Eles mentem

Imagem: Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/ Agência Brasil
image_pdf

Por CRISTIANO ADDARIO DE ABREU*

A estratégia da defesa de Bolsonaro, ao equiparar cenários radicalmente opostos, vai além da retórica forense e espelha um sintoma social perigoso: a infantilização do discurso público, onde a responsabilidade sobre os atos é constantemente negada e a história é um instrumento a ser torcido, e não uma lição a ser aprendida

La haine est sainte. Elle est l’indignation des coeurs forts et puissants, le dédain militant de ceux que fâchent la médiocrité et la sottise[i] (Émile Zola, Mês haines)

Neste tão esperado julgamento histórico de um ex-presidente da República do Brasil, e seus comparsas, por planejarem e conspirarem por um golpe de Estado (um coup d’état) no seio das Instituições nacionais, as sustentações das defesas já começam a despertar debates. Este artigo se dedica a analisar os impactos do uso que o advogado de defesa do réu Jair Messias Bolsonaro, o Sr. Paulo Cunha Bueno, fez do affaire Dreyfus na finalização da sustentação da defesa de seu cliente.[ii]

O advogado admoestou o STF do risco deste incorrer num erro judicial absurdo em condenar seu cliente, ao comparar o réu com o capitão francês, de origem judaica, Alfred Dreyfus, que foi condenado por alta traição à França, em um julgamento eivado de erros judiciais, ausência de provas contundentes, e manipulação das “provas” usadas, neste histórico caso Dreyfus, invocado pela defesa de Jair Bolsonaro.

Assim, o advogado de Jair Bolsonaro finalizou sua defesa com este vaticínio ameaçador para a respeitabilidade do STF do Brasil, mas nada elencou para justificar tal comparação: quais documentos seriam falsos? Qual manipulação judicial, ou investigativa, do arrastado processo investigativo e judicial, vindo desde 8 de janeiro de 2023, seriam manipulados ou corrompidos neste caso?

Claro que é papel da defesa proteger seus clientes, e argumentos retóricos e imagéticos fazem parte disso, mas a leniência da sociedade brasileira com essa comparação seríssima, mas feita a esmo pela defesa, sem dar nenhuma mísera fundamentação para tal comparação, merece ser aqui analisada. A História, como a Justiça, precisa respeitar minimamente os fatos.

A condenação de Dreyfus e o J’Accuse…! de Zola

O caso Dreyfus, decorreu da condenação do capitão Alfred Dreyfus, ocorrida em 1894, na III República de uma França eclipsada pelo trauma humilhante da derrota para os alemães na guerra Franco-Prussiana (1870-71). A condenação desde o começo causou debates e incômodos no mundo jurídico francês, e depois mundial, ao condenarem o capitão Dreyfus, sem provas cabais, num julgamento muito suspeito. Tal condenação ganhou o debate público mundial, com a publicação, quatro anos depois, pelo consagrado escritor Émile Zola do manifesto J’Accuse…! (Eu acuso) em 1898.[iii]

Neste icônico artigo, o já então afamado escritor socialista francês, escreveu um panfleto histórico/investigativo demonstrando as fragilidades da condenação. Demonstrou isso com fatos: ausência de provas cabais, a existência de apenas uma “prova” muito frágil (depois comprovada como forjada), falta de ampla investigação sobre outros suspeitos possíveis (todos membros da elite militar francesa…), e o direcionamento interessado, e enviesado, da investigação militar comandada pelo malfadado tenente-coronel du Paty de Clam, a quem Émile Zola imputa muitos erros, má-fé, e até misticismos com traços de desequilíbrios mentais.

Esse panfleto de Émile Zola caiu como uma bomba na sociedade francesa, desencadeando debates inflamados, o que forçaria a esfíngica justiça militar francesa e rever o caso sob pressão da opinião pública. O caso foi reaberto e só se concluiu em 1906, quando Dreyfus foi finalmente inocentado e reabilitado às Forças Armadas, depois de ter, graças ao debate lançado pelo J’Accuse de Émile Zola, retornado da prisão da ilha do Diabo na Guiana Francesa, onde ficou de 1895 até 1899, quando seu processo foi reaberto num tribunal de Rennes na França, onde seguiu até concluir com sua reabilitação e inocência em 1906.

Esse panfleto de Émile Zola é há muito uma peça político/literária, jurídica e cívica, maior da literatura universal, estudada como exemplo de contribuição do intelectual público na sociedade: num mundo no qual a realidade segue em complexificações crescente, o estudo específico de todas as dimensões da realidade é uma exigência da modernidade, em que algumas pessoas (não a maioria) alcançam aprofundar tais estudos, e regularmente toda a sociedade é demandada a entender algumas dessas dimensões complexas, quando não de todas elas.

Logo, alguém que sintetize debates complexos, em assuntos especializados, para o público amplo, tornou-se cada vez mais relevante e necessário: sendo essa a origem da ideia, tão francesa, do intelectual público. O próprio termo intelectual, como é usado contemporaneamente, foi criado neste Affaire Dreyfus, em referência ao Émile Zola.

No Affaire Dreyfus Émile Zola usou da imprensa para divulgar as falhas do contencioso, explicando a situação nos termos jurídicos, investigativos e mesmo militares (havia ao fundo um caso de espionagem para os alemães na guerra), e chamando a opinião pública para um julgamento racional do caso.

A derrota para a Alemanha na guerra Franco-Prussiana foi um trauma que alavancou ódios e revanchismo, facilitando caça às bruxas, estimulando punitivismos emocionais, que Émile Zola identificou na escolha do judeu alsaciano Alfred Dreyfus como culpado na investigação eivada de falhas do tenente-coronel du Paty de Clam: o antissemitismo contra o capitão Dreyfus exalava de um processo que buscava culpados de forma rápida, e poupava o status quo de elementos aristocráticos das forças militares.

Émile Zola cavou tais falhas e feridas neste caso histórico, formatando a sociabilidade moderna de uma opinião pública esclarecida, republicana, herdeira do Iluminismo, e compromissada com a eterna busca da verdade histórica, jurídica e científica, que é sempre uma construção dinâmica disputada, mas que precisa ter balizas estruturais comuns mínimas entre as “escolas”, grupos e forças atrás de cada hipótese proposta. Isso é o chão comum da convivência civilizada! Isso é civilização, palavra tão fora de moda…

Pois eis que no atual mundo da digitalidade dos monopólios das Big Tech, que operam sob algoritmos ocultos, a Ágora da Polis tem sido envenenada por sofistas contrários a polis. Isso em todos os temas! A crescente complexificação da produção e das sociedades, já reconhecida nos dias de Zola, vinda desde a Revolução Industrial, e que não cessa de acelerar esses processos de complexificação, encontra hoje uma reação regressiva de grande parte das sociedades.

Não mais buscam o debate aprofundado, coordenado por intelectuais públicos, intelectuais orgânicos de projetos em disputa, a se contraporem republicanamente na Ágora… Tal situação, exemplificada na Acusação de Zola, hoje não encontra apoio em enorme parcela social, que prefere o negacionismo (histórico, científico, jurídico…) diante da crescente complexificação de tudo.

O Affaire Dreyfus representou um marco na história mundial, de uma reação de uma elite intelectual, que alavancou forças populares diante de uma injustiça e manipulação das elites militares, para a correção dessa injustiça. Significou que a opinião pública importava para impedir abusos jurídicos, políticos e econômicos, e que essa opinião é construída com critérios de averiguação coletiva: a busca da verdade importa!

Monopólios digitais e o direito à mentira

A busca da verdade importa, e na ciência a verdade histórica é uma meta científica que precisa ser trabalhada e tratada seriamente: na ciência econômica, nas ciências sociais e nas ciências jurídicas, ela é basal para a perna indutiva de qualquer debate científico ficar de pé. Quando os pós-modernos começaram nos idos dos anos 1970 a defender que a história é apenas uma composição narrativa (mais uma…) eles estavam abrindo a Caixa de Pandora de todo o negacionismo científico no qual o mundo está mergulhado hoje.

Isso não é negar que sempre haverá conflitos narrativos, interpretativos, na construção na ciência histórica. Não é petrificar a “verdade” no cristal fetichizado do não questionamento. Mas ao contrário: é permitir e estimular os questionamentos fundamentados, considerando as nuanças das versões, numa construção dinâmica, que sempre pode receber mais contribuições, mas que precisa ter critérios de averiguações básicos dessas contribuições.

Ou dito de forma resumida: é preciso averiguar se tais contribuições têm bases concretas, não são fraudes, que tais interpretações e versões têm alguma base de honestidade. Ou seja: a busca da verdade importa neste processo científico, por mais que “a história como realmente aconteceu” seja uma veleidade ingênua e utópica, ter a busca das verdades como meta é fundamental na dura e dinâmica construção da ciência da história.

