Guerra e estranhamento

Imagem: Kateryna Shevchenko
image_pdf

Por GIOVANNI ALVES*

A contradição final do capital revela-se quando o progresso técnico, que deveria emancipar, gera uma potência destrutiva que transforma a alternativa histórica em um dilema brutal: socialismo ou barbárie

1.

A tradução usual de Entfremdung é “alienação” ou, mais precisamente, “estranhamento”. Essa categoria foi utilizada por Hegel, Marx e pela tradição filosófico-social. Interessa-nos, porém, tratar de seu significado no pensamento de Karl Marx e em sua crítica do capital.

Para o jovem Marx, nos Manuscritos econômico-filosóficos de 1844, o trabalho estranhado [entfremdete Arbeit] descreve a condição na qual o trabalhador se vê separado do produto de seu trabalho, do próprio ato de produzir, de sua essência genérica [Gattungswesen] e de outros seres humanos. Trata-se de um conceito estrutural, que remete à lógica do modo de produção capitalista (MARX, 2010: 85).

Por exemplo: o operário produz um objeto que não lhe pertence, que se volta contra ele como mercadoria (a passagem de Sache para Ding, ou o processo de coisificação, Verdinglichung), fazendo com que ele perca o controle sobre sua própria atividade e acabe por se perceber como um estranho para si mesmo. Eis os efeitos do trabalho estranhado [entfremdete Arbeit] sobre o trabalho vivo (ALVES, 2025).

Nos Manuscritos econômico-filosóficos Marx emprega os dois termos – entfremdete Arbeit e Entfremdung , mas dá primazia a entfremdete Arbeit. O conceito central é “trabalho estranhado” (entfremdete Arbeit), embora apareça também o substantivo abstrato “estranhamento” (Entfremdung ou Entfremdung des Arbeiters, isto é, o estranhamento do trabalhador) usado para descrever a relação do trabalhador com seu produto, sua atividade e sua essência genérica (Gattungswesen).

Em 1844, Entfremdung ainda é uma categoria filosófica, ligada à essência humana, ao Gattungswesen. Em 1845–46, Marx mantém a intuição do estranhamento, mas já o trata como efeito material da divisão do trabalho e da propriedade privada, e não como drama metafísico da essência humana (influenciado por Ludwig Feuerbach).

Entretanto, o termo estranhamento [Entfremdung] voltou a aparecer nos Grundrisse, reformulado nos termos dialético-materialista da crítica da economia política (MARX, 2011: 705-706). Nele Marx retoma e aprofunda o conceito de Entfremdung a ponto de intitular uma seção específica com esse termo. Ao analisar o desenvolvimento das forças produtivas por meio do avanço tecnológico (o sistema de máquinas), Marx identifica uma contradição fundamental entre o trabalho vivo (subjetivo) e o trabalho objetivado (as condições materiais de produção).

Essa contradição é essencial para compreender a dinâmica capitalista e a exploração do trabalho assalariado. Marx destaca que, com o avanço das forças produtivas, as condições objetivas do trabalho – ou seja, os meios de produção, como máquinas, ferramentas, tecnologias (mecanização, automação, digitalização, robótica, inteligência artificial) – crescem em importância relativa em comparação com o trabalho vivo. Isso significa que, para produzir uma quantidade maior de riqueza, é necessário cada vez menos trabalho humano direto.

Em outras palavras, a produtividade do trabalho aumenta, e a riqueza social passa a ser expressa mais nas condições materiais de produção do que no trabalho humano imediato. O desenvolvimento das forças produtivas implica, assim, a anulação da subjetividade do trabalhador singular e a degradação da personalidade humana, como posteriormente destacaria Lukács na sua Ontologia do Ser Social (LUKÁCS, 2011:581).

2.

Contudo, essa relação entre desenvolvimento tecnológico e trabalho vivo não é neutra. Do ponto de vista do capital, o trabalho objetivado (como as máquinas) adquire autonomia crescente em relação ao trabalho vivo. As condições materiais de produção, criadas pelo próprio trabalho humano, convertem-se em um poder estranho e dominador sobre o trabalhador. Esse fenômeno é o que Marx denominou nos Grundrisse, estranhamento. Ele vai além da formulação filosófica da juventude e reformula em termos materialistas o termo. Marx vai reelaborando a problemática do estranhamento (Entfremdung) ao longo da sua obra, desde 1844 até 1867 (O capital).

Nos Grundrisse – como destacamos – o termo reaparece, mas já transformado: o dinheiro é a “capacidade estranhada da humanidade”, o trabalho é “estranhado” porque as potências sociais se autonomizam. Aqui Marx reformula o conceito, vinculando-o às formas econômicas objetivas (dinheiro, capital). E numa das últimas seções dos Grundrisse intitulada “Entfremdung”, o conceito de estranhamento adquire uma formulação dialético-materialista que o distingue dos Manuscritos de 1844.

Vejamos na íntegra o que diz Marx nesta seção (a longa citação é necessária para demonstrar a riqueza analítico-crítica do texto marxiano): “O fato de que, com o desenvolvimento das forças produtivas do trabalho, as condições objetivas do trabalho, o trabalho objetivado [die vergegenständlichte Arbeit], têm de crescer em relação ao trabalho vivo [lebendige Arbeit] – trata-se, na verdade, de uma proposição tautológica, pois o que significa força produtiva do trabalho crescente senão que se requer menos trabalho imediato para criar um produto maior e que, portanto, a riqueza social se expressa cada vez mais nas condições do trabalho criadas pelo próprio trabalho –, tal fato, do ponto de vista do capital, não se apresenta de tal maneira que um dos momentos da atividade social – o trabalho objetivo [objektive Arbeit] – devém o corpo cada vez mais poderoso do outro momento, do trabalho subjetivo, vivo [subjektive, lebendige Arbeit], mas de tal maneira que – e isto é importante para o trabalho assalariado – as condições objetivas do trabalho [die gegenständlichen Bedingungen der Arbeit] assumem uma autonomia cada vez mais colossal, que se apresenta por sua própria extensão, em relação ao trabalho vivo, e de tal maneira que a riqueza social se defronta com o trabalho como poder estranho e dominador em proporções cada vez mais poderosas. A tônica não recai sobre o ser-objetivado [das Vergegenständlichtsein], mas sobre o ser-estranhado, ser-alienado, ser-venalizado [das Entfremdet-, Entäussert-, Veräussertsein] – o não pertencer-ao-trabalhador, mas às condições de produção personificadas, i.e., ao capital, o enorme poder objetivado que o próprio trabalho social contrapôs a si mesmo como um de seus momentos. Na medida em que, do ponto de vista do capital e do trabalho assalariado, a geração desse corpo objetivo da atividade se dá em oposição à capacidade de trabalho imediata – esse processo de objetivação [Vergegenständlichung] aparece de fato como processo de alienação [Entfremdung], do ponto de vista do trabalho, ou de apropriação do trabalho alheio [Aneignung fremder Arbeit], do ponto de vista do capital –, tal distorção ou inversão [Verkehrung oder Umkehrung] é efetiva e não simplesmente imaginada, existente simplesmente na representação dos trabalhadores e capitalistas. Mas, evidentemente, esse processo de inversão é simplesmente necessidade histórica, pura necessidade para o desenvolvimento das forças produtivas a partir de um determinado ponto de partida histórico, ou base histórica, e de maneira nenhuma uma necessidade absoluta da produção; ao contrário, é uma necessidade evanescente [vergängliche Notwendigkeit], e o resultado e o fim (imanente) desse processo é abolir essa própria base, assim como essa forma do processo” (MARX, 2011: 705).

3.

O desenvolvimento das forças produtivas significa que menos trabalho vivo é necessário para produzir mais riqueza, que se expressa cada vez mais em condições objetivas do trabalho (máquinas, instrumentos, ciência incorporada).  Esse crescimento aparece não como fortalecimento do trabalho social contra si mesmo, mas como autonomização das condições objetivas (die gegenständlichen Bedingungen) frente ao trabalho vivo, transformando-se em poder estranho e dominante. Esse processo é caracterizado como Entfremdung (alienação/estranhamento) do ponto de vista do trabalho, e como Aneignung fremder Arbeit (apropriação de trabalho alheio) do ponto de vista do capital. Ele é uma necessidade histórica transitória (vergängliche Notwendigkeit), não absoluta, cujo resultado imanente é a abolição dessa base histórica.

Portanto, Entfremdung significa aqui não simples objetivação – isto é, Marx distingue Vergegenständlichung (objetivação) de Entfremdung. Objetivar o trabalho (transformá-lo em coisa – Sache) é próprio da atividade humana em geral. O problema é quando essa objetivação não pertence ao trabalhador, mas se torna força autônoma, hostil e dominadora. Por isso Marx escreve: “A tônica não recai sobre o ser-objetivado (das Vergegenständlichtsein), mas sobre o ser-estranhado (das Entfremdetsein)”.

Estranhamento é manifestação do processo de coisificação que caracteriza o metabolismo social do capital: a autonomização das condições objetivas, com o trabalho passado (máquinas, capital fixo, ciência) cresce em proporção ao trabalho vivo. Mas em vez de ser domínio do homem sobre a natureza, esse desenvolvimento aparece como poder social autonomizado, apropriado pelo capital. Esse poder se opõe ao trabalhador como “riqueza social” que não lhe pertence.

Aqui, Entfremdung significa a inversão real: o produto do trabalho social confronta o trabalhador como potência estranha. Marx enfatiza que esse processo de estranhamento não é uma ilusão ou uma mera construção ideológica: é uma realidade objetiva inerente ao modo de produção capitalista. Não é uma ilusão ideológica, mas uma “distorção efetiva” (Verkehrung oder Umkehrung), estrutural. O trabalhador é separado – alienado – dos meios de produção, os quais são apropriados pelo capital. O trabalho objetivado (como as máquinas) torna-se propriedade do capitalista, enquanto o trabalhador é reduzido à condição de vendedor de sua força de trabalho para sobreviver.

Marx descreve essa dinâmica como uma distorção ou inversão [Verkehrung oder Umkehrung] da relação entre trabalho vivo e trabalho objetivado. Sob o capitalismo, o trabalho vivo (o trabalhador) é subordinado ao trabalho objetivado (máquinas e meios de produção). Essa inversão constitui uma característica essencial do modo de produção capitalista e está na raiz da exploração do trabalhador.

Marx não compreende essa inversão como uma necessidade absoluta ou eterna, mas como um fenômeno historicamente determinado, surgido em um estágio específico do desenvolvimento das forças produtivas. Essa alienação não é destino eterno da humanidade. É uma necessidade transitória (vergängliche Notwendigkeit) do desenvolvimento histórico, ligada ao ponto de partida do capital: o capitalismo, com sua lógica de acumulação e exploração, é uma fase histórica que pode e deve ser superada.

O fim imanente desse processo é abolir a própria base que sustenta a alienação (o capital). A superação do estranhamento exigirá, segundo Marx, uma transformação radical das relações de produção.

Assim, o estranhamento ocorre quando as condições objetivas do trabalho – que, em tese, deveriam servir como meios para a realização da atividade produtiva do trabalhador – transformam-se em forças que o dominam e oprimem. Em vez de controlar os meios de produção, o trabalhador é por eles controlado. A riqueza social, resultado do trabalho humano coletivo, apresenta-se como um poder estranho e hostil ao trabalhador assalariado individual.

4.

Quando o trabalho vivo deixar de ser uma atividade meramente individual e se tornar uma prática social e universal, os meios de produção perderão seu caráter alienante. Em vez de propriedade privada do capitalista, tornar-se-ão propriedade coletiva dos trabalhadores associados. Essa transformação implica a abolição da propriedade privada dos meios de produção e a construção de uma nova base econômica, na qual os indivíduos se reproduzam como seres sociais – e não como entes isolados e explorados. Marx entende essa mudança como resultado imanente do desenvolvimento histórico, conduzindo à superação do capitalismo e à edificação de uma sociedade comunista.

Esse poder objetivado, que o próprio trabalho social erige contra si mesmo com o desenvolvimento das forças produtivas, materializa-se no sistema de máquinas – que se converte nas condições objetivas do trabalho, no trabalho objetivado. É a expressão da subsunção real do trabalho ao capital. Como destacou Marx, tais condições objetivas do trabalho, o trabalho objetivado no sistema de máquinas, devem crescer em relação ao trabalho vivo, pois “o que significa força produtiva do trabalho crescente senão que se requer menos trabalho imediato para criar um produto maior e que, portanto, a riqueza social se expressa cada vez mais nas condições do trabalho criadas pelo próprio trabalho?”.

É importante salientar que diferentemente do texto dos Manuscritos econômico-filosóficos de 1844, o estranhamento produzido pelo capital – o processo de inversão – “é simplesmente necessidade histórica, pura necessidade para o desenvolvimento das forças produtivas”. Marx reconhecia que a verdadeira emancipação social só ocorreria a partir de um determinado ponto de partida histórico, ou base histórica de desenvolvimento das forças produtivas criada pela fase histórica do estranhamento capitalista. Era preciso desenvolver o capitalismo – ou as forças produtivas do trabalho criada pelo capital e alienadas do trabalho vivo, que se tornariam a base material da sociedade socialista.

Num primeiro momento, como ele fez nos Manuscritos econômico-filosóficos de 1844, ao tratar do trabalho estranhado [Entfremdete arbeit], Marx está analisando nos Grundrisse, como o trabalho, que deveria ser a expressão vital e criativa do ser humano, se torna uma atividade estranhada (alienada) sob o capitalismo. O trabalho não é mais uma necessidade interior do indivíduo, mas uma necessidade imposta externamente, isto é, meio para um fim na medida em que o trabalho é apenas um meio para satisfazer necessidades externas a ele, principalmente a necessidade de sobreviver, de ganhar dinheiro para comprar comida, moradia, etc.

Na sociedade futura, uma vez superada a escassez material e a luta pela sobrevivência imediata (por meio da automação e da posse coletiva dos meios de produção), o trabalho mudaria radicalmente de natureza. O trabalho se tornaria a própria necessidade vital do homem, não um meio para uma necessidade externa. A atividade produtiva seria uma expressão de criatividade, de capacidades e de prazer.

A “esfera da necessidade” (o trabalho necessário para reproduzir a vida) seria reduzida ao mínimo e administrada coletivamente. O verdadeiro reino da liberdade começaria para além dela, onde os indivíduos poderiam se dedicar a atividades livremente escolhidas pelo seu próprio valor. O objetivo da produção não seria mais a acumulação de valor (capital), mas o desenvolvimento livre da individualidade de cada um.

5.

A nova sociedade socialista não pode ser uma sociedade de escassez, mas sim sociedade da abundância. O socialismo, e principalmente o comunismo em sua fase superior, é conceptualizado como uma sociedade da abundância, e não da escassez. A superação da “necessidade evanescente” (a coação para trabalhar de forma alienada) só é possível quando a base material da escassez é eliminada.

A escassez sob o capitalismo é, em grande medida, uma escassez socialmente imposta, não absoluta. É uma escassez dentro da abundância. O socialismo (a fase inferior da sociedade comunista, conforme descrita por Marx em Crítica ao Programa de Gotha) começa a reorganizar a sociedade para superar essa contradição com a socialização dos meios de produção. O objetivo desta fase histórica – a transição socialista – é expandir massivamente a base de abundância.

 A sociedade trabalha coletivamente para garantir que bens e serviços essenciais (comida, habitação, saúde, educação, transporte) estejam disponíveis para todos, superando a escassez material básica. Nesta fase, o princípio distributivo é: “De cada qual, segundo sua capacidade; a cada qual, segundo seu trabalho”. Ainda há elementos de “direito burguês”, pois pessoas com habilidades diferentes recebem quantidades diferentes. Mas a necessidade económica coercitiva já começa a enfraquecer.

É na fase superior do comunismo que a abundância plena se realiza, tornando a “necessidade evanescente” realmente evanescente (isto é, fazendo-a desaparecer). A abundância não significa uma pilha infinita de todos os bens imagináveis para todos. Significa, sobretudo, que as necessidades básicas são totalmente e gratuitamente satisfeitas. O tempo de trabalho necessário é reduzido ao mínimo graças à automação completa e à eficiência. Surge uma abundância de tempo livre – o verdadeiro espaço para o desenvolvimento humano. Com a escassez material radicalmente reduzida, a luta pela existência imediata (a “necessidade evanescente”) deixa de ser a força motriz da sociedade.

Na era do capital desenvolvido, a guerra impulsiona tanto a inovação tecnológica quanto a produção de mercadorias de consumo. No entanto, ao lado dessa dimensão “produtiva”, a guerra intensifica a capacidade destrutiva em escala inédita. Dessa forma, o complexo industrial-militar se converte em uma máquina do capital que promove guerras perpétuas, banaliza a morte, destrói vidas e desumaniza tanto os soldados quanto todos os envolvidos em sua engrenagem.

O que se revela, em última instância, é o caráter contraditório do progresso capitalista: ao mesmo tempo em que amplia a riqueza social sob a forma de forças produtivas, reforça a barbárie social pela via da destruição em massa. Portanto, o sistema-máquina do capital mostra que a lógica da valorização não se restringe ao campo da produção de mais-valor, mas abarca o conjunto das práticas sociais. A guerra, sob o capitalismo monopolista, não é apenas um instrumento de dominação, mas uma engrenagem essencial do metabolismo do capital, que articula produção, consumo, tecnologia, subjetividade e destruição.

Se, como afirma Marx, “o capital é trabalho morto que só vive ao sugar trabalho vivo”, pode-se dizer que a máquina de guerra é a expressão extrema desse parasitismo: trabalho humano convertido em potência destrutiva, objetivado em armas, bombas e tecnologias de morte. O desafio histórico – já antecipado por Rosa Luxemburg – é claro: diante de um sistema que transforma a guerra em máquina perpétua, a humanidade se vê confrontada com a alternativa entre socialismo ou barbárie.

6.

Na concepção de estranhamento de Marx nos Grundrisse salientou-se a discrepância entre o desenvolvimento social e o individual. Foi o que verificamos acima quando Marx destacou a subsunção real do trabalho ao capital com o aumento da produtividade do trabalho, o aumento da capacidade da produção social, mas – ao mesmo tempo – o empobrecimento do trabalho vivo. O desenvolvimento das forças produtivas do trabalho, as condições objetivas do trabalho, o trabalho objetivado [die vergegenständlichte Arbeit], crescia em relação ao trabalho vivo [lebendige Arbeit], confrontando-o e eliminando-o.

Esta é uma contradição central do capitalismo industrial diagnosticada por Marx: o aumento colossal da produtividade social ocorre às custas da condição do trabalhador individual. Nessa ordem social do capital, a máquina e a fábrica elevam a capacidade produtiva da sociedade, mas reduzem o operário a um apêndice da máquina, exigindo dele apenas gestos repetitivos e mecânicos.

Karl Marx nos Grundrisse acreditava que o desenvolvimento do capitalismo ou o desenvolvimento das forças produtivas ou o desenrolamento tecnológico “é simplesmente necessidade histórica, pura necessidade para o desenvolvimento das forças produtivas a partir de um determinado ponto de partida histórico” que criaria as bases materiais para uma nova sociedade socialista na medida em que o trabalho vivo abolisse “essa própria base, assim como essa forma do processo” do trabalho estranhado que seria tão-somente “uma necessidade evanescente [vergängliche Notwendigkeit]”.

