alusões, a partir de várias vozes, ao longo da obra, estabelece um paralelo com o destino de Effi. O mote para o Unheimliche seja como o inquietante, ou como o sinistro, ativa elementos arcaicos, e, no caso de Effi, o primitivo medo dos mortos, permitindo ao leitor pressentir o que está em jogo naquilo que é silenciado, isto é, a força perturbadora e incontrolável da sexualidade que no romance é convocada das zonas profundas do desejo. Aparentemente o medo que Effi sente é de seu marido, de sua autoridade; medo que se manifesta, indiretamente, como medo do chinês.
Effi quer mudar-se da casa lúgubre, da “maldita casa com o chinês lá em cima”, com casaco azul, que caminha na calada da noite, entra em seu quarto, roça sua cama, assustando até o cachorro Rollo. Ora, o marido simultaneamente zomba e estimula seu medo, humilhando-a com o argumento de sua inferioridade social, já que “assombrações são um privilégio como árvores genealógicas” (Fontane, 2013, p.111) e o medo é “próprio de pessoas insignificantes”. Instetten, com sua “propensão de semear o enevoado e a inquietude e depois rir da credulidade humana” procura disfarçar a mediocridade da casa, dando-lhe uma conotação exótica, mostrando-a encantada ou enfeitiçada.
Assim, o medo de Effi é sempre tratado pelo marido de modo pueril, já que ela jamais “perde o ar maliciosamente infantil”, nem mesmo quando ela engravida, pois, certamente, um filho seria para ela um “adorável brinquedo”. Como “educador”, no entanto, reprime suas inquietações, ordenando o afastamento de tudo que é estranho: “guarde-se daquilo que é diferente, ou daquilo que se dá o nome de diferente”, (…) [porque] o que lhe parece sedutor, nos custa a própria felicidade” (Idem,p.119). Diferentemente de Emma Bovary, uma mulher adulta, Effi é apresentada quase sempre como um criança, e, como Otilie em Afividades Eletivas, de Goethe, sempre envolta em algum mistério.
O medo é, sobretudo, – diagnóstico caro a Fontane – a descoberta gradual por Effi dos mecanismos de controle que se ramificam em todas as direções e que são reconhecíveis especialmente na gestão social das relações eróticas, na qual há pouca brecha para excessos, desvios, ou seja, para qualquer liberação que o desejo provoca. Medo que é enunciado, exemplarmente, pela cantora Tripelli, ao descrever a sociedade: “somos espreitados à direita e à esquerda, pela frente e por detrás. A senhora ainda vai experimentar essa situação” (Idem, p.130).
O balanço
Effi tinha sido educada com relativa liberdade, seu temperamento amplo não tinha sido refreado pelos pais; era filha única, mimada, nada lhe fora severamente censurado, mas seu caráter é contraditório, indefinido, um dilema para o autor: às vezes ela é temperamental, amável, gentil, ingênua e natural; em outros momentos, é leviana, imprudente, superficial e sem fibra moral. Daí a importância do balanço, elemento alegórico utilizado por Fontane, construído austeramente com prancha, corda e postes, no qual Effi balançava-se loucamente em pé, no jardim da casa dos pais. Nesse balanço, mirando os horizontes vastos e infinitos, ela não conhecera nenhum sentido de responsabilidade.
Quando os pais cometeram o despropósito de propor-lhe o casamento com Instetten, ela não resistiu, nem reagiu, mas acatou a proposta, vendo nele, de um lado, a chance de realizar o desejo de ascensão social da mãe, que ela toma inesperadamente como seu, e ao mesmo tempo de conquistar ainda mais liberdade. Evidente que o casamento com Instetten, o “homem do dever” (Pflichtmenschen) e das conveniências, que, no geral, só atraia temor e aversão, impediria as duas coisas e só poderia terminar em desfecho trágico (Horváth, 2004, p.48).
No balanço, em movimento, Effi está sempre em perigo, seja nas quedas frequentes ocorridas na infância, sem grandes conseqüências; seja casada, no passeio de trenó na neve, com Crampas, quando a queda será irreparável. O motivo do balanço, portanto, remete aos movimentos do ar e da luz, como impulso da heroína para a liberdade, na qual Fontane vê uma forte inclinação para aventura e para sentir prazer no perigo, isto é, em seus próprios termos, “liberdade no que era bom” (Fontane, 2013, p.197) e não apenas a liberdade naquilo que é razoável, refém das conveniências.
A liberdade no campo do interdito é explorada por Fontane de modo sóbrio, mas não ingênuo, no qual se tem acesso ao imaginário disruptivo, por meio do qual escapam – alguns poucos instantes de autonomia sensível do discurso feminino, seja nos termos superficiais e ligeiros de Effi – “queria amor, carinho, honra, brilho e diversão”-, seja nos termos repressores e severos de sua mãe: “ela se deixa levar de bom grado, e quando a maré está boa, ela própria está bem. Luta e resistência não são o forte dela” (Fontane, 2013, p. 293).
