Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA*
O arranjo conservador estabiliza o fluxo de renda para conter conflitos, enquanto o mecanismo de juros altos concentra a riqueza no topo, criando uma ordem estável, porém medíocre e profundamente assimétrica
O arranjo macroeconômico brasileiro contemporâneo gera algo possível de ser classificado como “estagdesigualdade”: uma combinação de estagnação relativa do fluxo de renda (baixo dinamismo do PIB) com concentração crescente da riqueza financeira propiciada por juros reais disparatados diante os do resto do mundo. Vou detalhar a engrenagem desse hipotético mecanismo.
O fluxo macroeconômico leva a um pacto social informal por conta do baixo desemprego (5,6%) garantir legitimidade social mínima. Há ocupação, mas predominantemente em setores de serviços de baixa produtividade e informalidade parcial.
A inflação em torno de 5% aa está relativamente controlada diante a experiência histórica, sem explosões, dando estabilidade nominal e previsibilidade. O PIB crescer até a 2,5% aa é uma taxa modesta, mas suficiente para não caracterizar recessão ou colapso, mantendo uma “normalidade macroeconômica”.
Complementa o “pacto” a política social ativa através de Previdência Social, Bolsa Família, BPS, MCMV etc. Estes programas criam um piso de inclusão social, sustentando consumo básico e legitimidade política.
Isso constitui uma espécie de pacto social não formalizado: o governo social-desenvolvimentista (e não neoliberal como prega a “grande” imprensa brasileira) assegura proteção mínima, estabilidade no emprego e inflação baixa. Em troca, a sociedade tolera baixo dinamismo econômico e alta desigualdade patrimonial.
A dita “financeirização” atua como eixo estrutural para a elite socioeconômica. Os juros de 15% aa (1,17% ao mês) remuneram extraordinariamente os detentores de ativos financeiros. Esse é o mecanismo central de concentração de riqueza.
A arrecadação fiscal é sustentada por ICMS (tributação regressiva) e IR (imposto de renda progressivo), entre outros impostos. Correlaciona-se com o baixo crescimento do PIB. Tem imposto inclusive sobre rendimentos financeiros (de 22,5% a 15% de acordo com o tempo de aplicação), mas a estrutura tributária é regressiva, porque a tributação sobre grandes patrimônios e lucros é limitada.
Quanto ao balanço de pagamentos, o superávit comercial bastante “estrutural” garante divisas externas e estabilidade cambial. Isto caso as importações industriais, devido à desindustrialização e/ou desnacionalização da indústria, não se elevem muito mais com um crescimento sustentado em longo prazo.
O déficit em transações correntes revela a sangria por remessas de lucros e pagamentos de juros dos empréstimos externos tomados pelas empresas transnacionais, ou seja, a periferia continua expropriada pelo centro. Para o equilíbrio do balanço de pagamentos, os Investimentos Diretos no País (IDP) prosseguem com a globalização da economia brasileira em cadeias produtivas de valor internacionais.
Aqui está o nó: o Brasil consegue manter estabilidade macroeconômica à custa da financeirização da riqueza e da drenagem de valor para o exterior.
Porém, esta estabilidade inflacionária à custa de baixo crescimento guarda semelhanças com países centrais do Ocidente desindustrializado. De fato, o arranjo lembra o “modelo de estagnação estável” das economias maduras do Ocidente com baixo crescimento estrutural, baixa inflação, altos ganhos para o setor rentista e políticas sociais como válvula de escape para reduzir tensões.
A diferença é, no Brasil, isso ocorrer em um país ainda periférico e desigual, com maior fragilidade externa e histórica dependência de capitais e/ou tecnologias internacionais.
O conceito de “estagdesigualdade” é composto pela estagnação, isto é, crescimento limitado, em torno de 2–3% ao ano, sem transformações estruturais, e pela desigualdade com riqueza financeira concentrada em poucos, sustentada por juros altos e concentração patrimonial.
O pacto social implícito se dá pela classe trabalhadora receber estabilidade mínima, via emprego e programas sociais, e pela classe média se beneficiar da estabilidade nominal e acesso ao crédito. Rentistas e elites financeiras são os grandes ganhadores, com juros reais altíssimos.
A questão histórica está nessa “rolagem do dinheiro” pelos diversos agentes (Estado, famílias, empresas, bancos, transnacionais) gerar um “equilíbrio” estável, mas de baixa transformação. É benéfico para todos em alguma medida, mas profundamente assimétrico: assegura inclusão mínima e paz social, enquanto bloqueia a possibilidade de um desenvolvimento mais robusto.
Nos países ricos, essa combinação se deu após a consolidação de sociedades já industrializadas e urbanizadas. No Brasil, ela ocorre antes de completar sua transição estrutural, gerando uma espécie de “estagnação prematura”.
Portanto, o modelo econômico brasileiro recente pode ser lido como uma “estagdesigualdade”, uma ordem de estabilidade conservadora, capaz de combinar baixa inflação e pleno emprego relativo com crescimento medíocre e concentração financeira. É um pacto informal porque garante governabilidade e legitimação social, mas impede transformações estruturais e mantém o país preso à condição periférica.
Como “pé-de-página”, para ilustrar os efeitos políticos dos benefícios sociais, vale registrar “a reação dos reacionários”: eles se contrapõem ao estado presente, e consequentemente às mudanças re-evolucionárias, sociais e políticas. Nesse sentido, entende-se como reação o conjunto de forças atuantes no sentido de retorno ao estado anterior.
O empresário Luciano Hang, dono das lojas Havan e apoiador do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), golpista julgado e condenado à prisão, voltou a atacar o Bolsa Família em uma publicação nas redes sociais. A fala ecoa o discurso de Ricardo Castellar de Faria, conhecido como “Rei do Ovo” e dono da Global Eggs, porque também criticou os beneficiários do programa social por supostamente recusarem ofertas de emprego explorador.
Segundo o Diário Centro do Mundo, “a maioria dos beneficiários gostaria de ter trabalho formal, mas enfrenta barreiras como falta de vagas, baixa escolaridade, transporte e creches. A ideia de o Bolsa Família substituir a renda de um emprego também é distorcida. O valor médio do benefício gira em torno de R$ 680 por família, um montante sem cobrir o custo de vida, mesmo nas cidades do interior. Além disso, o benefício é suspenso caso a renda familiar ultrapasse o limite. Contradiz a tese de as pessoas preferirem o auxílio ao trabalho”.
*Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Brasil dos bancos (EDUSP). [https://amzn.to/4dvKtBb]
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