Emergência climática

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Somente a presença massiva da população nas ruas, em atos de desobediência civil e novos experimentos socioeconômicos podem desatar os entraves sistêmicos das rodadas de negociação sobre as mudanças climáticas

Por Luiz Enrique Vieira de Souza e Nataly Sousa Pinho*

“Não temos mais tempo para ignorar a ciência”. Esse foi o chamado proferido por Greta Thunberg na vigésima quinta Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP25) e sintetiza bem a mensagem que tem sido o eixo do ativismo que a fez, merecidamente, ser escolhida como a “personalidade do ano” pela revista Time. A urgência do discurso da ativista sueca tem como base a sequência de relatórios do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), que formulou um amplo consenso científico sobre as causas antropogênicas das mudanças climáticas e os prognósticos acerca do aumento da concentração dos assim chamados “gases do efeito estufa” na atmosfera.

Chamada por Bolsonaro de “pirralha”, Greta Thunberg evocou os estudos científicos mais sofisticados das ciências ambientais para lembrar a comunidade internacional de que nos restam apenas 320 Gigatons de CO2 para ainda termos uma chance de 67% de restringir o aumento da temperatura global a 1,5 °C. Uma vez ultrapassado esse limiar, os efeitos das mudanças climáticas assumirão proporções drásticas e potencialmente irreversíveis.

Irão ocasionar o derretimento das geleiras polares, uma maior incidência de fenômenos climáticos extremos, stress hídrico, prejuízos para o cultivo de alimentos e erosão costeira. As consequências em termos de sofrimento humano serão proporcionalmente violentas, pois tais desequilíbrios aumentarão as pressões migratórias, as disputas por recursos naturais e as desigualdades globais. Levando-se em consideração as estatísticas dos últimos anos, esse “ponto de não retorno” será atingido nos próximos oito anos, caso não seja implantado um esforço de cooperação internacional ambicioso que provoque uma inflexão drástica no padrão global de emissões.

Embora essa situação configure uma “emergência climática”, o apelo de Greta Thunberg e de milhares de ativistas para que as evidências científicas sobre a catástrofe iminente sejam levadas a sério não foi suficiente para as lideranças políticas se comprometerem com medidas de reestruturação da produção que pudessem levar à descarbonização da economia.

Nesse sentido, o documento final da COP25 representa a protelação de uma questão inadiável, e a timidez de suas resoluções revelam mais um sintoma de fracasso do multilateralismo em concretizar esforços globais a favor do meio ambiente. Esse fracasso expressa, por sua vez, os imperativos sistêmicos de uma globalização competitiva em que a inserção das economias nacionais no mercado internacional depende significativamente da exploração dos recursos naturais e da minimização dos custos de produção, como é o caso, por exemplo, do uso do carvão na geração de eletricidade.

Reconhecer a natureza sistêmica dos obstáculos que se interpõem à conclusão de um pacto civilizatório em defesa do meio ambiente não significa menosprezar a importância dos fatores conjunturais que também interferiram nos rumos dos debates e frustraram o desfecho da COP25.

Nesse plano, o Brasil foi destaque negativo e emergiu à condição de vilão das negociações climáticas por intermédio de Ricardo Salles, Ministro do Meio Ambiente, que tentou retirar pontos importantes da resolução final do evento, particularmente aqueles que, em conformidade com os relatórios especiais do IPCC, apontam para o impacto do aumento da temperatura nos oceanos e para relação entre o uso da terra e as mudanças climáticas. Tais sabotagens refletem o negacionismo climático do governo Bolsonaro e mostram-se úteis do ponto de vista de interesses econômicos particulares como, por exemplo, a pressão ruralista para que Territórios Indígenas sejam convertidos em pastagens.

Além disso, o ministro Ricardo Salles rebaixou o Brasil aos olhos da audiência internacional ao utilizar na COP25 algumas daquelas estratégias argumentativas rasteiras que o bolsonarismo aplica às redes sociais: seletividade na aceitação de fatos objetivos e ofensividade discursiva com o intuito de desviar o foco das próprias responsabilidades. Isso pôde ser observado na tentativa canhestra de circunscrever o problema das emissões ao uso de combustíveis fósseis. “É importante o Brasil deixar claro que o problema das emissões de gases são os combustíveis fósseis. E, portanto, tem que deixar clara a tentativa de disfarçar a discussão dos combustíveis fósseis, afastar e jogar para outros temas”.

Ora, não há dúvidas de que sem a superação do modelo energético atual e a transição para energias renováveis, as políticas de enfrentamento das mudanças climáticas estão condenadas ao fracasso. No entanto, a retórica de Salles comporta elevada dose de oportunismo e visa deliberadamente semear confusão ao reduzir o problema das emissões à questão energética.

De acordo com dados do Sistema de Estimativa de Gases do Efeito Estufa (SEEG), o setor de “mudança de uso da terra e florestas” representa a maior parte das emissões brasileiras, seguido pela atividade agropecuária. A preponderância desses setores nas emissões nacionais constitui um problema histórico que diz respeito à inserção subalterna do Brasil no mercado internacional como provedor de commodities agrícolas, e deve ser reforçada graças ao apoio irrestrito do governo atual aos interesses de ruralistas e garimpeiros, ligados diretamente ao desmatamento e à degradação do solo.