No balanço infantil, que se transmuta em cadeira de balanço na casa assombrada de Kessin, manifesta-se o desejo de Effi como presença da sexualidade incontornável que, mesmo elidida e sem expansão – apenas como um desejo irrisório – é a brecha por onde Fontane introduz sugestões de feminilidade ou erotismo, entendidos como mobilização feliz do ser, ou simplesmente, como ampliação do ser. A intimidade de Effi não é jamais invadida pelo autor, não há tampouco descrição de suas fantasias ou sonhos, apesar de sabermos que são intensos e frequentes. Sua intimidade, ao contrário, é apresentada timidamente, ao modo puritano, por meio de figurações indiretas da natureza, como os ventos e as águas.
Como mostra Andrea Horváth, se Flaubert mergulha diretamente nas sensações e sentimentos de Emma, Fontane, ao contrário, só as pinta por meio da aparência externa dos acontecimentos, deixando ao leitor a alusão aos motivos internos. É assim que a sexualidade de Effi, de acordo com as convenções, só exterioriza-se como o objeto de sedução dos homens maduros e viris, diante dos quais deve operar o modelo de ideal normativo da mulher pudica e moralmente correta; se o desejo de Effi não pode ser descrito, nem observado, devendo permanecer subterrâneo, é porque o equilíbrio buscado pelo texto pressupõe que tais impulsos deveriam ser de antemão conhecidos e controlados moralmente.
A arquitetura da obra é, no entanto, complexa: de um lado predomina o narrador repressor e masculino, que insiste em apresentar o caso negativamente, como ilusão amorosa, corriqueira; como mais uma sedução vulgar do já conhecido Crampas, de 44 anos, comandante militar da região de Kessin, que já tinha antecedentes de duelo por traição com mulheres casadas. De outro lado, por meio do motivo do balanço, prazer e culpa se entrelaçam: “quando tornou a abrir os olhos”, diz o narrador, após o episódio do trenó na neve, Effi sofre tremendamente.
O romance efetua-se, assim, por meio de uma distância estética fria, na qual os acontecimentos centrais são descritos rapidamente, de passagem, apresentados como não essenciais, quase ao acaso, de modo intencionalmente descuidado. Por exemplo, Effi deixa as cartas e bilhetes do amante Crampas em uma gaveta, “amarradas com um fio vermelho, com três ou quatro voltas e um nó, em vez de um laço”; anos depois, exatos seis anos e meio, Instetten as encontra, “todas amareladas de tão velhas”. Por meio de tais dispositivos, Fontane busca provocar no leitor um lugar vazio, enigmático, não moralista, no qual seria possível um julgamento justo do destino de Effi.
Paralelamente, no entanto, o estilo sóbrio indicia, cada vez mais, a defesa da realidade correta, resignada, e, sobretudo, mordaz, cujo acesso se dá unicamente pelo tema da honra, e que atinge colorações inauditas como na carta da mãe, Sra. Briest a Effi, na qual a transparente crueldade é tomada como honestidade, nas suas palavras: “gostamos de por as cartas na mesa e queremos proferir diante de todo mundo nossa condenação de seu ato”, em função do qual agora você “viverá sozinha”, já que tanto o mundo em que viveu como “a casa paterna estarão fechados” (Fontane, 2013, p. 346). No que é conveniente e elegante, o princípio do dever impõe-se ao da felicidade; o que se espera de uma honra traída é a atitude conveniente e necessária para reparar o erro de acordo com as conveniências. “Tudo terrivelmente correto”, ironiza Günter Grass em Um campo vasto..
Quando Fontane desloca brutalmente o foco da narrativa de Effi para Instetten, do desejo para o sentimento de honra, entendida como a fidelidade a si mesmo e aos princípios, recebidos e aceitos do Estado e aos deveres que daí decorrem, a narrativa é tomada pelo tema da determinação moral (die Gesinnung entscheidt). Enquanto Effi descansa em Schwalbach e Ems, arbitrariamente, sem seu consentimento, o erro é reparado de acordo com as conveniências e a ordem restabelecida, a despeito de seu futuro ser brutalmente sacrificado.
Neste momento, no entanto, o narrador Fontane é, sobretudo, irônico: ao mesmo tempo glorificador e acusador do espírito prussiano; segundo Joseph Rovan, “cada afirmação desemboca em seu contrário”, ao mesmo tempo afirma os valores prussianos e critica em tons de sátira a sociedade de sua época, pois seus romances, insiste Rovan, não se cansam de louvar, discretamente, as virtudes da velha Prússia: modéstia, coragem, simplicidade, fidelidade, tal como formulada com clareza e rigor pela moral kantiana do dever.
Se os temas da culpa e da honra poderiam indiciar no desenlace do romance um compromisso conservador com os valores do passado, ao assumir um desfecho irônico, intencionalmente fraco, Fontane coloca esses mesmos valores sob suspeita, especialmente nas poderosas lamentações, irreconciliáveis, que enuncia, tais como: “ela deixou a mesa cedo demais”; ou “aconteceram muitas coisas; mas na verdade você não perdeu nada” (Fontane, 2013, p. 397), frases nas quais a própria obra dispara, paradoxalmente, um conteúdo subversivo que inviabiliza as tentativas neutras do escritor. Nestas brechas abertas pelos silêncios de Fontane, esgueira-se a presença perturbadora e rebelde da sexualidade de Effi, em explosão, resumindo de modo desconexo, ora em súplica, ora em desabafo, toda a história que o autor sensato buscara ordenar em trinta e cinco capítulos.
No momento mais agudo de sua dor, diante da indiferença da filha, Effi esbraveja: “O que é demais, é demais. Um carreirista é o que ele é, nada além disso. Honra, honra, honra… e então matou o pobre homem, a quem eu nem mesmo amava e já tinha esquecido, pois não o amava. Foi tudo uma estupidez e, então, sangue e assassínio. E eu culpada. E agora ele me manda a menina porque não pode recusar o pedido da esposa do ministro, e antes de mandá-la aqui a treina como a um papagaio e a ensina a dizer “se puder”. Tenho nojo do que fiz; mas tenho ainda mais nojo de sua virtude. Fora com vocês. Preciso viver, mas isso talvez não dure para sempre” (Fontane, 2013, p.371).
O “fora com vocês” da menina-moça ferida mortalmente é o grito rebelde, autêntico, perturbador, contra tudo e todos, que nem a morte silenciosa de Effi consegue silenciar. Um vitupério ou ordenamento subversivo que ecoa no interior da sociedade que lhe fecha as portas, cujo contraste com a solução edificante final torna sua raiva ainda mais eloquente. Ao cultivar as alusões e elipses, contrapondo-as às cenas dramáticas, a escrita de Fontane tensiona os dispositivos romanescos com uma aura de intensidade, no qual o frágil edifício da ordem ameaça a todo momento desabar.
A marginalização e morte de Effi demonstram evidentemente que a comparação com Emma Bovary é imperativa; mesmo respeitando as diferenças que são significativas: Effi é uma Emma prussiana. Nos dois casos, a situação social da mulher é semelhante, ou seja, o espaço mínimo existente para a mulher viver uma personalidade e sexualidade não convencionais as conduz fatalmente ao adultério e à morte.
Elas se tornam adúlteras, pois não há outro destino para elas, como para as serviçais, suas íntimas e únicas companheiras, senão a marginalidade da sociedade e de suas normas. Como sugere Andrea Horváth, sem lugar social para elas, restam-lhes os mesmos sonhos e fantasias com os quais iniciaram o percurso: um círculo cruel no qual fatalmente sucumbem diante de sedutores banais como Crampas e Rodolfo: Ema por sentimentalidade, Effi por curiosidade (Horváth,2004, p.80).
Emma é a heroína da insatisfação, que persegue seus sonhos equivocados em um ambiente sem horizonte. Effi, heroína do medo, já que habita um ambiente saturado de poder, controlado por tudo e por todos. São, portanto, heroínas passivas, de um lado ambiciosas e superficiais; de outro lado, insatisfeitas, vitimas que personificam uma fonte poderosa de oposição aos costumes burgueses.
O realismo pictórico de Fontane, no qual o observador penetrante olharia sem julgar, procurando ser justo com todos os lados, desemboca, com a presença espectral dessas mulheres inadequadas, em arestas irreconciliáveis. De resto, a marginalidade está presente na escrita, pois Fontane, como Flaubert, olham o mundo de fora, marginalmente. Fontane é ainda um dos últimos romancistas que tentam compreender todas as razões da sociedade, concedendo-lhe alguma legitimidade, ou, no plano estético, alguma ordem e beleza, ao modo pré-rafaelita; Flaubert com desprezo não concede a esse mundo nenhuma legitimidade, nem beleza.
Alteração, mencionada por Grass, que Samuel Beckett, herdeiro e crítico radical da tradição do romanesco na peça de um só ato, A última gravação, consolidará: “meus olhos se cansaram de tanto olhar quando voltei a ler Effi, uma página por dia, e mais uma vez em lágrimas. Effi – pausa . – Eu teria sido feliz com ela no mar báltico entre pinheiros e dunas – pausa – Não?”(Grass,1998, p.185).
*Arlenice Almeida da Silva é professora do Departamento de filosofia da Unifesp.
Referências Bibliográficas
FONTANE, Theodor, Effi Briest, Trad. Mário Luiz Frungillo, São Paulo: Estação Liberdade, 2013 (https://amzn.to/3YIbFGF).
GRASS, Günter . Um campo vasto. Rio de Janeiro: Record, 1998 (https://amzn.to/47GHpQO).
SCHUSTER, Peter-Klaus, Theodor Fontane: Effi Briest- ein Leben nach christlichen Bildern. Tübigen: Niemeyer, 1978 (https://amzn.to/3OFoeOo)
FREUD, Sigmund, O inquietante. In: Obras Completas, v.14, São Paulo: Companhia das Letras, 2010 (https://amzn.to/3E7ruwY).
HORVÁTH, Andrea, Geschlechterverhältnis in Flauberts Madame Bovary und Fontanes Effi Briest. In: Werkstatt, 3, Debrecen; Kossuth Egytem Kiado, 2004. (Neste link)
ROVAN, Joseph , “Pour saluer Fontane” In: Effi Briest, Paris: Gallimard, 1981