Por LUIZ MARQUES*
Uma crítica ao artigo recente de Vladimir Safatle
Michel Foucault mostrou, em História da loucura, que a internação dos loucos veio antes do saber sobre a loucura. De maneira semelhante, no artigo “Uma revolução de sinais invertidos”, publicado no site A Terra é Redonda, Vladimir Safatle avalia que o desejo na esquerda de carimbar um conceito de confinamento ao bolsonarismo esteve aquém do entendimento sobre as razões, constituídas no movimento embalado pelos arranjos ilegais da Lava Jato em conluio com a mídia, o rentismo e os interesses das corporações estadunidenses. Teoricamente a carroça teria ficado na frente dos bois.
O “discurso de ódio”, o “ressentimento” e a “pulsão de morte”, embora temáticas importantes, foram insuficientes para explicar a adesão ao projeto de destruição do atual mandatário, que elegeu no primeiro turno dois governadores (Rio de Janeiro, Minas Gerais) e, em vantagem, conduziu um candidato ao segundo turno (São Paulo), nas três unidades da federação com maior densidade eleitoral. Internamos os fanatizados “loucos”, sem ainda dispor dos elementos para compreender o fenômeno que transita pelo mundo (Estados Unidos, Polônia, Hungria, Suécia, França, Itália).
Vladimir não menciona o trabalho de Benjamin Teitelbaum, em Guerra da eternidade: o retorno do tradicionalismo e a ascensão da direita populista, mas é nele que está contida a teoria do que se pode, a critério, denominar no mapa-múndi de “revolução” ou “contra-revolução”. Nas páginas deste site, acha-se do mesmo autor o texto sobre “Covid-19: a crise que os tradicionalistas radicais esperavam”, e reflexões nascidas do incontornável paradigma teitelbaumiano, tipo “A revolução contra a democracia liberal”, de minha lavra e, acerca do resultado das urnas em 2 de outubro, “Eleição e tradição”, de Laurindo Lalo Leal Filho. Outros comentadores trazem à tona o empoderamento neofascista, na centrífuga iliberal que agita as “encruzilhadas da democracia”.
Vladimir Safatle procura decodificar a racionalidade por detrás de condutas assumidas no desgoverno, em contagem regressiva, ao lembrar o auxílio emergencial alcançado na pandemia em contraposição ao fortalecimento das estruturas do SUS; a home schooling em alternativa à escola regular e a clara substituição das políticas governamentais de segurança pública pelo armamento dos indivíduos. Em áreas do contratualismo clássico (saúde, educação, segurança), o que se afigurava uma loucura é a aplicação fidedigna do princípio formulado pelos velhos teóricos do laissez-faire (Hayek, Mises, Friedman), condizente com o modelo do Estado mínimo esgrimido pelo neoliberalismo duro.
O apoio de vastos setores do empresariado se deve à concordância com uma proposta de funções reduzidas para o Estado, bem como do prolongamento da noção econômica do livre mercado à sobrevivência individual, no sistema social. Quando um empresário apregoa que, em lugar de dar esmolas no semáforo, o motorista deve passar com o carro por cima dos pedintes – isto é, dos losers que falharam na competição pela vida –, ele só estica ao paroxismo o Consenso de Washington.
Desde que a Revolução Francesa demarcou o fim do Ancien Régime com a propagação do valor da “igualdade”, o que o bom senso democrático baseado no ideal-guia do igualitarismo classifica de um retrocesso civilizacional, a rigor, mostra a tensão da convergência do neoliberalismo com o tradicionalismo (traduzido no conservadorismo expandido pelo neopentecostalismo) e o neofascismo. A tríade da barbárie assombra com o mal agouro a sociabilidade convencional. À moral e aos costumes mesclam-se em cada esquina a hipocrisia e o cinismo, se “pintar um clima”.
Como João Amoêdo, fundador do Partido Novo, a organização icônica do arcaísmo ultraliberal que quer a volta ao capitalismo oitocentista, segmentos da burguesia já perceberam que a reeleição de Jair Bolsonaro é a pá de cal nos ritos de civilidade e na capacidade da democracia institucionalizar e administrar a luta de classes, na sociedade ocidental. O impacto nas camadas tectônicas em escala planetária seria dramático, com os conflitos sociais doravante tendo por protagonistas apenas a extrema direita e a esquerda. A grave instabilidade política nas instituições republicanas pode então conduzir à reinversão dos sinais de mudança na ordem. Tal é o pânico das classes dominantes que, ontem, demonizavam o ex-presidente para eleger Bolsonaro e, hoje, imprescindem de Lula para esconjurar o genocida. Nas “elites do atraso”, parcela é precavida. Outra, arrisca o tudo ou nada.
“Entramos em definitivo na era dos extremos. A grande aliança (capital e trabalho) não funcionou”. A impressão que a narrativa do professor da USP passa é de que “os anjos tortos” devem acelerar o processo de polarização, como se estivéssemos em um turbilhão revolucionário. Atitude extremista que implica uma brusca guinada ideológica na campanha, capaz de arremessar ao mar as forças atraídas para a Frente Ampla Brasil da Esperança. Como se a disputa não estivesse entre o Estado de direito democrático e o Estado de exceção autoritário, mas entre o capitalismo e o socialismo.
“Enunciemos claramente as formas de outra sociedade” é um apelo que instiga a imaginação da militância, sem estabelecer uma interpelação real com as adversidades sociopolíticas na presente conjuntura, cujo caráter é defensivista. Apesar da crise econômica, não estaria sequer no modo de transição a premente questão do “empreendedorismo”, tratada qual uma mera modalidade de “servidão”, tout court. Calma com o andor. O jogo está em andamento. Lula venceu o turno inicial do pleito por seis milhões de votos. Rimou brasileiro com guerreiro, na coragem de ser feliz.
Se não sediamos mobilizações do tamanho daquela ocorrida em 7 de setembro pró-Bolsonaro, às custas de milhões do agronegócio para arregimentar transporte e alimentação às caravanas vindas de regiões distantes; há de registrar que por onde Lula se desloca em campanha eleitoral arrasta enormes multidões, de maneira espontânea. A boa semente plantada por férteis políticas públicas nos governos populares segue rendendo frutos. Anos de calúnias, da injusta prisão do líder, da destituição de uma presidenta honesta e da criminalização diuturna da esquerda em geral não derrotou o povo trabalhador. O balanço que importa agora acena possibilidades no horizonte.
Rejeitado pela pororoca provocada no encontro do neoliberalismo com o tradicionalismo e o neofascismo, o programa que investe na construção de macroestruturas de proteção carrega a energia proveniente do sentimento das ruas. A observação sobre o número de casos de transtornos de ansiedade, num país que possui um dos maiores índices de diagnósticos de depressão (13,5% da população), coloca a nação no pódio do sofrimento psíquico. Não obstante, a emoção, a rebeldia, a resiliência e a vontade de mudar o status quo é patente nos percentuais crescentes de preferência partidária pelo PT, no aumento da bancada parlamentar e nos movimentos sociais. O pensamento criativo, a consciência crítica e o espírito associativo se mantêm em articulações a partir de “ruínas” vivas no chão da dominação. Como peças no mosaico de uma utopia, reconhece também Vladimir Safatle.
A propósito, a revista Cult (set/2022) traz uma reportagem especial sobre a inusitada experiência da psicanálise nas periferias urbanas, com uma proposta de acolhimento para além do consultório. Nas palavras de Tales Ab’Sáber, “o primeiro fato teórico dessa clínica historicamente situada é que por ela não circula dinheiro, o marcador de valor da forma mercadoria circundante, organizador visível da diferenciação social e da lógica da exclusão e regulação do acesso aos bens e aos direitos, em sociedade capitalista plenamente desenvolvida, que funciona assim”. Por sua vez, Boaventura de Sousa Santos, em O futuro começa agora: da pandemia à utopia, dedica o capítulo 7 (p. 203-227) para elencar iniciativas comunitárias, indígenas e administrativas perante o abandono do Estado em diversas geografias, da América Latina e da África. O esforço está na síntese superior, nacional e internacional, das lutas locais. Para repetir Gilberto Maringoni, “desculpe, mas dá para vencer”.
A vitória de Lula em 30 de outubro impulsionará a radicalização da democracia, com a abertura de canais de participação cidadã para a elaboração de novas políticas públicas de afirmação de direitos coletivos. De imediato, aprofunda a unificação dos progressistas em termos organizacionais e políticos, afora retomar a integração do continente latino-americano e alavancar o BRICS rumo a uma multipolaridade mundial. Não é exagero afirmar que, aqui, se decide o destino do planeta ao sustar a tremenda loucura que é o irreversível desmatamento da Amazônia. Para evocar o verso do poeta Thiago de Mello: “Faz escuro / mas eu canto / porque a manhã vai chegar”. Sim, com Lula-lá.
*Luiz Marques é professor de ciência política na UFRGS. Foi secretário estadual de cultura do Rio Grande do Sul no governo Olívio Dutra.
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