Por LETÍCIA NÚÑEZ ALMEIDA*
Comentário sobre o livro recém-lançado de Luiz Eduardo Soares.
Maria Bethânia disse certa vez que não gostava do pôr do sol, enquanto anoitece é um momento inseguro, cada um o vive como pode. Enquanto anoitece, uns desfrutam do sol se pondo atrás dos Dois Irmãos em Ipanema e no Leblon para depois retornar aos seus apartamentos lindos, limpos e seguros graças aos trabalhadores que enquanto anoitece estão esperando o ônibus, o trem, o metrô, a van, ou todos, para retornar aos seus lares, com apenas uma certeza, o expediente do dia ainda não terminou, longe disso, o terceiro turno está começando.
Dentre as muitas fronteiras que separam a vida de quem mora de um ou do outro lado do Túnel Rebouças, o acesso aos prédios residenciais chama a atenção de quem não é local, os moradores não têm as chaves da portaria do seu prédio, nem o controle do portão da garagem. Os porteiros são os donos da passagem, são os Exus da administração predial, eles é que fazem a gestão de quem pode subir pelo elevador social ou pelo de serviço. Se o morador sai cinqüenta vezes, o porteiro abre a porta e o cumprimento todas elas. Se alguém precisa de ajuda, é ele que resolve.
Se há imóvel para alugar e/ou vender também é ele quem sabe, e não necessariamente passa essa informação adiante, tudo depende da condição que os moradores dão ao pessoal da portaria. Se são gentis e educados, é uma coisa, se são marrentos, abusados, trocam os nomes por gosto, não cumprimentam, andam com cães soltos, entram no edifício com a areia da praia…tudo na vida é troca, ensinam os nossos Exus.
Eles estão nas calçadas nobres conversando com os seus colegas de ofício, sabem tudo que se passa, conhecem os entregadores, domésticas, traficantes, prestadores de serviço de todo tipo, a maioria são do Norte do país e moram longe da Zona Sul carioca, quando ascendem ao que seria a primeira divisão da equipe da portaria, tem a possibilidade de morar em um cômodo no próprio edifício com sua família, algo cada vez mais raro.
Como todo ser humano, cada porteiro tem o seu mundo particular, seus mistérios, sua história de desigualdades e sofrimento. Ninguém tem uma vida sacrificada longe da sua terra porque quer, muito menos sendo chamado de cearense quando é nascido no Pernambuco, passando os dias escaldantes de traje social e sapato lustrado enquanto os demais aproveitam o entardecer de sunga e biquíni na praia.
Enquanto anoitece nos presenteia com o que está por trás da vida aparentemente tranqüila de um desses tantos nordestinos que fazem a “segurança” dos moradores do Leblon. Raimundo Nonato, o protagonista, reúne em si ambigüidades complementares que só um grande personagem tem. Sua existência é política, e nos faz percorrer facilmente pelas mais diversas regiões do Brasil ao mesmo tempo que mobiliza nossos pré-conceitos, desacomoda nossas verdades sobre a história recente do país e revela a glória de seus personagens invisíveis.
Enquanto anoitece fala de lealdade, qualidade rara nos seres humanos, nos apresenta a dor e as perdas como parte da vida, não como algo insuportável e extraordinário. Valoriza o que há de mais cruel e ao mesmo tempo divino na vida dos brasileiros: as crenças, os afetos, a diversidade e os encontros.
Por fim, para não “spoliar” a surpresa, impossível não se apaixonar pelos silêncios de Raimundo Nonato que – depois de ler o livro – permanecem gritando nos nossos ouvidos. Uma obra prima que só o brilhante Luiz Eduardo Soares poderia escrever.
*Letícia Núñez Almeida é professora de sociologia na Universidad de la República do Uruguay. É autora, entre outros livros, de Subsistemas fronteiriços do Brasil: mercados ilegais e violência (Gramma).
Referência
Luiz Eduardo Soares. Enquanto anoitece. São Paulo, Todavia, 2023, 160 págs.
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