Todas as ciências atacadas pelo negacionismo científico têm que lidar na base dos negacionismos com o negacionismo histórico: tal negacionismo é fundante de todo o negacionismo científico. Como foi o caso na COVID19, e como as ciências jurídicas também atestam mais ainda. A palavra história vem de historiar, que em grego significa investigar: o empoderamento do negacionismo histórico é um atestado de explosões de negacionismos jurídicos nas ciências jurídicas.

Adultos infantilizados

Nas escolas, quando algo errado ocorre, a regra são as crianças negarem qualquer responsabilidade, quando não acusam os colegas. A narrativa fantasiosa no universo infantil compõe uma construção lúdica das personalidades, mas a manutenção indefinida de padrões fantasiosos pode gerar adultos mitômanos: mentirosos compulsivos! E com o discurso punitivista antipolítico, por décadas repetidos na mídia corporativa, e nas novelas, cristalizou-se a difusão de uma postura mentirosa, defensora do vale tudo generalizado, que é a falência de qualquer projeto republicano.

Pois o Brasil deste julgamento de um ex-presidente acusado de planejar golpe de estado é um cenário muito promissor para a correção de tantos horrores acumulados, e de tantas perversões sociais difundidas. A defesa do ex-presidente não consegue reescrever a história para negar que ele, que foi deputado federal por 28 anos,[iv] sempre defendeu a ditadura militar,[v] sempre defendeu o golpe de 1964,[vi] defendeu tortura,[vii] sendo por toda vida um inimigo declarado de qualquer projeto democrático para o Brasil, ou para qualquer lugar. Tais fatos, pelo menos ainda, são inegáveis.

O que a defesa de Jair Bolsonaro nega é que ele, e os outros acusados, tenham de fato planejado, e tentado, um golpe de Estado. Ok. Então a palavra do ser que virou presidente do Brasil em 2018, que por toda sua vida adulta, sempre defendeu o golpe de 1964, o regime militar, a tortura… Tudo isso foram palavras vazias do ser que foi parlamentar por 28 anos defendendo tal agenda?

O parlamentar eleito, e reeleito, por 28 anos pregando contra a democracia que o permitia ser eleito, estava fazendo então o que com essas palavras em sua boca por tantos anos? Dá a impressão de que ele estava apenas brincando… Como um perverso adulto infantilizado… Defendeu-se até que “ele foi dragado ao 8 de janeiro”[viii]…  A culpa é sempre das outras crianças da sala…

A alegada inocência de Jair Bolsonaro feita pela defesa, encontra um ruído que a atrapalha, vindo de um Congresso que, orwellianamente, é dominado por forças antidemocráticas (como sempre foi Bolsonaro), quando este segue na gritaria por anistia. A palavra de ordem do eclipse do regime militar, volta como um espectro orwelliano hoje, mas indica evidências de culpa: quem é inocente quer provar sua inocência! Jamais vai apelar para uma exceção judicial antes mesmo do julgamento ocorrer. Pedir anistia em um processo marcado por visível ampla defesa e cuidado judicial[ix]: exatamente o oposto do processo contra Dreyfus… A obsessiva campanha por anistia dos golpistas é forte indício de culpa.

Assim como a total ausência, por parte da defesa dos golpistas, de qualquer pedido de acompanhamento por grupos jurídicos internacionais: quem confia na inocência apregoada encara debates públicos com diversos observadores.

Realmente, uma defesa que invoca o Affaire Dreyfus para defender Jair Bolsonaro tinha que ser mais cobrada pela parte republicana desta machucada sociedade brasileira. Onde está a falta de provas sobre o plano de golpe? Onde estão as falhas processuais? O que está tão viciado assim na investigação, e no processo, de Jair Bolsonaro para se ousar fazer tal comparação tão esdrúxula e indigna.

Algo que faltou tratar aqui foi a questão nacional nos dois julgamentos: a França derrotada então buscava culpados que espionaram para os alemães. Condenaram injustamente o judeu Dreyfus, para quando ocorrer uma investigação digna deste nome, descobrirem que foi um aristocrata, o comandante Ferdinand Walsin Esterhazy o verdadeiro traidor da França a passar informações aos alemães. E no caso de Jair Bolsonaro? Qual é o comprometimento dele com a questão nacional?

Para além de sequestrar a camisa da seleção brasileira… Em tudo, e sempre, ele foi um colaboracionista da submissão do Brasil ao domínio estrangeiro, sem nunca nem sequer negociar benefícios. E a campanha de seu filho pela crescente taxação do Brasil por parte do governo Donald Trump é mais um capítulo da folha corrida de traição à pátria do capitão expulso do exército por pôr bombas em quarteis[x]: um mau militar segundo o próprio Geisel[xi]. Mais correto seria comparar o julgamento de Jair Bolsonaro com o do Marechal colaboracionista nazi Pétain[xii]

Como um perverso adulto infantilizado, Jair Bolsonaro entende que pode cometer crimes, e que não deve responder por eles: como a nobreza francesa do ancien régime, ele teria privilégios legais, não respondendo sob a lei geral.

Mas para não dizerem que nada foi encontrado de análogo no processo de Bolsonaro com o de Dreyfus, fica aqui uma lembrança feita pelo dito advogado Paulo Cunha Bueno: o fato de que ambos tinham a patente de capitão.

*Cristiano Addario de Abreu é doutor em história econômica pela USP.

Notas


[i] A raiva é santa. É a indignação de corações fortes e poderosos, o desdém militante daqueles que se irritam com a mediocridade e a tolice. Odiar é amar, é sentir a alma calorosa e generosa, é viver a grandeza do desprezo por coisas vergonhosas e estúpidas

[ii] Ver neste link.

[iii] Ver neste link.

[iv] Ver neste link.

[v] Ver neste link e neste outro link.

[vi] Ver neste link.

[vii] Ver neste link e também neste outro link.

[viii] Ver neste link.

[ix] Ver neste link.

[x] Ver neste link.

[xi] Ver neste link.

[xii] Ver neste link.


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
O segundo choque global da China
06 Dec 2025 Por RENILDO SOUZA: Quando a fábrica do mundo também se torna seu laboratório mais avançado, uma nova hierarquia global começa a se desenhar, deixando nações inteiras diante de um futuro colonial repaginado
2
Energia nuclear brasileira
06 Dec 2025 Por ANA LUIZA ROCHA PORTO & FERNANDO MARTINI: Em um momento decisivo, a soberania energética e o destino nacional se encontram na encruzilhada da tecnologia nuclear
3
Simulacros de universidade
09 Dec 2025 Por ALIPIO DESOUSA FILHO: A falsa dicotomia que assola o ensino superior: de um lado, a transformação em empresa; de outro, a descolonização que vira culto à ignorância seletiva
4
A guerra da Ucrânia em seu epílogo
11 Dec 2025 Por RICARDO CAVALCANTI-SCHIEL: A arrogância ocidental, que acreditou poder derrotar a Rússia, esbarra agora na realidade geopolítica: a OTAN assiste ao colapso cumulativo da frente ucraniana
5
Asad Haider
08 Dec 2025 Por ALEXANDRE LINARES: A militância de Asad Haider estava no gesto que entrelaça a dor do corpo racializado com a análise implacável das estruturas
6
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
7
Uma nova revista marxista
11 Dec 2025 Por MICHAE LÖWY: A “Inprecor” chega ao Brasil como herdeira da Quarta Internacional de Trotsky, trazendo uma voz marxista internacionalista em meio a um cenário de revistas acadêmicas
8
Raymond Williams & educação
10 Dec 2025 Por DÉBORA MAZZA: Comentário sobre o livro recém-lançado de Alexandro Henrique Paixão
9
Considerações sobre o marxismo ocidental
07 Dec 2025 Por RICARDO MUSSE: Breves considerações sobre o livro de Perry Anderson
10
O agente secreto
07 Dec 2025 Por LINDBERG CAMPOS: Considerações sobre o filme de Kleber Mendonça Filho, em exibição nos cinemas
11
Impactos sociais da pílula anticoncepcional
08 Dec 2025 Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA: A pílula anticoncepcional não foi apenas um medicamento, mas a chave que redefiniu a demografia, a economia e o próprio lugar da mulher na sociedade brasileira
12
Insurreições negras no Brasil
08 Dec 2025 Por MÁRIO MAESTRI: Um pequeno clássico esquecido da historiografia marxista brasileira
13
As lágrimas amargas de Michelle Bolsonaro
07 Dec 2025 Por CAIO VASCONCELLOS: Estetização da política e melodrama: A performance política de Michelle como contraponto emocional e religioso ao estilo agressivo de Jair Bolsonaro
14
A armadilha da austeridade permanente
10 Dec 2025 Por PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS: Enquanto o Brasil se debate nos limites do arcabouço fiscal, a rivalidade sino-americana abre uma janela histórica para a reindustrialização – que não poderemos atravessar sem reformar as amarras da austeridade
15
O empreendedorismo e a economia solidária – parte 2
08 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Quando a lógica do empreendedorismo contamina a Economia Solidária, o projeto que prometia um futuro pós-capitalista pode estar reproduzindo os mesmos circuitos que deseja superar
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES