Eleanor Marx

Foto de Christiana Carvalho
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por LUIZ BERNARDO PERICÁS*

A questão feminina e a luta de classes.

Pioneira do feminismo socialista, Eleanor Marx, segundo sua biógrafa Rachel Holmes, “mudou o mundo”.  Nascida em 1855, em um pequeno e apertado apartamento de dois quartos noSoho, Londres, Tussy (como ficou conhecida), a filha favorita do autor de O capital, desempenhou um papel político de suma importância ao longo de seus 43 anos.  A vida dessa escritora revolucionária foi, nas palavras de Holmes, nada menos que “um dos mais significativos e interessantes eventos na evolução da social-democracia na Grã-Bretanha vitoriana”.  Afinal, entre suas múltiplas atividades, traduziu Madame Bovary, de Flaubert e trabalhos de Plekhanov, Liebknecht e Lissagaray (com quem teve um caso amoroso); foi uma das primeiras e mais enérgicas militantes sindicalistas da época; uma das introdutoras do ibsenismo na ilha (verteu para o inglês algumas peças do dramaturgo norueguês); lutou pela igualdade de gênero; começou a escrevera primeira biografia de seu pai (nunca completada);foi amiga de George Bernard Shaw, Sylvia Pankhurst e William Morris; deplorava o anarquismo; e foi uma divulgadora incansável da obra de Marx e Engels, tendo editadoRevolução e contrarrevolução na Alemanha (1896),The Eastern Question: A Reprint of Letters written 1853-56 dealing with the events of the Crimean War (1897), Value, Price and Profit, addressed to Working Men (1898), Secret Diplomatic History of the Eighteenth Century(1899)e The Story of the Life of Lord Palmerston (1899), os dois últimos volumes, lançados no ano seguinte ao suicídio dela.

Seu “feminismo” era bastante distinto daquele defendido pelo pensamentomainstream da segunda metade do século XIX.  Ainda que muitas de suas amigas fossem sufragistas, a campanha pelo voto, na visão de Eleanor, mesmo que importante, seria um objetivo limitado.  A reforma eleitoral para as senhoras de classe média dentro da sociedade capitalista não dava conta de resolver o debate social mais amplo, já que, segundo ela, “a dita questão do ‘direito das mulheres’… é uma ideia burguesa.  Eu propus lidar com a Questão Sexual do ponto de vista da classe trabalhadora e do conflito de classe”.Ou seja, os direitos das mulheres e do proletariado eram parte da mesma luta.

Holmes afirma que Tussyteria sido a responsável por criar a filosofia política do “feminismo socialista”, explicitado em seu tratado “A questão da mulher: de um ponto de vista socialista”, escrito em coautoria com seu parceiro Edward Aveling e publicado no Westminster Reviewem 1886 (um texto que deveria figurar em importância ao lado de Reivindicação dos direitos da mulher, de Mary Wollstonecraft, A origem da família, da propriedade privada e do Estado,de Friedrich Engels e de Um teto todo seu,de Virginia Woolf).Nesse sentido, foi a caçula da família Marx, junto com Clara Zetkin, quem teria levado o feminismo ao topo da agenda política no primeiro congresso da Segunda Internacional.

A biógrafa narra com detalhes os anos de formação de Eleanor e a dinâmica estimulante de seu ambiente familiar: os muitos e variados livros que lia; suas discussões e jogos de xadrez com o Mouro (de quem quase sempre ganhava as partidas); sua relação íntima com Engels (considerado como um segundo pai por ela); o interesse pela Guerra Civil americana, Abraham Lincoln e Garibaldi; sua admiração e conhecimento profundo da obra de Shakespeare; os cigarros e bebidas alcoólicas que apreciava desde o começo da adolescência;seu apoio entusiástico aos fenianos irlandeses; sua paixão pelo teatro; o início de suas atividades políticas.Era uma das poucas pessoas que conseguiam entender a difícil letra de Marx e transcrever seus textos.  Na verdade, ela se tornou uma espécie de “secretária” e assistente de pesquisa de seu progenitor (realizando levantamento de fontes especialmente no British Museum).

A última década da autora de Campaign Against Child Labor foi intensa.  Continuou a contribuir para órgãos de imprensa como Time: A Monthly Miscellany, Justicee Neue Zeit,a traduzir artigos diversos e a editar os trabalhos do filósofo renano, além de manter suas múltiplas atividades como militante política.Convidada por Plekhanov e Zasulich, se tornou correspondente britânica do periódico russo Russkoye Bogatstvo. Eleanor Marx se matouem 1898, abalando boa parte do movimento operário e dos socialistas britânicos de então, surpreendidos com a trágica notícia.  Sua vida e seu legado, contudo, continuam a ser lembrados até hoje, em parte pelo fascinante livro de Rachel Holmes, Eleanor Marx: A Life (Bloomsbury Press), obra que certamente deveria ser traduzida e publicada por aqui em algum momento.

*Luiz Bernardo Pericás é professor no Departamento de História da USP. Autor, entre outros livros, de Caio Prado Júnior: uma biografia política (Boitempo).

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • Pablo Marçal na mente de um jovem negroMente 04/10/2024 Por SERGIO GODOY: Crônica de uma corrida de Uber
  • Annie Ernaux e a fotografiaannateresa fabris 2024 04/10/2024 Por ANNATERESA FABRIS: Tal como os fotógrafos atentos ao espetáculo do cotidiano, a escritora demonstra a capacidade de lidar com aspectos da civilização de massa de maneira distanciada, mas nem por isso menos crítica
  • A poesia no tempo dos incêndios no céucultura quadro branco 04/10/2024 Por GUILHERME RODRIGUES: Considerações sobre a poesia de Carlos Drummond de Andrade
  • Coach — política neofascista e traumaturgiaTales-Ab 01/10/2024 Por TALES AB´SÁBER: Um povo que deseja o fascista brand new, o espírito vazio do capitalismo como golpe e como crime, e seu grande líder, a vida pública da política como sonho de um coach
  • Guilherme BoulosValério Arcary 02/10/2024 Por VALERIO ARCARY: A eleição em São Paulo é a “mãe” de todas as batalhas. Mesmo se perder em quase todas as capitais fora do Nordeste, se a esquerda ganhar em São Paulo equilibra o desfecho do balanço eleitoral
  • Mar mortocultura cão 29/09/2024 Por SOLENI BISCOUTO FRESSATO: Comentário sobre o livro de Jorge Amado
  • Armando de Freitas Filho (1940-2024)armando de freitas filho 27/09/2024 Por MARCOS SISCAR: Em homenagem ao poeta falecido ontem, republicamos a resenha do seu livro “Lar,”
  • Mísseis sobre Israelmíssel 07/10/2024 Por MÁRIO MAESTRI: Uma chuva de cintilantes mísseis iranianos cortando os céus de Israel, passando pelo mítico Domo de Ferro, como a farinha por peneira
  • Ultrapassando os limites constitucionaissouto-maior_edited 06/10/2024 Por JORGE LUIZ SOUTO MAIOR: Luís Roberto Barroso leva adiante a sua verdadeira Cruzada, destinada a atender a eterna demanda do setor empresarial de eliminação do custo social da exploração do trabalho
  • Hassan NasrallahPORTA VELHA 01/10/2024 Por TARIQ ALI: Nasrallah entendeu Israel melhor do que a maioria. Seu sucessor terá que aprender rápido

PESQUISAR

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES