Por FÁBIO AKCELRUD DURÃO*
23 fragmentos sobre a literatura e a vida contemporânea
Esboço é um sinônimo de rascunho, um desenho de linhas gerais para ser completado depois. O esboço difere do rascunho quando incorpora a incompletude. Se ela pode ser vista com preguiça também pode ser encarada como convite. Tentativa de traduzir experiências cotidianas em conceito. Produzir um tipo de escrita que acolhesse a conversa, aqui pensada como uma forma privilegiada de intersubjetividade, um estar-junto.
1.
Quando o pesquisador não tem consciência de que precisa elaborar uma hipótese de leitura para seu objeto, que norteará o argumento e o situará dentro de um horizonte bibliográfico, o texto que escreve muitas vezes toma a forma de uma colcha de retalhos de fichamentos.
2.
Em uma conversa, confidencia-me um autor famoso: “o que você faz quando há mais livros do que amigos para os dedicar? Oferecer a um conhecido é um desrespeito ao trabalho, deixar em branco, desperdiçar uma potencialidade”. Para mim, ficou a questão de saber se a exiguidade das relações afetivas teria uma causa menos específica – a índole do indivíduo, a idade, o isolamento urbano etc. – ou se entre obra e pessoas não haveria uma alguma espécie de incompatibilidade. Se isso for verdade, o espaço da dedicatória mostrar-se-ia intrinsecamente tenso.
3.
É quase como que uma tragédia do intelectual: ter de escolher entre livros e pessoas, não como uma questão abstrata, geral e de princípio, mas na concretude e miudeza do dia a dia. Quando a preferência recai predominantemente sobre os primeiros, algo de humano desvai-se; quando sobre as últimas, corre-se o risco de emburrecer. Está certo que a conversa com pessoas inteligentes mitiga a falta dos livros, mas não há como o bar ou o cafezinho poder substituir a biblioteca. Administrar a culpa, aqui estrutural, é uma sabedoria que de um jeito ou de outro se adquire com o tempo – a menos que ela se converta em revolta contra essa posição, que, fruto da divisão social do trabalho, é ela mesma socialmente construída.
4.
A profissionalização dos estudos literários levou à proliferação de subcampos de especialização. Não importa se o recorte é histórico, de gênero, nacionalidade, ou mesmo autor, geralmente o universo abordado pré-existe; sua configuração não costuma ser questionada pelo principiante. Ele é estranho do horizonte experiencial do novato na área e aparece meramente como trabalho, o que não deixa de ser. Um desenvolvimento recente, no entanto, foi a transformação de determinados conteúdos em âmbitos de investigação. Monstros, rock, super-heróis, guerra, sci-fi, romance de detetive etc. ligam-se diretamente à vida extramuros de quem está entrando na academia. O outro lado do engajamento oriundo da familiaridade é a abolição da distância. Como se apaga a alteridade, o diferente e o difícil, ofusca-se aquilo que no ato de questionar transcende o objeto. O bom estudioso é aquele que consegue lidar com coisas díspares, que sabe inquirir o mundo, com isso prestando uma homenagem à sua riqueza. Ao identificar-se com um objeto o entusiasmado scholar torna-se um pesquisador de uma nota só.
5.
O “você sabe com quem está falando?” assume um curioso duplo sentido, quando dito por uma obra literária. (Cf. Paul de Man e a oposição entre gramática e retórica, etc.).
6.
(Ideia roubada do T.D.) Pensando no fetichismo da mercadoria, não é assustador o adesivo colado aos produtos dizendo: “fale conosco”?
7.
Como uma experiência intensa de fala, a aula contém algo de erótico. Pode ser que em uma situação diversa, com turmas menores e discentes mais interessados, ela pudesse aproximar-se do ideal de uma conversa e sua horizontalidade. Do jeito que as coisas são, no entanto, a dissimetria parece inexorável; se fosse um gênero dramático, deveria ser classificada quase como monólogo (pois existem as perguntas sobre a prova). Isso não é simplesmente lamentável, pois a partir da escuta de si, amparada pelo olhar atento dos alunos, surge a possibilidade de elaboração, em seu sentido enfático. Há algo a ser aprendido por meio da mímesis dessa auto-excitação.
8.
A expansão da pós-graduação no Brasil, que pode ter chegado a um limite, criou uma situação curiosa. Pelo menos nas Letras, em diversos lugares há uma defasagem entre instituições e pessoas. Não é apenas o caso que haja muitos professores sem doutorado em universidades públicas (nas privadas é melhor nem pensar); o excesso da oferta em relação à mão de obra qualificada, que não impede a competição extrema nos concursos dos estados mais ricos, tem implicações para a própria dinâmica de estudo. Como há um lugar vago a ser ocupado, os objetos assumem a primazia sobre as questões. Eles garantem que algo seja produzido como resultado do trabalho, em oposição à pesquisa com aquilo que fascina ou incomoda, que traz o sujeito para dentro de si e o desloca.
9.
Sobre os 400 anos da morte de Shakespeare
Tenho ojeriza a efemérides. Entristece ver a cultura ser ordenada pela arbitrariedade dos números redondos. A mobilização que são capazes de gerar atesta o poder da indústria cultural, que neles encontra um princípio estruturador para ocultar a verdade: que aqui impera a lógica sem sentido da moda. Raramente as celebrações de aniversário coincidem com algum avanço radical na compreensão da obra do escritor celebrado. A máquina comemorativa – tantas palavras e tanto rebuliço para tão pouca substância – projeta uma felicidade em seu contrário: tirar da estante o Júlio César, numa tarde ensolarada qualquer, para calmamente ler e ficar pensando.
10.
A verdadeira ingenuidade é muito rara, mas sempre produtiva. Um dia desses, estava tomando café na cantina com um amigo; discutíamos sobre como é fácil internalizar uma periodização compartimentalizante, que separa a história em centênios, conferindo um espírito próprio a cada um deles, como se a cada cem anos todas as pessoas resolvessem, à meia noite do dia 31 de dezembro, pensar e fazer as coisas de modo totalmente diferente. Foi então que me disse que a melhor crítica a isso encontrou em aula que dava sobre o Padre Antônio Vieira, quando uma aluna perguntou: “mas professor, quando é que fica século XVII?”.
11.
Estratégia de aula. Não tenho desejo pelo desejo de vocês.
12.
O quanto a teoria literária, que se quer científica, ainda permanece sujeita a valores morais, pode ser averiguado no fato de que a expressão “mudança de paradigma” só é usada em sentido positivo. Ela funciona como uma garantia de qualidade daquilo que está sendo anunciado como novo; que uma transformação possa ser negativa, fica fora do radar. Sua eficácia retórica sem dúvida reside no hibridismo de registros que traz em si: de um lado o lugar-comum popular de que toda mudança deve ser bem-vinda, de outro, o prestígio da palavra de origem grega.
“Paradigma” como slogan de propaganda.
13.
Conversando com os orientandos.
Fabio: Como vocês sabem, a relação entre mestre e discípulo possui um aspecto saudavelmente beligerante. O aprendiz, para deixar de sê-lo, precisa construir a sua assinatura. Caso não o faça, ficará para sempre um aluno, e o rosto dos seus dias permanecerá eternamente voltado para trás. Isso que se ouve com frequência, que é necessário matar o mestre, não passa de uma simplificação, pois o negar carrega em si aquilo a que se opõe. Há outros modos muito mais produtivos de superação, como o louvor. O elogio é um ato de fala bastante rico; a bajulação representa apenas uma de suas potencialidades. Em seus usos mais inteligentes, ele pode se comparado a um jato de luz, pois dá relevo a algo em prejuízo do resto, que se recobre de escuridão. O discurso fúnebre proferido pelo discípulo em honra ao mentor é a primeira ocasião na qual este não pode mais refutar. O enaltecimento põe em cena o deslocamento inicial, justamente pela escolha do quê exaltar, que permitirá ao discípulo tornar-se independente.
Tiago: Ô, Fabio, está com medo de morrer?
Fabio: Não me sinto confortável na posição de mestre, mas confesso que ficaria bem feliz se pudesse a adotar a difícil saída desejada por Antonio Candido.
Tiago: Que é qual?
Fabio: Fazer o discurso fúnebre de seus discípulos.
[…]
Fernando: Mas, Fabio, chistes à parte, não haveria um jeito de pensar essa questão da morte como ocorrendo por meio da própria obra estudada? A construção da objetividade do artefato, necessariamente mediada pelo sujeito, que traz em si tudo o que aprendeu, não seria justamente aquilo que despede o mestre e emancipa o discípulo?
14.
Não se trata de defender o valor, mas tão somente de averiguar sua desvalorização. Nos estudos literários, hoje, invocá-lo gera, como um reflexo condicionado, a suspeita de uma agenda escusa, a projeção de um universal espúrio a partir dos interesses particulares de grupos dominantes. Ao invés de hierarquias, de ordenamentos e subordinações, o mundo da literatura seria feito de singularidades, cada artefato igualmente apto a reivindicar sua habitação. Isso contrasta agudamente com a ultravalorização do valor em outros contextos. Bandas de rock e seriados podem ir tão fundo na escala valorativa, que passam a contribuir para a definição identitária do indivíduo – com efeito, esta última pode até anteceder o contato com o objeto, uma vez que as identidades originam-se em processos de socialização. Dessa discrepância entre o literário e a indústria da cultura é possível identificar mais uma figura da morte do primeiro, porque distante da vida das pessoas, bem como a falência da crítica, que há tanto tempo insiste em não ver tal disparidade.
Comentário do F.U.: “Não sei, não, Fabio, pois fiquei pensando no seguinte: se ‘a definição identitária do indivíduo […] pode até anteceder o contato com o objeto, uma vez que as identidades originam-se em processos de socialização’, a ultravalorização do valor na indústria cultural não poderia estar expressando, antes de mais nada, a alienação dos seus produtos respeito à vida das pessoas? E, do mesmo ponto de vista, a velha invocação do valor nos estudos literários não poderia ser vista como expressão da própria alienação da literatura, do fato de, no fundo, já ser experienciada como algo alheio ou estranho à vida?”.
(O mesmo, de outro jeito) Parece ter se tornado uma verdade universalmente reconhecida, que não existe diferenciação entre a alta e baixa literatura, entre o high brow e o low brow. Sem dúvida, o valor é algo problemático, e a sua valorização dificulta, ou mesmo impede, a experiência estética. No entanto, é assombroso perceber a contradição absurda entre a proibição de valorar, no âmbito literário, e o império do valor, em todas as outras esferas da vida social. O carro, o time de futebol, as roupas, a comida, tudo está constantemente sujeito a julgamentos discriminatórios, por vezes sutilíssimos, e que vão tão fundo a ponto determinar a autodefinição do indivíduo. A alergia ao valor acaba prestando uma homenagem negativa à literatura ao reconhecer nela um domínio do discernimento, contra o qual precisa voltar-se.
15.
Frequentemente, aquelas pessoas que aparentam ter uma erudição descomunal possuem tão-somente uma exímia habilidade para conduzir a sucessão de tópicos da conversa.
16.
Há quase 100 anos atrás pensadores como Walter Benjamin já chamavam a atenção para o declínio da experiência. O que frequentemente parece simples falta de medida, um exagero enganador nos textos de Adorno e Horkheimer (“come on, o mundo não é tão terrível assim!”) era na realidade uma estratégia composicional que permitisse a experiência do fim da experiência. É esta que está desaparecendo na segunda década do século XXI.
17.
O reconhecimento é um motor fundamental no mundo do espírito. É ele que na maior parte das vezes está na base da vaidade intelectual, assim como do arrivismo, tanto artístico quanto crítico. O que caracteriza seu funcionamento, e que o torna tão mobilizador, além de uma grande falta no sujeito, é que foge a este. O reconhecimento é sempre dado pelo outro: você não pode chamar a si mesmo de poeta. O ideal, dificilmente dado, geralmente uma conquista, é fazer o reconhecimento irrelevante diante da força da relação com o objeto.
18.
É tolo pensar que o sujeito seja autossuficiente e que a imersão no objeto possa bastar-lhe. Muito do que somos advém do modo como nos vemos sendo vistos e um lugar sem inteligência, consequentemente incapaz de reconhecê-la, a atrofia naquele onde estaria presente. Como a vida do pensamento é intrinsecamente coletiva, o reconhecimento mutuo constitui o pressuposto para o surgimento da objetividade.
19.
A vida das obras não é dissociada da de seus autores. Para que possam prosperar, é necessário que estes morram no momento certo. O trabalho do pensador forte que falece cedo demais sobrevive apenas como uma promessa, aquilo que teria sido caso o tempo o permitisse. Já o ancião, facilmente estraga o que fez se continua a falar. Com a natural queda de vigor, o passado torna-se seu inimigo; luta contra ele pateticamente, em um combate no qual, sem escapatória, quem perde é alguma versão de si mesmo. No entanto, até quando se cala, o grande intelectual ainda pode pairar, fantasmagoricamente, por sobre sua obra, regulando à distância seus desdobramentos. Impede assim que seu trabalho siga o rumo de suas potencialidades imanentes, que só surgem por meio da crítica sem pai. Para que o pensamento seja capaz de viver é necessário que seu autor morra inteligentemente.
Comentário do L.P.: “Nesse sentindo, saber morrer, mesmo que simbolicamente, é um elemento forte na composição do artefato. Dispor da morte como uma força compositiva da própria obra talvez seja o experimento estético/teórico mais arriscado que existe”.
20.
Pobre Descartes, mal sabia que o adjetivo derivado de seu nome viria a tornar-se um palavrão.
21.
(Roubado do A.B.) Raymond Williams às avessas. A ideia de que as camadas populares podem apropriar-se de artefatos da chamada alta cultura, desrespeitando sua integridade e refuncionalizando conteúdos supostamente universais para seus fins específicos, segundo seus interesses particulares – tal ideia teve merecida difusão. Com ela, aparecia a possibilidade de driblar o caráter de classe das grandes obras, o fato de que não apenas encontram-se em um universo de referências distante do povo, como também exigem muito tempo livre para sua absorção: em suma, coisa de rico. Ao invés de um Olimpo intocável, a cultura agora surgia como palco sobre o qual expressavam-se preocupações políticas, consciente ou inconscientemente, de grupos muitas vezes em busca de uma voz. Porém essa ideia envelheceu mal. Com o desenvolvimento da indústria da cultura, que se ramificou, criando subdivisões das mais diversas ordens, a burguesia não mais precisa da “alta cultura” para extrair capital simbólico. Isso agora pode ser feito, seja por meio do domínio de um repertório amplo dos mais díspares objetos, altos, baixos e médios (o que demanda muito tempo), seja pela antenação diante do que acabou de sair nos EUA. Mas pensando bem, a aristocracia da cultura está tão distante do democratismo do presente, que os vetores podem ser facilmente reversíveis, e as classes dominantes não encontram dificuldade de apropriar-se de artefatos da cultura popular, desrespeitando sua integridade no que têm de coletivo, e assim refuncionalizando seus conteúdos comunitários: é só colocar um camarote.
22.
Você percebe que há algo de bem errado na universidade quando os alunos, sem se dar conta, passam chamando de artigo o trabalho final de disciplina.
23.
A formação de teorias literárias sofre atualmente de uma contradição difícil de escapar. Para que possam sobreviver no supermercado das ideias, são obrigadas a prometer uma futureidade. Aquilo que se propõe como reflexão original deve projetar um âmbito de validade vindouro, a possibilidade de discussão de objetos díspares em contextos diversos. Não é o menor dos sinais de penetração da lógica do capitalismo no espírito que as teorias hoje exaurem-se em sua formulação. Elas são prêt-à-porter: a angústia da influência, de Harold Bloom, a leitura distante e os mapas, de Franco Moretti, o homo saccer, de Giorgio Agamben (etc.) contêm um núcleo imaginativo que se desfaz quando reiterado. Elas convidam, pelo quanto se prestam, e impedem, pela repetitividade, a aplicação. Não deixa de ser uma modalidade do engodo das mercadorias.
*Fabio Akcelrud Durão é professor do Departamento de Teoria Literária da Unicamp. Autor, entre outros livros, de O que é crítica literária? (Parábola/Nankin).
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