Gaza: o que virá depois de um cessar-fogo provisório?

image_pdf

Por PAULO SÉRGIO PINHEIRO*

Nenhum crime pode ser interrompido com data marcada para continuar

Passados cinco meses de bombardeios maciços e operações militares terrestres de Israel, resultando em mais de 30 mil mortes de palestinos, entre as quais 10 mil crianças, a Faixa de Gaza tornou-se um campo de ruínas. Além da destruição de seis hospitais e 12 universidades, tudo o que dizia respeito à vida social foi arrasado: mesquitas, tribunais, escolas, arquivo histórico, museus, centros culturais. A infraestrutura civil de água, esgoto e eletricidade também foi aniquilada.

As ordens militares de evacuação da população resultaram em deslocamento forçado do norte para o centro, logo alvo de bombardeios, para o sul e, dali, para Rafah – agora também sob ataque.

Todo esse quadro é agravado por impedimentos, por parte dos israelenses, para a distribuição de ajuda humanitária – apesar de uma das medidas provisórias impostas pela Corte Internacional de Justiça (CIJ) ter obrigado Israel a facilitar o acesso do apoio internacional à região.

O volume de ajuda humanitária entrou em colapso em razão dos ataques de Israel a policiais – suspeitos de serem militantes do Hamas – que vigiam os comboios. Nas últimas semanas, 62 caminhões entraram em Gaza – bem abaixo dos 200 por dia que Israel se comprometera a liberar, ainda que se estime que para atender às necessidades básicas da população seriam necessários 500 veículos.

Há piquetes de civis israelenses, compostos inclusive por mulheres e adolescentes, muitos deles com machadinhas e cortadores de caixas, que atacam os comboios a pretexto “de impedir que a ajuda vá para o Hamas”. O ministro da Segurança Nacional, Ben-Gvir, indicou que a polícia não iria reprimir protestos bloqueando o acesso dos caminhões.

Apesar das tentativas de dissuasão por parte dos aliados ocidentais, o primeiro-ministro, Binyamin Netanyahu, promete que Israel atacará Rafah depois de evacuar 1 milhão e meio de refugiados. Mas qualquer ordem de evacuação nas presentes condições na região – sem abrigo, comida, água e atendimento médico – provocaria sofrimentos cruéis e seria uma flagrante violação do direito internacional humanitário e dos direitos humanos.

Os aliados ocidentais de Israel, diante desse quadro humanitário horrífico, reafirmam mais uma vez o direito de defesa do país de atacar o Hamas, ainda que essa defesa tenha se constituído na retaliação contra a população civil em Gaza. Imersos numa enorme contradição, esses países começaram a cobrar de Israel a proteção aos civis palestinos, a entrada da ajuda humanitária e, ainda, a proposta de um cessar-fogo de seis semanas. Dessa forma, iniciaram o lançamento de ajuda fundamental básica por aviões, como também anunciaram uma rota marítima com a construção de um píer flutuante, permitindo assegurar o fornecimento regular. Calcula-se, porém, que esse porto deverá levar dois meses para ser construído.

Depois de serem vetadas no Conselho de Segurança da ONU todas as resoluções impondo um cessar-fogo (inclusive as do Brasil), os aliados de Israel negociam com os países árabes, que têm acesso ao Hamas, um cessar-fogo de seis semanas – sem muito sucesso até este começo do Ramadã.

A pergunta obrigatória é: o que vai acontecer caso se realize esse cessar-fogo provisório de seis semanas? Israel vai bombardear Raffah? Continuará a desrespeitar as medidas provisórias ditadas pela Corte Internacional de Justiça, não protegendo os palestinos de Gaza de atos de genocídio, como o deslocamento forçado da população, a privação do acesso à comida e água e a obstrução de ajuda humanitária, incluindo combustíveis, abrigo, roupas e higiene? E quanto à destruição da vida dos palestinos em Gaza?

Não há nada mais macabro e cruel que uma pausa de atos de genocídio com prazo marcado de antemão para sua continuidade. Todos os Estados-membros da ONU que respeitam o direito internacional, incluindo o Brasil, devem tomar medidas para que esse cessar-fogo seja permanente. Nenhum crime pode ser interrompido com data marcada para sua continuidade.

*Paulo Sérgio Pinheiro é Professor Émerito da FFLCH (USP) e da Unicamp; ex-ministro dos Direitos Humanos. Autor, entre outros livros, de Estratégias da ilusão: a revolução mundial e o Brasil, 1922-1935 (Companhia das Letras) [https://amzn.to/3TVJQdF]

Publicado originalmente no jornal Folha de S. Paulo.


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
O segundo choque global da China
06 Dec 2025 Por RENILDO SOUZA: Quando a fábrica do mundo também se torna seu laboratório mais avançado, uma nova hierarquia global começa a se desenhar, deixando nações inteiras diante de um futuro colonial repaginado
2
Simulacros de universidade
09 Dec 2025 Por ALIPIO DESOUSA FILHO: A falsa dicotomia que assola o ensino superior: de um lado, a transformação em empresa; de outro, a descolonização que vira culto à ignorância seletiva
3
A guerra da Ucrânia em seu epílogo
11 Dec 2025 Por RICARDO CAVALCANTI-SCHIEL: A arrogância ocidental, que acreditou poder derrotar a Rússia, esbarra agora na realidade geopolítica: a OTAN assiste ao colapso cumulativo da frente ucraniana
4
Uma nova revista marxista
11 Dec 2025 Por MICHAE LÖWY: A “Inprecor” chega ao Brasil como herdeira da Quarta Internacional de Trotsky, trazendo uma voz marxista internacionalista em meio a um cenário de revistas acadêmicas
5
Raymond Williams & educação
10 Dec 2025 Por DÉBORA MAZZA: Comentário sobre o livro recém-lançado de Alexandro Henrique Paixão
6
A riqueza como tempo do bem viver
15 Dec 2025 Por MARCIO POCHMANN: Da acumulação material de Aristóteles e Marx às capacidades humanas de Sen, a riqueza culmina em um novo paradigma: o tempo livre e qualificado para o bem viver, desafio que redireciona o desenvolvimento e a missão do IBGE no século XXI
7
A crise do combate ao trabalho análogo à escravidão
13 Dec 2025 Por CARLOS BAUER: A criação de uma terceira instância política para reverter autuações consolidadas, como nos casos Apaeb, JBS e Santa Colomba, esvazia a "Lista Suja", intimida auditores e abre um perigoso canal de impunidade, ameaçando décadas de avanços em direitos humanos
8
Norbert Elias comentado por Sergio Miceli
14 Dec 2025 Por SÉRGIO MICELI: Republicamos duas resenhas, em homenagem ao sociólogo falecido na última sexta-feira
9
Asad Haider
08 Dec 2025 Por ALEXANDRE LINARES: A militância de Asad Haider estava no gesto que entrelaça a dor do corpo racializado com a análise implacável das estruturas
10
A armadilha da austeridade permanente
10 Dec 2025 Por PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS: Enquanto o Brasil se debate nos limites do arcabouço fiscal, a rivalidade sino-americana abre uma janela histórica para a reindustrialização – que não poderemos atravessar sem reformar as amarras da austeridade
11
Ken Loach: o cinema como espelho da devastação neoliberal
12 Dec 2025 Por RICARDO ANTUNES: Se em "Eu, Daniel Blake" a máquina burocrática mata, em "Você Não Estava Aqui" é o algoritmo que destrói a família: eis o retrato implacável do capitalismo contemporâneo
12
A anomalia brasileira
10 Dec 2025 Por VALERIO ARCARY: Entre o samba e a superexploração, a nação mais injusta do mundo segue buscando uma resposta para o seu abismo social — e a chave pode estar nas lutas históricas de sua imensa classe trabalhadora
13
Impactos sociais da pílula anticoncepcional
08 Dec 2025 Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA: A pílula anticoncepcional não foi apenas um medicamento, mas a chave que redefiniu a demografia, a economia e o próprio lugar da mulher na sociedade brasileira
14
Benjamim
13 Dec 2025 Por HOMERO VIZEU ARAÚJO: Comentário sobre o livro de Chico Buarque publicado em 1995
15
Violência de gênero: além do binarismo e das narrativas gastas
14 Dec 2025 Por PAULO GHIRALDELLI: Feminicídio e LGBTfobia não se explicam apenas por “machismo” ou “misoginia”: é preciso compreender como a ideia de normalidade e a metafísica médica alimentam a agressão
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES