Estadão, 150 anos

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Por CAIO NAVARRO DE TOLEDO*

A celebração dos 150 anos repete o ritual de autossantificação que transforma um jornal de classe em “consciência nacional”, apagando seu protagonismo em golpes que marcaram a história brasileira

1.

O jornal O Estado de S. Paulo faz 150 anos! Para comemorar a data, uma festa foi realizada, em 8 de outubro, no Teatro de Cultura Artística, tradicional espaço cultural localizado numa rua da capital paulista que, coincidentemente, leva o nome de um ex-diretor do jornal.

Para a fala de abertura do grande evento, foi escolhido um consagrado articulista de O Estadão. Na definição do jornal, Leandro Karnal é “um dos principais pensadores contemporâneos do Brasil (…) dono de uma coluna semanal no Estadão com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades”.

Graduado na USP e ex-docente da Unicamp, Leandro Karnal é um prolífico autor de livros sobre diferentes problemáticas e um bem-sucedido empresário cultural; nas múltiplas conferências e palestras-shows que realiza – em faculdades particulares, empresas privadas, entidades educacionais e culturais, etc. –, o ex-acadêmico reúne entusiasmadas plateias em todo o país.

Com muita frequência, está presente em programas de TV e rádio nos quais debate os mais diferentes assuntos e fatos da conjuntura política e cultural do país e mundial. Com muita certeza, pode-se afirmar que, hoje, Leandro Karnal é o intelectual mais popular do Brasil.  Mais ainda: é, de longe, o mais bem-sucedido intelectual midiático brasileiro.

Prova de sua “popularidade” se evidenciaria pelo fato de ter sido convidado, em 2016, por “altas autoridades da República”, a ser presidente interino do Brasil. Em relato recente concedido ao UOL, Leandro Karnal informou que isso ocorreu por ocasião do processo de impeachment de Dilma Rousseff.

Por razões pessoais, o intelectual agradeceu a honrosa lembrança de seu nome; em nenhum momento, contudo, parece ter questionado a iniciativa golpista representada pelo convite feito a ele por políticos mobilizados a derrubar o governo do PT.

2.

Dias atrás, na festa do Estadão, o historiador, diante de sua ilustrada plateia, não se conteve ao exaltar o trabalho editorial do tradicional jornal paulistano; sem reservas, deixou de lado o rigor analítico que deve orientar as falas e os escritos de intelectuais críticos.

Dispensando a qualificada bibliografia acadêmica existente sobre a imprensa brasileira e, em particular, os trabalhos sobre O Estado de S. Paulo, Leandro Karnal – ao interpretar o significado do jornal na vida social e política do país – reproduziu falaciosas auto-representações difundidas pelos editoriais e ideólogos de plantão.

Entre os lugares comuns existentes sobre o Estadão pode ser lembrada a afirmação de que, como um órgão da imprensa liberal (tal como os seus maiores concorrentes, O Globo e a Folha de S. Paulo), o jornal é um incansável paladino das liberdades democráticas no Brasil. Praticamente em perfeita consonância com a UDN, liderada por Carlos Lacerda, O Estadão, nos anos 1950-1960, não adotou também a consigna de que “o preço da liberdade é a eterna vigilância”?

Seriam, pois, estas arraigadas convicções e ideário que explicam o fato de os editoriais, artigos e reportagens do jornal defenderem, sem tréguas, a derrubada do governo constitucional de João Goulart e, mais recentemente, o impeachment de Dilma Roussef. Assim, sob a perspectiva editorial do Estadão, os eventos de 1964 e 2016 – que tiveram um intenso protagonismo do jornal –, teriam sido, a rigor, movimentos políticos em defesa das “liberdades democráticas”; não teriam sido, em absoluto, golpes contra os governos democráticos então vigentes.

Em seu panegírico do dia 8/10, o colunista – num trecho decisivo de sua fala – destacou a missão política, cultural e moral que tem sido desempenhada pelo jornal na vida brasileira. Sem hesitar, Leandro Karnal relembrou à ilustrada plateia: “O Estadão atravessou guerras, ditaduras plenas e democracias claudicantes, crises e revoluções tecnológicas. E permaneceu. Por quê? A resposta é complexa. Em parte, porque é mais que um jornal. É uma consciência impressa. O jornalismo, quando é fiel à verdade, não envelhece. Cada edição do Estadão é uma carta de amor à lucidez. Celebrar 150 anos do Estadão é celebrar um século e meio de luta pela liberdade”.

3.

Este trecho do discurso, certamente, suscita inúmeros problemas de ordem teórica e empírica. No entanto, desejo aqui destacar uma questão que seria sintetizada pela dúvida: Os familiares de brasileiros e brasileiras que sofreram torturas, estão desaparecidos/as e foram mortos/as pela ditadura militar deveriam reconhecer que os editoriais e artigos de O Estadão no pré-1964 – exigindo que os militares intervissem a fim de derrubar o governo Goulart e reprimissem severamente os “subversivos” – foram “cartas de amor à lucidez”?  

Igualmente, teriam sido “cartas de amor à lucidez” os editoriais e artigos do jornal que – ao lado do empresariado (industrial, financeiro e do conjunto da grande mídia) – apoiaram o golpe constitucional de 2016 e, com entusiasmo, saudaram as reformas neoliberais implementadas pelo governo de Michel Temer?

Teriam sido “cartas de amor à lucidez” as sistemáticas matérias do jornal que – criminalizando os governos do PT e fortalecendo a ferrenha campanha antipetista do conjunto da mídia empresarial – colaboraram para a vitória eleitoral de uma candidatura que, desde sempre, jamais ocultou seu compromisso com os ideais da extrema direita política e solidariedade à ditadura militar?

Reconheça-se que o Estadão, a partir do recrudescimento da ditadura pós-1964, passou a questionar “excessos” dos governos militares e, recentemente, tem produzido contundentes editoriais em defesa de uma punição exemplar a Jair Bolsonaro e asseclas pelos crimes cometidos contra a democracia durante seus anos de governo. Justiça seja feita ao jornal, pois, distanciando-se de a FSP e O Globo, Estadão, desde julho de 2021, quase solitariamente, passou a questionar o governo então vigente, pois ameaçava as instituições da República e o regime democrático.

Reconhecidos estes posicionamentos editoriais, seria sensato, contudo, declarar que o Estadão, nos 150 anos de existência, foi uma sólida e consequente casamata em defesa das liberdades democráticas no Brasil? Tendo em vista a qualificação intelectual do historiador formado na USP e ex-docente da Unicamp, as candentes e dogmáticas afirmações contidas em sua fala não deixam de causar estranhezas e perplexidades.

Abdicando conscientemente de análises críticas produzidas pela historiografia qualificada sobre o jornal, Leandro Karnal parece, atualmente, aceitar o papel subalterno de porta-voz de um órgão noticioso que, em toda a sua história, sempre esteve comprometido com os interesses sociais e econômicos das classes dominantes do país.

Ao defender publicamente a versão de que o jornal paulistano tem uma imaculada e límpida trajetória em defesa das liberdades democráticas no Brasil, Leandro Karnal, de bom grado, parece se candidatar a ser um novo ideólogo de O Estado de S. Paulo.

Mais novo, esclareça-se, pois, antes dele, muitos outros houve.

Em 1928, um ex-diretor do Estadão, Plínio Barreto também acreditou que o jornal deveria ser a “consciência impressa” de seu tempo. Na epígrafe de O Bravo Matutino, referência bibliográfica decisiva para se conhecer, nos anos 1920/1930, as convicções políticas e ideológicas do jornal, uma pérola foi escrita pelo ex-editor do Estadão: “Um verdadeiro jornal (…) constitui para o público uma verdadeira bênção. Dispensa-o de formar opinião e de formular ideias. Dá-lhes já feitas e polidas todas as tardes, sem disfarces e sem enfeites, lisas, claras e puras”. (In: Capelato, Maria Helena e Prado, Maria Lígia, O Bravo Matutino, 1980, p. X).

Quase cem anos se passaram, os tempos mudaram; no entanto, as concepções dos ideólogos do Estadão parecem ser idênticas e inabaláveis.

Por último, não custa reafirmar que é de se louvar o firme combate que, hoje, o Estadão, por meio de seus editoriais, trava contra a extrema direita brasileira representada pelo bolsonarismo. No entanto, é de se lembrar também que uma tarefa permanente do pensamento crítico sempre será a obstinada luta contra as falsificações históricas, conscientes ou não, difundidas pelos ideólogos, sejam eles vulgares ou intelectualmente cultivados.

*Caio Navarro de Toledo é professor aposentado da Unicamp e membro do comitê editorial do site marxismo21. É autor, entre outros livros, de O Governo Goulart e o Golpe de 64 (Brasiliense). [https://amzn.to/4n4CkrD]


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