Com a abolição das relações sociais de produção capitalista iria ser abolido o paradoxo entre a “riqueza social” e a “miséria do trabalho vivo” – no capitalismo desenvolvido quanto mais valor se gera coletivamente, menos valorizada é a vida do proletário isolado. Entretanto – eis a questão – a crítica marxiana do estranhamento focava-se no processo produtivo do capital.

O que Marx não pôde enfatizar em detalhe – dada as limitações de sua época – foi uma nova disparidade emergente no século XX: a mesma ciência e técnica que multiplicaram a capacidade produtiva humana também multiplicaram seu potencial destrutivo. Ou seja, além de produzir mercadorias em massa, a sociedade capitalista desenvolveu a capacidade de destruir em massa.

O século XX comprovou tragicamente essa fusão de progresso e barbárie: a indústria moderna, originalmente destinada à produção em massa, foi convertida em uma indústria da destruição em massa. A máquina militar – composta por exércitos mecanizados, armamentos químicos, bombardeiros e ogivas nucleares – tornou-se o avesso sinistro da máquina produtiva: em vez de bens, produz mortes; em vez de enriquecer a vida, semeia ruínas.

A Primeira Guerra Mundial já evidenciou como a tecnologia industrial (metralhadoras, artilharia, gás venenoso) dizimou soldados em escala industrial, chocando pensadores da época. Nas décadas seguintes, a corrida armamentista consolidou-se como um setor econômico próprio.

7.

Nos EUA, em particular, o esforço da Segunda Guerra Mundial e a posterior Guerra Fria levaram à formação do maior aparato bélico já visto – o que o presidente Dwight D. Eisenhower batizou de “complexo militar-industrial. Esse gigantesco aparato integrava forças armadas, indústria bélica e centros de pesquisa tecnológica, canalizando uma parcela enorme dos recursos e do talento científico da sociedade para fins de guerra.[i]

De fato, o complexo militar-industrial norte-americano representou a institucionalização máxima da barbárie tecnificada: a riqueza social e o know-how científico acumulados passaram a manifestar-se na capacidade de destruição global, com arsenais capazes de negar em minutos toda a riqueza social produzida.

Desse modo, o conceito ampliado de estranhamento revela que a história da humanidade sob o capital – isto é, sob um metabolismo social baseado na divisão hierárquica do trabalho, na extração do sobre-trabalho e no poder da classe dominante – é também a história do desenvolvimento das forças produtivas e destrutivas do trabalho social.

Como afirma Mészáros, “o capital, ao longo de sua constituição histórica, tornou-se o mais poderoso extrator de excedente conhecido da humanidade – uma verdadeira ‘bomba de extração’, nos termos de Marx” (MÉSZÁROS, 2002: 199). Desse modo, o alavancamento da capacidade produtiva – isto é, da extração de excedente – desenvolve-se pari passu com o aumento da capacidade de destruição em massa.

*Giovanni Alves é professor aposentado de sociologia da Universidade Estadual Paulista (UNESP). Autor, entre outros livros, de Trabalho e valor: o novo (e precário) mundo do trabalho no século XXI (Projeto editorial Praxis). [https://amzn.to/3RxyWJh]

Referências


ALVES, Giovanni. “Sache, Ding e a mistificação do capital: reificação, coisificação e o metabolismo social estranhado do capital” In: ALVES, Giovanni e TEIXEIRA, Francisco (Org.) Critica do Capital: Pensando com Marx no Século XXI. Marília, Projeto editorial Praxis, 2025.

LUKÁCS, Gyorgy. Para uma ontologia do ser social II. São Paulo: Boitempo editorial, 2011.

MARX, Karl. Grundrisse: manuscritos econômico-filosóficos de 1857-1858. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2011.

MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos de 1844. 5. ed. São Paulo: Boitempo, 2010.

MÉSZÁROS, István. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2002.

MÉSZÁROS, István. O século XXI: socialismo ou barbárie? São Paulo: Boitempo, 2001.

Nota


[i] EISENHOWER, Dwight D. Discurso de despedida à nação, 17 jan. 1961. Disponível em: https://www.ourdocuments.gov/doc.php?flash=false&doc=90


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
C O N T R I B U A

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
O segundo choque global da China
06 Dec 2025 Por RENILDO SOUZA: Quando a fábrica do mundo também se torna seu laboratório mais avançado, uma nova hierarquia global começa a se desenhar, deixando nações inteiras diante de um futuro colonial repaginado
2
Energia nuclear brasileira
06 Dec 2025 Por ANA LUIZA ROCHA PORTO & FERNANDO MARTINI: Em um momento decisivo, a soberania energética e o destino nacional se encontram na encruzilhada da tecnologia nuclear
3
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
4
A disputa mar e terra pela geopolítica dos dados
01 Dec 2025 Por MARCIO POCHMANN: O novo mapa do poder não está nos continentes ou oceanos, mas nos cabos submarinos e nuvens de dados que redesenham a soberania na sombra
5
A arquitetura da dependência
30 Nov 2025 Por JOÃO DOS REIS SILVA JÚNIOR: A "arquitetura da dependência" é uma estrutura total que articula exploração econômica, razão dualista e colonialidade do saber, mostrando como o Estado brasileiro não apenas reproduz, mas administra e legitima essa subordinação histórica em todas as esferas, da economia à universidade
6
Colonização cultural e filosofia brasileira
30 Nov 2025 Por JOHN KARLEY DE SOUSA AQUINO: A filosofia brasileira sofre de uma colonização cultural profunda que a transformou num "departamento francês de ultramar", onde filósofos locais, com complexo de inferioridade, reproduzem ideias europeias como produtos acabados
7
O empreendedorismo e a economia solidária
02 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Os filhos da classe média tiveram que abandonar seu ambicionado projeto de explorar os integrantes da classe trabalhadora e foram levados a desistir de tentar vender sua própria força de trabalho a empresas que cada vez mais dela prescindem
8
A esquerda radical deveria apoiar Lula desde o primeiro turno. Por quê?
04 Dec 2025 Por VALEIRO ARCARY: O voluntarismo não é bom conselheiro. Ideias revolucionárias são poderosas e podem colocar em movimento milhões de pessoas até então desesperançadas. Mas é imprudente desconhecer a impiedosa força da realidade objetiva.
9
Biopoder e bolha: os dois fluxos inescapáveis da IA
02 Dec 2025 Por PAULO GHIRALDELLI: Se a inteligência artificial é a nova cenoura pendurada na varinha do capital, quem somos nós nessa corrida — o burro, a cenoura, ou apenas o terreno onde ambos pisam?
10
Asad Haider
08 Dec 2025 Por ALEXANDRE LINARES: A militância de Asad Haider estava no gesto que entrelaça a dor do corpo racializado com a análise implacável das estruturas
11
Considerações sobre o marxismo ocidental
07 Dec 2025 Por RICARDO MUSSE: Breves considerações sobre o livro de Perry Anderson
12
O agente secreto
07 Dec 2025 Por LINDBERG CAMPOS: Considerações sobre o filme de Kleber Mendonça Filho, em exibição nos cinemas
13
Terras raras e soberania: o elo invisível entre ciência, indústria e poder
05 Dec 2025 Por CELSO PINTO DE MELO: A entrada em operação da Serra Verde é um marco: faz do Brasil o único produtor ativo de terras raras fora da Ásia, mas também expõe limites estruturais. A falta de domínio tecnológico e o processamento final realizado na China mostram que o Brasil ainda exporta minério, não inteligência mineral
14
Raduan Nassar, 90 anos
27 Nov 2025 Por SABRINA SEDLMAYER: Muito além de "Lavoura Arcaica": a trajetória de um escritor que fez da ética e da recusa aos pactos fáceis sua maior obra
15
As lágrimas amargas de Michelle Bolsonaro
07 Dec 2025 Por CAIO VASCONCELLOS: Estetização da política e melodrama: A performance política de Michelle como contraponto emocional e religioso ao estilo agressivo de Jair Bolsonaro
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES