Fernando Pessoa: poesia e filosofia

Sergio Sister, 1970, hidrografica,crayon oleoso sobre papel, 32 x 44 cm
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Por BENEDITO NUNES*

O poeta manteve a metafísica como interpelação dramática do ser

A poética de Fernando Pessoa, que absorveu diversos ingredientes teóricos, conforme nos mostrou Georg R. Lind[i], está em grande parte subscrita pelos heterônimos, e foi (excetuado o paulismo, anterior a Orpheu) em grande parte elaborada ou em função deles ou paralelamente a eles, como nos casos do Interseccionismo e do Sensacionismo.

Para nos limitarmos às linhas principais que interessam a este estudo, podemos dizer que essa poética se desenvolveu para cima, até o plano mais geral duma estética ou filosofia da arte, e para baixo, até o plano duma reflexão, ao mesmo tempo psicológica, estética e gnosiológica sobre a sinceridade e o fingimento. No meio, acompanhando o processo de desdobramento do próprio poeta e de sua obra (a cena heteronímica), encontram-se a doutrina dos graus da poesia lírica e uma Psicologia da Criação.

O primeiro grau da poesia lírica é a concentração dos sentimentos, de expressão espontânea ou reflexiva, em geral monocórdica; o segundo é o grau da dispersão dos sentimentos personalizados, adquirindo, como na poesia de Swinburne, “tão monocórdio no temperamento e no estilo”[ii], o estado de personalidades múltiplas que se exprimissem diferentemente; no terceiro, sob o foco da inteligência que produz reflexivamente o distanciamento de sentimentos antes apenas expressados em diversas tonalidades pessoais, a dispersão se torna puramente imaginária, a tal ponto que desaparece a unidade de temperamento; e no quarto grau, finalmente, a unidade de estilo desaparece na existência ficta de um ou de vários personagens que, diferentes do poeta, já não são ele mesmo, com ele se defrontando como seres outros. Conclui Fernando Pessoa: “E assim se terá levado a poesia lírica – ou qualquer outra forma literária análoga em sua substância à poesia lírica – até à poesia dramática, sem, todavia, se lhe dar a forma do drama, nem explícita nem implicitamente” [iii].

Como se vê, esses graus são etapas no caminho do lírico ao dramático. Além disso, fixam uma tipologia do lirismo, mais classificatória dos poetas segundo as suas espécies representativas do que segundo as modalidades de expressão lírica objetivamente consideradas. De valor desigual, tais modalidades também se distinguem, conforme o papel desempenhado pela sensibilidade, pela inteligência e pela imaginação, por traduzirem escalas de realização individual e histórica do fenômeno poético.

Não será difícil reconhecer nos dois primeiros graus da poesia lírica, “em que o poeta concentrado no seu sentimento exprime esse sentimento”, o processo romântico que Fernando Pessoa descreveu num dos seus apontamentos[iv]. E muito menos difícil será reconhecermos nos dois últimos, acessíveis aos poetas de tipo reflexivo, em oposição aos de tipo instintivo, espontâneo ou romântico, o trabalho coordenado da imaginação e da inteligência, presente, em certa medida, no processo clássico, capaz de atingir, eliminando da emoção o elemento individual e transformando o lírico em dramático, a poesia por excelência.

É fora de dúvida que Fernando Pessoa repensou criticamente a poética do Romantismo e do Simbolismo. A sua conceituação de poema lírico, média das muitas definições que os seus papéis registram, devolve-nos, corrigida e ampliada, à conceituação de Wordsworth, segundo a qual a poesia é emoção recolhida na memória, conforme o prefácio às Lyrical Ballads: “A composição de um poema lírico deve ser feita não no momento da emoção, mas no momento da recordação dela. Um poema é um produto intelectual, e uma emoção, para ser intelectual, tem, evidentemente, porque não é, de si, intelectual, que existir intelectualmente. Ora a existência intelectual de uma emoção é a sua existência na inteligência – isto é, na recordação, única parte da inteligência, propriamente tal, que pode conservar uma emoção” [v].

Numa passagem de seu Erostratus, Fernando Pessoa classificou entre as emoções capazes de produzir grande poesia aquelas que são falsas, porque sentidas no intelecto[vi]. São emoções que se produzem com o poema, construídas, tal como este, por um trabalho intelectual de que participam a imaginação e a inteligência lógica propriamente dita. À primeira, o poeta chamou, num esboço de carta a Adolfo Rocha [Miguel Torga], de “intelectualização direta e instintiva da sensibilidade”; à segunda, de reflexão crítica sobre essa intelectualização [vii].

Quer isso dizer que reflexão e construção, inseparáveis, dominam a gênese e abrangem o resultado do fenômeno poético. Do ponto de vista dessa operatória reflexivo-construtiva, uma só para a poesia ortônima e para os heterônimos – não sendo estes jamais adjacentes à obra poética, mas figuras integrantes dela –, nem a experiência do poeta existe independentemente da formação do poema, nem o poema existe independentemente dessa experiência que o forma.

Já nos encontramos aqui nos limites da poética com a estética. A mesma operatória que o poeta sentimental desconhece, e que condiciona os graus mais elevados de lirismo, determinaria a diferente altura das artes, umas superiores, outras inferiores. Uma arte é tanto mais elevada quanto maior a predominância na sua forma dos elementos de abstração da matéria sensível[viii]. Artes inferiores são as que, como o canto e a dança, se destinam a entreter; as superiores, que educam permanentemente, influem na evolução espiritual do homem, que atuam sobre a sensibilidade e a inteligência, quer por meio de formas concretas, como a pintura, a escultura e a arquitetura, quer por meio de formas abstratas, como a música, a literatura e, the last but not the least, a filosofia.

Parece que estamos a escutar em tudo isso o refrão da estética de Hegel: a arte a serviço das necessidades do espírito. E ainda de mais nítido timbre hegeliano se torna essa classificação quando constatamos que ela inclui a filosofia, e quando o seu autor nos diz que toda arte, seja qual for o seu lugar natural, deve tender para a abstração das artes maiores, isto é, para a literatura depois da música, e para a filosofia depois da literatura.

As artes não aspiram assim à condição da música. Até a música, nessa réplica ao Simbolismo, aspira à condição de literatura. “Toda arte é uma forma de literatura”, registrou Álvaro de Campos, em “Outra Nota ao acaso”[ix]. Mas a inclusão da filosofia entre as artes e a sua consequente redução à literatura, da qual apenas se distinguiria como “exercício do espírito em se figurar mundos impossíveis”[x], não é casual e muito menos um capricho desse provocador de ideias, que foi provocado pela filosofia até o fim de sua vida. “Eu era”, disse ele, “um poeta impulsionado pela filosofia, não um filósofo dotado de faculdades poéticas” [xi].

Fernando Pessoa dedicou, porém, à filosofia, como um discípulo atento de pensadores que estudou e comentou, um grande número de anotações, esboços, artigos e ensaios. Vemo-lo percorrer, às vezes por conta dum personagem – “António Mora” ou “Rafael Baldaia” – e tendo à mão o mapa do idealismo, traçado de Descartes a Kant, e de Kant a Hegel, o roteiro clássico das questões metafísicas, que partem do problema do ser e que sempre voltam para ele.

Pragmatista com António Mora, ele admite a finalidade utilitária da ciência desviada pelo antropomorfismo da filosofia[xii]. A ciência apenas serve a vida, sem penetrar o mundo exterior, e a filosofia contenta o espírito, sem penetrar a consciência. Mas esse leitor de Kant, que se detém no exame da diferença entre fenômeno e númeno, rebela-se contra o relativismo crítico em nome da “vontade de pensar profundamente”; e, sabendo que a verdade metafísica comporta uma exigência de Absoluto, acha que o caminho da filosofia deve “partir do desconhecido no conhecido para o desconhecido em si mesmo” [xiii].

Destacam-se determinadas tendências ou simpatias na especulação filosófica do nosso poeta. Inclinado a um monismo da consciência, desconfia ao mesmo tempo do espiritualismo substancialista, e assume, perante a religião e a lógica, uma atitude pragmático-vitalista, mais afinada com Nietzsche do que com William James. Outrossim, os problemas da consciência e do ser catalisam, como duas constantes, as investigações desse autodidata rigoroso dominado pelo pathos da negação e da contradição. Pela amplitude que alcançou, até em contos policiais, e sobretudo em O Banqueiro Anarquista, esse pathos da negação e da contradição condicionou-lhe a forma de pensar, e impôs ao tratamento das questões metafísicas, quando delas se ocupou, um singular radicalismo, que combina a atitude cética ou agnóstica com o princípio da transcendência.

Bastar-nos-ia, para ilustrar esse radicalismo, trazer à baila, fora das coletâneas de textos filosóficos de Fernando Pessoa, a sua “Arte de Raciocinar”, onde o detetive Quaresma, ao desenvolver toda uma análise do conhecimento, mostra que há, acima da inteligência concreta do cientista e da inteligência abstrativa do filósofo, um terceiro tipo, em nome do qual se podem criticar tanto os pressupostos da ciência como as abstrações da filosofia especulativa. É uma inteligência eminentemente negadora e negativa, ainda filosófica, que converte, porém, toda afirmação em negação, e que faz da filosofia uma não-filosofia. Estabelecer antíteses, firmar contradições, sem deter-se no balanço kantiano das antinomias ou sem avançar até à síntese hegeliana, negar os contrários ou afirmá-los ao mesmo tempo, gerando o paradoxo – eis os princípios da magna arte da negação do filósofo, que ele próprio assim resumiu à guisa de provável introdução a escritos que considerou como portadores de contra-opiniões e exercícios de desmascaramentos: “À certeza com que cada um pensa convém opor a certeza com que se pode pensar o contrário, com que se consegue tornar lógico o absurdo” [xiv].

Nessa linha que caracteriza o seu radicalismo, e que veio a chamar ora de niilismo, ora de agnosticismo transcendental, Fernando Pessoa exercitou-se em desmantelar a objetividade do conhecimento e os critérios de verdade. Se por um lado mantém a exigência de Absoluto, por outro o conceito de Verdade, submetido a uma análise desagregadora que o desliga dos critérios tradicionais da adaequatio rei et intellectus ou da concordantia idearum, torna-se, menos do que um ideal da Razão no sentido kantiano, “uma ideia ou sensação nossa não sabemos de quê, um significado portanto sem valor, como qualquer outra sensação nossa” [xv]. Assim parece-lhe que a metafísica se reduz a um único problema: o do conhecimento, cujos termos, sujeito, objeto e relação, constituem limites ontológicos insuperáveis à verificação de qualquer verdade e prejudiciais ao estabelecimento da certeza, que tem “caráter puramente subjetivo” [xvi].

Por vezes, o radicalismo intelectual de Fernando Pessoa, com o torniquete lógico de sua análise, lembra, ao recomendar que se poupem esforços para exprimir o que é desconhecido [xvii], ou para formular problemas que não podem ser resolvidos, as intenções terapêuticas da filosofia de Wittgenstein: “O problema da eternidade e infinidade do mundo não pode pôr-se, porque não temos elementos para o resolver” [xviii]. Mas sendo afinal o Desconhecido o Absoluto, que nos assombra através da Metafísica e da Religião, seus mediadores, impossível é contentarmo-nos com a partilha das verdades propostas pelo sensato relativismo de Spencer, que ainda se deposita nessas conceituações do nosso poeta. Interstício entre erro e erro, manifesta de erro a erro, a Verdade é um valor deceptivo diante do Absoluto, que condena todas as ideias à insuficiência, emprestando-lhes o caráter de ficção. Indeterminável ele próprio, o Absoluto também é fictício.

Como nada há que possibilite distinguir a realidade do conjunto de suas aparências, Rafael Baldaia poderá escrever em seu Tratado de negação: “Toda a criação é ficção e ilusão. Assim como a Matéria é uma ilusão, provadamente, para o Pensamento; o Pensamento uma ilusão para a Intuição; a Intuição uma ilusão para a Ideia Pura; a Ideia Pura é uma ilusão para o Ser. E o Ser é essencialmente Ilusão e Falsidade. Deus é a Mentira Suprema” [xix].

Nessa perspectiva dum ficcionalismo à outrance, ajusta-se, a nosso ver, o ocultismo daquele que se disse “cristão gnóstico”, e próximo tanto da Santa Kabbalha quanto da essência da Maçonaria e da Alquimia. Os infinitos mundos, os graus da hierarquia e de aperfeiçoamento, a distância menor entre o homem e os deuses, a distância maior entre os deuses e a divindade – todos esses itens duma crença da qual Fernando Pessoa se confessou adepto, e que transparece em outra porção do texto de Rafael Baldaia antes citado –, todos esses pontos de doutrina, que integrariam, como objeto de revelação para os iniciados, as múltiplas escalas do Ser, também modularam a dialética sem síntese dos erros e da verdade, remetendo-nos, de aparência em aparência, a uma realidade que se desfolha a partir dum centro permanentemente oculto.

Para o “raciocinador minucioso e analítico” [xx], que necessitava tudo compreender até “às fezes da compreensão”, o ocultismo teria sido a vivência do ocultamento do sentido das coisas e da existência. O místico e o metafísico que nele havia voltaram-se para uma transcendência que era vazia além de oculta, embora sustentada na própria consciência, à qual Fernando Pessoa concedeu o status privilegiado de fato metafísico puro, cujo ser, incondicionado e indeterminado, aproxima-se do “pour-soi sartriano.

A consciência, que não pode ser conhecida, sob pena de transformar-se em objeto, modifica-se na forma reflexiva. Não há uma “consciência consciente de si própria”, uma consciência que se conheça e que se converta em objeto para si mesma. Mas, a despeito disso, o ser da consciência padece de desdobramento interno. A reflexividade toma dianteira, encobrindo a consciência com a pseudoidentidade do sujeito reflexivo. “Self-consciousness is the bipartition of self into 2: subject and object”, escreveu Fernando Pessoa numa de suas anotações filosóficas [xxi]. Passaria, dessa maneira, pelo arco do desdobramento reflexivo, trazendo para o interior a rotação entre aparência e realidade que domina o mundo exterior, a imagem objetificada do sujeito humano que, analogamente ao “pour-soi” de Sartre, é um misto de ser e de não-ser. Por fim, para empregarmos categorias que podemos encontrar tanto nos sonetos em inglês como na poesia ortônima e heterônima, nossa existência se conjuga na diferença ontológica impreenchível, que os heterônimos poéticos intensificam, reabrem ou tentam suprimir, entre ser e ter, entre o Eu que temos e aquilo que somos, entre o proprius e o alter, o Eu e o Outro.

Conclui o poeta num outro esboço: “Tudo é ilusão. A ilusão do pensamento, a do sentimento, a da vontade. Tudo é criação e toda a criação é ilusão. Criar é mentir. Para pensar o não-ser criamo-lo, passa a ser uma coisa. Todos os que pensam ocultisticamente criam em absoluto todo um sistema do universo, que fica sendo real. Ainda que se contradigam: há vários sistemas do universo, todos eles reais” [xxii].

Somente a consciência subsiste na ilusão geral que implanta a cisão do subjetivo e do objetivo, que separa o ser e o não-ser – no entanto idênticos quando o pensamento os considera – e que descentra o real numa série de aparências. Consequentemente, todo sentido que se origina da consciência é um sentido fictício; existe como possibilidade e jamais como realidade. É criação e mentira. Com isso, o vitalismo nietzschiano enxerta-se no pensamento de Fernando Pessoa.

Ao explicar A Origem da Tragédia, num dos rascunhos para a sua obra em projeto, A Vontade de Poder (Der Wille zur Macht), que ficou inconclusa, Nietzsche afirmava que falta ao pessimismo maligno de seu primeiro grande livro a oposição entre mundo aparente e mundo verdadeiro. Só há um mundo verdadeiro, que é falso, cruel, contraditório, sedutor, carente de sentido (ohne Sinn). Na perspectiva do niilismo – a desvalorização de todos os valores – como extremo limite do processo cultural-histórico que sapou, com o arcabouço do pensamento ocidental, metafísico em sua origem e em sua evolução, o vínculo platônico da verdade, ligando a ordem superior e visível das essências ao mundo inferior e visível das aparências, tornou-se necessário inventar, criar e por conseguinte mentir para se poder viver.

“Que se necessita da mentira para viver é mais um aspecto do caráter pavoroso e problemático da existência (fürchtbaren und fragwürdigen Charakter des Daseins)” [xxiii]. A ciência, a religião e a metafísica querem manter a imagem da verdade, e por isso mentem com a má-fé daqueles que se arrogam a ostentar o que não possuem. A mentira leal, e por isso paradoxalmente verdadeira, é a arte como afirmação trágica. Em vez de ocultar a verdade que não há, ela afirma a sua “vontade de aparência, de ilusão e de ficção”. E constitui assim o único movimento possível dentro do niilismo e contra o niilismo. Nessas condições, a aparência deixa de significar apenas a negação do real; e a verdade, que se torna aparência, assume uma nova significação. “Chez Nietzsche”, resume Deleuze, “nous les artistes = nous les chercheurs de connaissance ou de verité = nous les inventeurs de nouvelles possibilites de vie” [xxiv].

Ao filósofo e ao poeta, compartindo do sentimento trágico – amor fati – pela aceitação das aparências, restaria, para a busca do conhecimento e da verdade, a ambos comum, sub species artis, a tática oblíqua de, criando novas possibilidades de vida ou novas possibilidades de ser, fingir que o homem compreende o mundo e se compreende a si mesmo. A mentira vital nietzschiana conduz-nos ao fingimento, à mentira artística do lirismo do nosso autor. Tematizado principalmente pelo Fernando Pessoa “impuro e simples” do Cancioneiro, o fingimento, que nos leva de volta ao problema do conhecimento, da verdade e do ser, no âmago da criação poética, é o elo que liga poesia e filosofia na obra desse extraordinário artista.

Segundo os conhecidos versos de “Autopsicografia”, o poeta é um fingidor, e tanto mais poeta é quanto mais completamente finge os seus sentimentos e pensamentos, alcançando a sinceridade por meio da insinceridade. Índice da suspensão, da transformação e da construção da experiência na linguagem, sinal daquilo que Fernando Pessoa também chamou de distanciamento, o fingimento, que será assim um artifício da sinceridade, e como tal desempenhando função estética, tem, por isso mesmo, como já notara Jorge de Sena [xxv], um significado não-ético e mais do que psicológico-empírico: um significado gnosiológico e ontológico, a partir do questionamento em torno da consciência reflexiva.

Ninguém sabe o que verdadeiramente sente, afirmou o agudíssimo poeta, o qual, completando esse seu corte psicanalítico-existencial em defesa da sinceridade artística (que não se dá na emoção como crê o artista inferior), acrescentava que “é possível sentirmos alívio com a morte de alguém querido, e julgar que estamos sentindo pena, porque é isso que se deve sentir nessas ocasiões”[xxvi]. A sinceridade psicológica é insincera porque pressupõe, aliás num ato de má-fé, a impossível fixidez dos sentimentos que, sempre mutáveis e sempre modificados pela reflexividade, só se estabilizam quando se convencionalizam, passando a figurar no sentimentário dum “caderno de encargos” à conta do Eu em que nos objetivamos.