Por outro lado, o discurso de enfrentamento que Salles endereçou aos países ricos na COP25 mostrou-se tão falacioso quanto anacrônico. Falacioso porque o governo Bolsonaro lança mão da retórica de defesa da “soberania nacional” quando, na prática, implantas políticas que recrudesce a submissão brasileira às nações poderosas. Prova disso foi a entrega sem contrapartidas da base militar de Alcântara aos norte-americanos (base militar esta que, é bom lembrar, foi construída de maneira autoritária em território quilombola), assim como os leilões de concessão do pré-sal às nações estrangeiras, quando a política ambientalmente mais responsável e soberana seria manter tais reservas sob propriedade estatal como estratégia para evitar sua exploração e as consequentes emissões de toneladas de CO2 que dela adviriam.

Já o caráter anacrônico desse discurso, pretensamente anti-imperialista, tem a ver com a desconsideração do “princípio das responsabilidades comuns, porém diferenciadas”, que resultou do acordo firmado entre nações do Norte e do Sul global na Conferência Rio-92. De acordo com esse princípio, as nações desenvolvidas admitiam sua dívida ambiental com os países do Sul por terem sido historicamente as principais emissoras, reconhecendo assim a necessidade de traçar para si metas de redução de CO2 mais ambiciosas.

Já os países do Sul comprometiam-se com a mitigação dos gases do efeito estufa, inclusive por legitimarem a validade dos estudos científicos, cujos prognósticos apontavam as nações mais pobres e localizadas em baixas latitudes como as que seriam potencialmente mais afetadas pelas mudanças climáticas. Ao desconsiderar esse acúmulo e retroceder à posição irredutível que o Brasil assumiu na Conferência do Meio Ambiente realizada em Estocolmo (1972), Ricardo Salles ignorou todos os prejuízos que o país sofrerá com os impactos ambientais das mudanças climáticas.

A militância sistemática do bolsonarismo contra a preservação ambiental também se evidenciou na questão mais controversa da COP25, a saber, o ponto que diz respeito aos créditos de carbono. Trata-se de uma ideia em si problemática, não apenas por se basear numa proposta reificante que mercantiliza a atmosfera, mas também porque pressupõe que o desafio sem precedentes de reestruturação da economia global pode ser alcançado com a mera regulamentação de uma nova bolsa de valores, onde os países negociariam entre si o direito de emitir mais carbono.

Nesse contexto, o Brasil alinhou-se ao grupo de países que pretendia tornar ainda mais absurda a lógica desse mercado, pois defendeu a farsa da “dupla contagem”, em que um país poderia vender a outros seus créditos de carbono, sem que as quotas negociadas fossem deduzidas do montante que o país vendedor inicialmente teria direito a emitir. Como essa proposta representaria o golpe de misericórdia nos esforços multilaterais de negociação climática, nenhum acordo foi estabelecido e o debate postergado para a rodada do próximo ano.

Em razão do desmonte bolsonarista dos órgãos ambientais, da conivência presidencial com as queimadas na Amazônia e das sabotagens de Ricardo Salles às negociações climáticas, o Brasil conquistou o título de “Fóssil do Ano”, um antiprêmio tradicionalmente concedido nas rodadas da COP aos países que se comportam como empecilhos às iniciativas contra o aquecimento global, como os EUA, Canadá, Arábia Saudita e Austrália. O título “Fóssil do Ano” não deixa de ser simbólico também em relação à lógica argumentativa de Bolsonaro e seus ministros nos fóruns de debate sobre meio ambiente.

Eles incorrem numa contradição autoritária ao rotularem como “ideológicos” os ativistas ambientais e como “atrasados” os saberes populares e as cosmologias indígenas, ao mesmo tempo em que desprezam os conhecimentos científicos que apontam para a deterioração das condições ecossistêmicas que garantem a reprodução da vida humana no planeta. Não por acaso, seu governo negou o direito de participação de cientistas e representantes da sociedade civil brasileira na COP25 que, para terem acesso ao evento, tiveram que pleitear credenciamento na comitiva de outros países.

Greta Thunberg iniciou seu discurso com um apelo para que os alertas da ciência fossem ouvidos e encerrou sua fala sugerindo que apenas as mobilizações populares poderiam alavancar negociações verdadeiramente efetivas para frear o aquecimento global. Numa palavra, somente a presença massiva da população nas ruas, com atos de desobediência civil e novos experimentos socioeconômicos, poderiam desatar tanto os entraves sistêmicos das rodadas de negociação (vide a presença entre os patrocinadores da COP de alguns dos bancos e corporações que mais contribuem para a aceleração das mudanças climáticas), como os obstáculos de ordem conjuntural.

Além de acordarmos do pesadelo bolsonarista, é preciso colocar na mesa ideias que unam o conhecimento científico aos conhecimentos populares e às cosmovisões indígenas, assim como perspectivas que reflitam um novo modelo de desenvolvimento, capaz de aliar o combate às desigualdades com propostas de decrescimento econômico e de superar o presente modelo de reprodução ampliada ad infinitum e ad nauseaum do metabolismo entre sociedade e natureza, que só beneficia uma minoria privilegiada.

*Luiz Enrique Vieira de Souza é professor de Sociologia da Universidade Federal da Bahia.

*Nataly Sousa Pinho é estudante de Ciências Sociais na UFBA

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