Por THIAGO GAMA*
Enquanto a solução punitiva celebra a barbárie como espetáculo, a única ordem duradoura se constrói ao desarmar as causas da violência: a fome, a desigualdade e o abandono do Estado Social
Há uma sedução quase irresistível para certos analistas em diagnosticar a esquerda brasileira como uma força política alienada, presa a um moralismo de classe média que a impediria de compreender os anseios “reais” do povo pela ordem. O artigo de Wilson Gomes (Folha de S. Paulo, 18/11/2025) é o sintoma mais refinado dessa análise.
Ao sugerir, amparado na sociologia de Karen Stenner, que o apoio popular à letalidade policial no Rio de Janeiro deriva de uma “ameaça normativa” – o medo do colapso das regras – e que a esquerda falha ao ler isso como disputa ideológica, o texto comete um erro de premissa. A esquerda não apenas entende a violência; ela é a única força política que compreende a sua gênese.
O que os críticos chamam de “incompreensão” é, na verdade, a recusa obstinada em aceitar que a restauração da “norma” se dê através do extermínio, uma distinção entre ordem pública e paz dos cemitérios. Não estamos diante de uma esquerda perplexa, mas de um campo político que diagnosticou corretamente que a “ameaça normativa” nas periferias não nasce da ausência de punição, mas da ausência do Estado enquanto promotor de dignidade.
Quando o governo Lula iniciou a maior transferência de renda da história, não estava apenas fazendo “política social”; estava operando uma política de segurança pública avant la lettre.
A violência, como nos ensinou Fernand Braudel em seus estudos sobre a “longa duração”, não é um evento meteorológico; ela é a secreção purulenta de séculos de um sistema escravocrata jamais inteiramente superado. Achar que a esquerda “não entende” que o pobre quer ordem é ignorar que foi essa mesma esquerda que tentou dar ao pobre a base material – comida, luz, universidade – para que a “ordem” não fosse apenas a do capitão do mato, mas a da cidadania.
O argumento de que a população aplaude a matança porque sente que “ninguém manda” é sociologicamente astuto, mas politicamente incompleto. O povo aplaude o “sucesso” da operação policial não porque rejeita os Direitos Humanos em abstrato, mas porque foi abandonado numa terra arrasada onde a única face do Estado apresentada é a do policial que chuta a porta ou a do miliciano que cobra o gás.
A esquerda sabe disso com a precisão de quem lê Foucault e Agamben: a favela vive sob um estado de exceção permanente, onde a vida nua está exposta à morte soberana. Marielle Franco foi exemplo máximo de que a esquerda entende de segurança pública; por entender tão bem, foi calada. O que se cobra da esquerda não é “compreensão”, é a adesão à barbárie como método de gestão. E isso, por dever histórico e imperativo ético, a esquerda recusa.
A necropolítica como placebo
É preciso precisão para encarar os números que Wilson Gomes nos mostra: 67% dos brasileiros consideram a operação correta (Quaest). O analista vê aí uma derrota da esquerda. Ledo engano. O que esses números gritam não é um amor incondicional ao coturno, mas o sintoma agudo do que Loïc Wacquant diagnosticou com cirúrgica precisão em As Prisões da Miséria: quando o Estado social recua, o Estado penal avança para preencher o vácuo, gerindo a pobreza pela contenção punitiva.
A esquerda compreende essa equação melhor do que ninguém, pois foi ela que, entre 2003 e 2010, tentou inverter a lógica, substituindo o caveirão pela carteira assinada. Durante os governos Lula 1 e 2, o Brasil experimentou uma redução vertiginosa da desigualdade, fenômeno que representa uma ruptura tectônica em quatro séculos de escravidão. Aquele período provou, com dados empíricos, que a segurança pública real começa muito antes da viatura sair do batalhão; ela começa quando o jovem da periferia vislumbra um horizonte que não seja o tráfico.
A “ameaça normativa” que Wilson Gomes cita é real. A desordem assusta. Mas a desordem primordial brasileira não é a falta de polícia, é a falta de República; é a anomia gerada pela fome e pela invisibilidade cívica. O que a esquerda executou com êxito até o golpe de 2016 foi uma “biopolítica afirmativa”: fazer viver, em vez de deixar morrer. As políticas de distribuição de renda não eram “esmola”, eram ferramentas de segurança nacional. Ao retirar milhões do mapa da fome, o governo federal atuou na raiz do recrutamento do crime organizado.
Se hoje a população clama por sangue, é porque a terra arrasada deixada pelo interregno Michel Temer-Jair Bolsonaro destruiu as bases materiais daquela esperança, devolvendo o povo à condição de homo sacer, a vida nua que pode ser eliminada impunemente. O governo Lula atual tenta reconstruir essa malha de proteção, mas a violência tem inércia.
O desmonte de políticas públicas entregou a juventude de bandeja às facções. Dizer que a esquerda “não entende” a demanda por ordem é ignorar que a única ordem duradoura já experimentada por este país foi aquela em que o filho do pedreiro virou doutor, e não aquela em que ele virou estatística no IML.
A camisa de força constitucional
A sociologia nos explica o medo; o Direito nos revela a impotência desenhada. O debate público insiste em cobrar do Presidente da República a segurança da esquina, ignorando a arquitetura bizantina do nosso Pacto Federativo. A esquerda, que hoje ocupa o Planalto, governa com as mãos atadas por uma Constituição que, em seu Artigo 144, delegou aos governadores a patente de senhores feudais da segurança pública. Estamos diante de uma “federação de fachada”, um arranjo esquizofrênico.
Nos Estados Unidos, a segurança é municipalizada; o xerife responde à comunidade local. O vínculo de responsabilidade é tátil. No Brasil, criamos um “monstro jurídico”: a Polícia Militar responde ao governador, enquanto o município, onde o crime acontece, é um espectador, e a União, um pagador de contas sem comando de tropa.
Essa estrutura permite que governadores, alinhados ao populismo penal, sabotem políticas federais de inteligência, preferindo o espetáculo sangrento das incursões em favelas – que geram manchetes fáceis – ao trabalho silencioso da investigação.
O “sucesso” da operação no Rio de Janeiro é a celebração da única linguagem que o ente estadual decidiu falar: a da guerra. O governo federal, detentor da expertise e da visão humanista, é refém de polícias estaduais que operam sob a lógica do confronto.
Comparativamente, o nosso federalismo é uma armadilha para a esquerda no poder central. Se o governo federal intervém drasticamente (como em 2018), valida a militarização que critica; se respeita a autonomia, é acusado de inércia diante do genocídio.
A saída passaria por uma repactuação profunda – quiçá uma PEC da Segurança Pública que criasse um “SUS da Segurança” –, mas tal audácia esbarra num Congresso Nacional reacionário, onde a “bancada da bala” atua não para resolver a violência, mas para garantir que o mercado da insegurança continue lucrando com o pânico social. A esquerda entende o jogo; o problema é que as regras foram escritas pelos donos do cassino.
O sabotador legislativo
A Constituição funciona como uma camisa de força; o Congresso Nacional, em sua configuração atual, não provê ideias robustas para uma política de segurança humanista. O Executivo Federal nunca será a fonte da “solução” quando a fábrica legislativa opera para travá-lo. A esquerda, ao contrário do senso comum conservador, não é leniente com o crime; ela é a única força que tentou implodir a escola do crime que é o sistema carcerário.
Michel Foucault, em Vigiar e Punir, já nos alertava que a prisão não fracassa em eliminar o crime; ela tem sucesso em produzir delinquentes, em criar uma classe de “ilegalismos geríveis”. A “bancada da bala” compreendeu essa lição foucaultiana pelo avesso: legislam para garantir que o ciclo de encarceramento em massa continue funcionando como uma fábrica de punir negros e pobres. O governo Lula enfrenta um parlamento que opera na lógica do pânico moral, combatendo “comunismo” em 2025.
Enquanto o Ministério da Justiça tenta desenhar políticas baseadas em inteligência e descapitalização do crime – a única via moderna –, o Congresso responde com populismo penal: aumento de penas, fim de saidinhas, excludentes de ilicitude.
Essas medidas são gasolina no incêndio. Ao superlotar presídios que são escritórios do crime, o legislador entrega o jovem primário, sem facção, nos braços do crime organizado, que lhe oferece proteção em troca de lealdade. A esquerda sabe que cada lei “dura” aprovada sem critério é um contrato de adesão assinado para o Comando Vermelho ou o PCC.
Não é inépcia, é bloqueio institucional deliberado. O Orçamento, sequestrado por emendas parlamentares, drena os recursos que deveriam financiar um sistema integrado e científico para pulverizá-los em viaturas nos redutos eleitorais.
O Executivo propõe a cirurgia complexa; o Legislativo impõe a sangria imediatista. A esquerda entende a violência como um business complexo que precisa ser asfixiado financeiramente; a direita legislativa a trata como cruzada moral alimentada com corpos, pois o medo é a moeda política mais valorizada.
A economia política do massacre
O maior triunfo ideológico da direita foi colonizar o imaginário popular com a ideia simplória de que segurança pública é um problema de polícia, e não de economia política. Quando lemos que 81% da população acredita que os mortos na operação eram criminosos, não estamos vendo um diagnóstico factual, mas o reflexo de um desespero social.
A esquerda, munida de uma biblioteca que vai de Karl Marx a Thomas Piketty, entende o que o senso comum recusa: em um país onde a herança escravocrata desenha a geografia urbana, a violência não é falha do sistema, é seu produto mais bem-acabado.
O “sucesso” da operação deve ser lido no contrapelo. Ele expõe a falência absoluta do Estado em oferecer qualquer outra mercadoria que não seja a morte. A queda da desigualdade nos anos Lula funcionou como torniquete. O que vemos hoje, esse clamor por medidas duras, é o grito de uma sociedade que, desamparada economicamente, agarra-se ao punitivismo como quem se agarra a uma boia de chumbo. A tese de Karen Stenner sobre a “ameaça normativa” é bem argumentada, mas precisa de materialidade histórica. A “norma” que ruiu na favela foi a do emprego, a do salário digno.
A esquerda entende que restaurar a autoridade perdida não se faz empilhando cadáveres, mas restaurando a autoridade da Carteira de Trabalho. É contraintuitivo para o senso comum bombardeado pelo jornalismo policialesco, mas a ciência mostra que a correlação mais forte com a redução de homicídios é a redução do coeficiente de Gini. O governo federal atual, ao retomar a valorização do salário-mínimo, faz mais pela segurança a longo prazo do que qualquer “megaoperação”.
A esquerda não é “boba”; ela é a única adulta na sala, tentando explicar que não se cura um câncer social com band-aid de chumbo. O problema é que, na democracia do espetáculo, a sensatez não rende likes, e a necrofilia política se vende como virtude.
O Supremo como trincheira civilizatória
A ironia trágica é que a esquerda, acusada de desordem, tornou-se a última guardiã da ordem jurídica estrita. Carl Schmitt ensinou-nos que “soberano é quem decide sobre o estado de exceção”. No Rio, o governador usurpou essa soberania para decretar que a Constituição não vigora em certos CEPs. A favela torna-se, na acepção de Giorgio Agamben, um campo – uma zona de indistinção onde a lei está suspensa. Quando o STF edita a ADPF 635, ele não está “algemando a polícia”; ele está tentando reintroduzir a República em territórios onde ela foi abolida pelo arbítrio.
A decisão da Corte foi um dique de racionalidade contra a barbárie. A esquerda defende a ADPF porque sabe que um Estado que pode matar sem dar satisfações na favela é um Estado que, amanhã, poderá matar no condomínio. A violência estatal é um cão raivoso que, solto da legalidade, não distingue mais quem é dono e quem é caça. Setores da classe média que aplaudem a operação mal sabem que é a ponta de lança da esquerda que os defende da barbárie total do desmantelamento do Estado.
O brasileiro médio aceitou a lógica do “estado de sítio” não declarado, trocando cidadania por tutela militarizada. A esquerda recusa-se a assinar esse cheque em branco. A insistência na legalidade e na inteligência não é “garantismo ingênuo”; é a compreensão pragmática de que o modelo do confronto é uma máquina de moer carne que mantém as engrenagens do medo girando. A validação de políticas de transferência de renda pela ONU como vetores de pacificação é evidência empírica: onde o Estado entra com escola e renda, o recrutamento do tráfico seca.
A luta da esquerda é para impedir que o Brasil deslize de vez para uma “democracia iliberal”. É uma batalha ingrata, nadar contra a correnteza do medo, mas é a única que vale a pena para quem não desistiu da civilização.
A geopolítica da sala de aula
A escola é a barreira intransponível contra a morte cívica. A esquerda é a única portadora de um pragmatismo brutal: a segurança pública se resolve na disputa pelo tempo da juventude. Existe uma “tecnologia de segurança” mais eficaz que o blindado aéreo: a escola de tempo integral. Onde a criança está das 8h às 17h aprendendo xadrez ou robótica, ela não está vulnerável ao canto de sereia do “vapor”. Darcy Ribeiro e Brizola entenderam isso com os CIEPs: eram “bunkers” de educação, fortalezas onde a criança estaria protegida.
Quem desmontou esse projeto foi a lógica de austeridade e o descaso de governos estaduais que preferiram investir em presídios – o hotel dos falidos – a investir na arquitetura da esperança. O governo federal atual age pelas beiradas com a potência que lhe resta: através da expansão dos Institutos Federais, a esquerda cria ilhas de excelência. O jovem dos Institutos Federais não quer ser “frente” do morro; quer ser engenheiro da Petrobras. Isso é política de segurança na veia. Paulo Freire não é apenas método de alfabetização, é doutrina de defesa nacional.
A esquerda propõe a escola como antídoto real à violência pela evidência estatística de que o custo-aluno é infinitamente menor, e moralmente superior, ao custo-presidiário. Enquanto não houver uma federalização tática do ensino em áreas de conflito, continuaremos enxugando sangue com notas de repúdio.
A “ordem” que a direita promete é a ressurreição do cadáver da Ditadura de 1964, onde a polícia aprendeu que o inimigo interno não tem direitos. Bolsonaro não inventou a violência; ele a democratizou, transformando o extermínio em política de Estado. A direita perde o debate moral porque seu projeto final é o suicídio do Estado: um país onde cada vizinho é um alvo. A esquerda vence porque oferece a única tecnologia capaz de impedir a implosão social: a República.
A redução da criminalidade nos anos de ouro do lulismo foi a aplicação prática da tese de que a cidadania é o melhor escudo contra a barbárie. Vladimir Safatle nos lembra que vivemos em um “Estado suicidário”, que gere suas contradições eliminando seus cidadãos. A esquerda diz “não” a esse suicídio coletivo. Diz “sim” à escola integral, à inteligência policial, à redistribuição de renda.
A direita pode ter os aplausos do medo hoje, mas a esquerda tem a razão da história. A “porrada” ganha a manchete, mas só o humanismo constrói o século. A esquerda entendeu que a violência é o grito de um país que se recusa a nascer; nossa tarefa é fazer o parto desse Brasil, mesmo que ele nos morda a mão na hora da dor.
*Thiago Gama é doutorando em História Comparada na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Referências
AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. Boitempo, 2004.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
BRASIL. STF. ADPF nº 635. Relator: Min. Edson Fachin. 2020.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Vozes, 2014.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Paz e Terra, 2016.
GOMES, Wilson. A esquerda ainda não entendeu o apoio popular à operação militar no Rio. Folha de S.Paulo, 18 nov. 2025.
MBEMBE, Achille. Necropolítica. n-1 edições, 2018.
ONU. Princípios Básicos sobre o Uso da Força. Havana, 1990.
RIBEIRO, Darcy. O Livro dos CIEPs. Bloch, 1986.
SAFATLE, Vladimir. O Circuito dos Afetos. Cosac Naify, 2015.
SCHMITT, Carl. Teologia Política. Del Rey, 2006.
STENNER, Karen. The Authoritarian Dynamic. Cambridge Univ. Press, 2005.
WACQUANT, Loïc. As Prisões da Miséria. Jorge Zahar, 2001.
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