O Eu, instância objetificante, mascara o lugar desse Outro em que podemos tornar-nos – desse Outro que, como posse da subjetividade alheia, Fernando Pessoa exteriorizou em seus heterônimos, os quais lhe permitiriam enriquecer-se “na capacidade de criar personalidades novas, tipos de fingir que compreendo o mundo, ou, antes, de fingir que se pode compreendê-lo”[xxvii]. Não nos diz Fernando Pessoa outra coisa em diversos poemas seus: “Ser um é cadeia. / Ser eu é não ser. / Viverei fingindo / Mas vivo a valer.”; “Sempre serás o sonho de ti mesmo / Vives tentando ser.”; “Sou já quem nunca serei / Na certeza em que me minto” [xxviii].

Quando, pois, Fernando Pessoa escreveu que “fingir é conhecer-se”, não estava apenas indicando um modo de contornar as falsificações da vida interior, os disfarces da consciência reflexiva, as máscaras de que ela se reveste. Ao mesmo tempo expressão duma ironia trágica, que aceita consagrar as aparências, esse fingimento, autognose negativa, antisocrática e anticartesiana, mediando a vitória sobre a sinceridade do poeta ingênuo e do poeta sentimental (e a sinceridade desse tipo é o “grande obstáculo que o artista tem que vencer”), constitui a única atitude consequente em face do ser que reclama a palavra do artista.

O fingimento interessa ao poeta enquanto poeta, isto é, enquanto agende da poiesis, que cria ou dá forma na linguagem a uma possibilidade de ser. Esta é a sua liberdade e a sua verdade. “Quero ser livre insincero / Sem crença, dever ou posto”. Entregue à palavra fundadora, é livre para traduzir-se, e é insincero para tornar-se outro: “Seja eu leitura variada / Para mim mesmo”. Mas essa leitura, essa legibilidade do ser, está condicionada pela escrita que a precede.

Fernando Pessoa revelou-se, numa de suas notas críticas, sensível ao poder tortuoso da escrita: “Falar é o modo mais simples de nos tornarmos desconhecidos. E esse modo imoral e hipócrita de falar a que se chama escrever, mais completamente nos vela aos outros e àquela espécie de outros a que a nossa inconsciência chama nós-próprios” [xxix].

Por isso deve ser considerado aqui, como parte essencial do fingimento de Fernando Pessoa, o mecanismo conversor e transformador da escrita, na medida em que, revelando e ocultando, é nesse mecanismo, campo aberto da diferença dos signos, que se processa, pela irredutibilidade dos significantes aos significados, tanto a evasão quanto a construção do sentido das coisas e do próprio sujeito lírico. Aí, na escrita, word or book para o primeiro dos 35 Sonnets, o sujeito que se forma e se transforma, que se expõe e se dissimula, fingindo para poder ser, participa da engrenagem dum jogo estético e cognoscitivo.

Na Psicologia da Criação, que ocupa, conforme vimos, a camada intermediária da teoria poética de Fernando Pessoa, a imaginação aparece entre a sensibilidade e a razão. Ela é mesmo considerada “uma combinação de emoção e razão, tendo o caráter não-rígido da emoção (a mildness), e a frieza da razão” [xxx]. Devido ao seu papel na síntese da experiência, a imaginação foi, para Kant, a fiadora do “livre jogo das faculdades representativas” [xxxi] (des freien Spiels der Vorstellungskräfte) correspondente ao juízo estético, livre jogo que, sem ser conhecimento objetivo, exerce-se contudo como se conhecimento fosse. Poder-se-á dizer que se trata dum jogo que finge conhecer, que é a possibilidade ficta de conhecimento.

Nesse sentido, o fingir para conhecer-se de Fernando Pessoa é um ato eminentemente lúdico, delineando um campo racional-imaginário, em que compreender o mundo, questionar o ser, investigar a verdade, por um lado, e dizer as coisas, expressar-se e traduzir-se, por outro, entrançam-se na unidade movente duma só poiesis. Uma vez que conhecer é criar e criar a única maneira de conhecer e de ser, na suspensão das crenças e pressupostos, autorizada pelo niilismo transcendental do filósofo e corroborada pelo fingimento do poeta, a criação poética, feita instrumento de compreensão, e a especulação filosófica, feita linguagem fundadora, se complementam.

Não quer isso dizer que Fernando Pessoa tenha sido poeta como filósofo e filósofo como poeta. Apenas sucede, fato de importância grave, que a questão, relativamente à obra de Fernando Pessoa, não pode mais ser colocada nesses termos, posto que essa obra, herdeira do esteticismo de Nietzsche, já participa, em larga escala, do entrelaçamento, hoje consumado na cultura intelectual do Ocidente, paralelamente à crise da metafísica, da literatura com a filosofia.

Seria um erro procurar para a obra poética do grande escritor uma doutrina filosófica, um sistema de pensamento interna ou externamente elaborados, ou como súmula de ideias que ela secretasse por dentro, ou como armação intuitiva e conceitual que a fundamentasse por fora. Nela, o encontro e o confronto do poético e do filosófico começam a produzir-se rompendo com os moldes tradicionais, descerrando-nos um aspecto daquela situação intelectual da filosofia como obra escrita, e portanto da filosofia como gênero literário, que Paul Valéry registrou nos seus Cadernos – e que aqui somente podemos referir [xxxii].

Dessa maneira a tese, esposada por António Mora e por Álvaro de Campos, e formulada de vários modos e em diversas ocasiões, da filosofia-obra de arte ou da metafísica enquanto atividade artística, merece todo o respeito que se deve a uma ideia integrante da mesma situação intelectual, além de ser expressão acabada da ironia, diga-se, filosófica, de Fernando Pessoa.

Fazer da metafísica “metafísicas várias, buscando arranjar sistemas do universo coerentes e engraçados” ou, ainda, nos termos do Ultimatum, fazer do filósofo “um artista do pensamento”, são expressões da mesma necessidade de criar uma compreensão do mundo que já não nos proporciona o uso puro e simples do discurso filosófico.

Considerando isso tudo, a metafísica está para a poesia, na obra de Fernando Pessoa, longe da relação de parentesco que Schelling viu e que faria das duas, uma como intuição e outra como dedução, formas equivalentes do Absoluto. Nem apenas representa o que foi para Marvell ou Donne: a presença dum pensamento abstrato, estimulador da experiência poética [xxxiii]. Sem o resguardo duma concepção totalizadora, como as que ainda pôde elaborar Antero de Quental no século passado, o criador dos heterônimos, que só dispôs, em matéria de certeza, por via do ocultismo, dum arrimo neoplatônico – e ainda assim carcomido pelo pathos da negação e da contradição –, foi um poeta metafísico, mas já comprometido com a crise da metafísica que marca o pensamento atual.

Rejeitando-a e aceitando-a ao mesmo tempo, o poeta português manteve a metafísica como interpelação dramática do ser. E tanto mais dramática foi essa interpelação quanto mais a obra poética de Fernando Pessoa interiorizou, na linguagem, o movimento mesmo da errância do ser, que se oculta nos simulacros, nas máscaras, que de si mesmo revela sem nunca desencobrir-se totalmente: “Do eterno erro na eterna viagem / O mais que exprime na alma que ousa / É sempre nome, sempre linguagem / O véu e a capa de uma outra coisa”.

Possíveis modos de ser e de compreender o mundo, os Outros que Fernando Pessoa projetou fora de si, no espaço imaginário dum diálogo – dum teatro sem drama ou dum drama sem teatro, no dizer de Álvaro de Campos –, nada mais foram, à semelhança do autor que os criou e que deles se fez ator – e nisso está a ironia trágica do desdobramento – senão o disfarce da realidade insondável e profunda, máscara sobre máscaras, modelando os indivíduos e a eles estranha. “Tudo o que é profundo gosta de mascarar-se”, reza o aforismo de Nietzsche que pode servir de introito à poesia da metafísica em crise de Fernando Pessoa.

*Benedito Nunes (1929-2011), filósofo, Professor Emérito da UFPA, é autor, entre outros livros, de Crivo de papel (Ática).

Publicado originalmente na Revista Colóquio/Letras, no. 20, julho de 1974.

Notas

[i] Georg Rudolf Lind, Teoria Poética de Fernando Pessoa, Porto, Editorial Inova, Ltda.

[ii] “Os Graus da Poesia Lírica”, in Páginas de Estética e de Teoria e Crítica Literárias, textos estabelecidos e prefaciados por G. R. Lind e Jacinto do Prado Coelho, Lisboa, Edições Ática, p. 68, e Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação, textos estabelecidos e prefaciados por J. do P. Coelho e G. R. Lind, Lisboa, Edições Ática, pp. 106-9.

[iii] Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação, p. 107.

[iv] Páginas de Doutrina Estética, seleção, prefácio e notas de Jorge de Sena, Lisboa, Editorial Inquérito, pp. 350-352.

[v] Páginas de Estética e de Teoria e Crítica Literárias, p. 72. Sublinhado meu.

[vi] Ibid., p. 267.

[vii] Ibid., pp. 69-72.

[viii] Apresentação da ver. Athena, in Páginas de Doutrina Estética, p. 121.

[ix] Páginas de Doutrina Estética, p. 289.

[x] Ibid., p. 129.

[xi] Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação, p. 14.

[xii] António Mora, “Introdução ao Estudo da Metafísica – Princípios Basilares, in Textos Filosóficos, estabelecidos e prefaciados por António de Pina Coelho, Lisboa, Ed. Ática, vol. I, pp. 7-9.

[xiii] Textos Filosóficos, vol. I, p. 20.

[xiv] Ibid., vol. I, pp. 3-4.

[xv] Ibid., vol. II, p. 220.

[xvi] Ibid., vol. II, p. 249.

[xvii] Ibid., vol. II, p. 235.

[xviii] Ibid., vol. II, p. 70.

[xix] Ibid., vol. I, p. 42.

[xx] Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação, p. 74.

[xxi] Textos Filosóficos, vol. II, p. 183.

[xxii] Ibid., vol. I, p. 44.

[xxiii] Nietzsche, “Die Kunst in der Geburt der Tragedie”, Werke, p. 691, III, Carl Hanser Verlag.

[xxiv] Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, p. 117, Presses Universitaires de France.

[xxv] Páginas de Doutrina Estética, p. 348.

[xxvi] “Nota ao acaso”, in Páginas de Doutrina Estética, p. 285.

[xxvii] Carta a Casais Monteiro em 20/1/1935, in Páginas de Doutrina Estética, p. 275.

[xxviii] Nos versos de Fernando Pessoa citados neste artigo cingimo-nos à edição da Obra Poética (organização e notas de Maria Aliete Dores Galhoz, Rio de Janeiro, Editora José Arguilar, Lda., 1960).

[xxix] Páginas de Estética e de Teoria e Crítica Literárias, p. 42.

[xxx] Ibid., p. 124.

[xxxi] Kant, Kritik der Urteilskraft, § 9º.

[xxxii] Cf. Derrida, Qual Quelle, Marges de la philosophie, p. 349, Les Editions de Minuit.

[xxxiii] T. S. Eliot, “The metaphysical Poets”, in Selected Essays, p. 287, Faber and Faber, London.

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