Por LUIZ SÉRGIO CANÁRIO*
A candidatura de Guilherme Boulos foi um erro desde sua origem. O PT resolveu ir por um caminho que nada acrescentou ao partido. O PSOL também paga parte de seus pecados
1.
Não vou aqui citar números. Já foram suficientemente citados e contabilizados. Já se prestaram a inúmeras análises com variados enfoques. Números são essenciais para um diagnóstico com base em fatos, nos dão uma medida precisa de desempenho. A partir daí podemos montar possíveis cenários. Mas números são reflexos de decisões políticas.
Uma derrota ou uma vitória eleitoral, assim como, dizem os especialistas, um avião que cai, não tem uma única causa. O avião pode cair por uma falha mecânica ou por uma má pilotagem ou ainda por condições ruins de tempo. Muitas vezes algumas dessas causas atuam juntas.
A eleição para prefeito na capital de São Paulo não pode ser entendida a partir de números, por exemplo. Mas é preciso dizer claramente, e os números gritaram isso, fomos derrotados eleitoralmente. Conseguimos chegar ao segundo turno, mas não ganhamos votos suficientes no segundo turno para sequer ameaçar a vitória de nosso adversário. É sempre bom esmiuçar esses números para analisar a geografia da votação, cortes vários no eleitorado e até o clima no dia. Tudo isso é como uma espécie de autópsia.
Mas é preciso avaliar, e isso só é possível politicamente, o que construiu esse número. O que contribuiu, que decisões, ou falta delas, nos levou a esse resultado. Esse deve ser o centro do debate. Acontece que, como se diz, se a vitória tem muitos pais e mães, a derrota é órfã. Quem quer fazer questão de dizer que participou da direção de uma campanha derrotada? Quem quer ser avaliado por isso? Nem o candidato, em última instância o maior de todos os responsáveis, quer. Por outro lado, a derrota gera vários médicos legistas sem nenhum conhecimento de anatomia. Não sabem onde fica nem como é o fígado, mas atestam que o paciente morreu de cirrose hepática.
A crônica dessa derrota começa nos idos de 2020. Por uma disputa interna da corrente majoritária e por um cálculo errado de quase todas as lideranças do partido, Jair Tatto venceu Alexandre Padilha na disputa para ser o candidato do PT à prefeitura. Apoiaram Alexandre Padilha todos os outros candidatos, eram seis, exceto Tatto. Aí estão, dentre outros, Nabil e Suplicy. Perderam a parada em um processo que achavam estar sob controle e tiveram que engolir um dos tão mal falados Tatto. Esqueceram que eles têm grande influência em diretórios zonais importantes. Ou em outras palavras, esqueceram de combinar com os russos.
O desfecho, como conhecido, foi a pior derrota eleitoral do PT da história. Jair Tatto teve menos votos que Mamãe Falei. E Guilherme Boulos, concorrendo pelo PSOL, com o auxílio luxuoso de setores e candidatos do PT, que esconderam as marcas do PT e fizeram campanha disfarçada para Boulos, vai ao segundo turno. E perde para a chapa Covas/Nunes. Guilherme Boulos teve uma votação inusitada para o PSOL. Muitos passaram a olhar para ele e pensar: Hummmm, esse é o cara. Fecha o pano.
2.
Chegamos a 2022. Lula podia ser candidato à presidência e Fernando Haddad era cotado para ser candidato ao governo do estado. Por sua vez, o PSOL fala em lançar Guilherme Boulos como candidato ao governo, com base no seu sucesso em 2020. Lula encabeça uma articulação, realizada às portas fechadas, longe das instâncias partidárias, onde se constrói um acordo: Guilherme Boulos não se lança candidato a governador em troca de ter o apoio do PT na eleição para prefeitura em 2024. Guilherme Boulos e o PSOL concordam e ele sai candidato a deputado federal tendo uma expressiva votação. Muitos viram nessa votação o potencial dele ganhar as eleições para prefeitura.
Mais para a frente um pouco o PT faz um encontro na capital onde se decide que o candidato do partido nas eleições para prefeitura seria decidido em uma prévia. Mas havia o tal acordo de 2022. E o apoio à candidatura de Guilherme Boulos é colocado na mesa como decisão já tomada e que acordo, mesmo sendo feito por fora das instâncias, é para ser cumprido. É feito um processo simbólico, para dar legitimidade e legalidade ao apoio, e Guilherme Boulos é entronado como candidato do PT para 2024.
A base do partido? Assim como em 2020 não teve a oportunidade de se manifestar e teve que aceitar, ou engolir, uma candidatura mais uma vez. Então, como alguns já pensaram em 2020, o “cara” era o candidato petista. E a cereja do bolo vem com o retorno para o PT com pompa e circunstância, trazida pelas mãos e pulso firme de Lula, de Marta Suplicy para ser vice na chapa encabeçada por Guilherme Boulos. A mesma que saiu falando que o PT era um partido de corruptos, votou pelo golpe em 2016, votou em todas as “reformas” de Michel Temer e estava como secretária na prefeitura na gestão de Ricardo Nunes.
Não satisfeitos por colocar Guilherme Boulos como candidato, a turma resolveu trazer Marta Suplicy, de triste memória, para ser a vice na chapa, representando o partido. A pista dada em 2020 abre caminho para o anúncio da morte em 2024. A militância e as candidaturas à vereança tinham que fazer campanha para um candidato de outro partido, residência oficial do antipetismo, aquele que fala “se hay PT, soy contra”, que não participaram do processo de escolha, tendo ao lado uma vice, que também não tinha passado pelo escrutínio do partido, do calibre de Marta Suplicy.
Diferentemente de Santiago Nasar, personagem central do livro Crônica de uma morte anunciada de Gabriel Garcia Marques, que a cidade inteira sabia que caminhava para ser assassinado pelos irmãos Vicário, mas ninguém nem impediu nem o avisou, algumas vozes tentaram impedir o desfecho e avisaram o que era muito provável acontecer. E todo o cenário, intuído em 2020 e construído em 2022, ruiu. Boulos, com Marta e tudo, foi derrotado e com ele a estratégia do PT para a capital paulista. Santiago Nasar poderia não ter morrido se alguém o avisasse do que estava para acontecer enquanto ele caminhava pela cidade ao encontro da morte. O desfecho não foi por inciativa ou ação dele. O mesmo não pode ser dito pelo desfecho da candidatura Boulos/Marta.
3.
Aquilo que já se prenunciava ruim com a formação da chapa, ganhou força com os rumos da campanha. Em um primeiro momento predominou o estilo Guilherme Boulos paz e amor, com muitos corações e coisas bonitinhas. Uma tentativa de mudar a imagem do Boulos invasor, carrancudo e bravo, por uma de um cara simpático e bacana que não quer fazer mal a ninguém. Acabou em um personagem muito mais parecido com o famoso Tio da Sukita de um antigo comercial da TV. Não tinha política na campanha. Somente a tentativa de se criar um personagem que soava falso.
A campanha evitava explorar o legado das três gestões petistas na cidade. Mesmo sendo uma delas deputada federal pelo PSOL, Luiza Erundina e uma outra a vice na chapa, Marta Suplicy. Fernando Haddad nem era citado ou apareceu nem de relance na campanha. Se preferiu criar algo semelhante ao Aerotrem de Levy Fidelix, o Poupa Tempo da Saúde, infeliz até no nome, o mesmo do Poupa Tempo do governo do estado. A campanha não encarava de frente nenhum dos grandes problemas da cidade e como administrações anteriores nossas trataram deles e como poderiam ser tratados a partir de agora.
Guilherme Boulos parecia um raio em céu azul, algo que surge do nada e passa a ser ele mesmo o começo da história. Faltava à campanha uma cara, uma marca, faltavam principalmente um programa voltado às necessidades do povo e políticas claras de gestão da cidade. Até o apagão de energia elétrica que houve na cidade virou somente um ataque a falta de poda de árvores pela prefeitura. Não colou, a população percebia que o maior responsável era a ENEL, concessionária privatizada de energia.
O candidato Pablo Marçal é um capítulo à parte. Entrou como um furacão na campanha e bagunçou tudo. No fim quase chega ao segundo turno, tirando um dos dois favoritos. Chamou a atenção de todo mundo e tirou o foco da campanha de Boulos de Nunes para ele. Em certo momento se chegou a cogitar que Nunes não passaria para o segundo turno. O resultado no primeiro turno foi apertado, com cada um dos três tendo cerca de 30% dos votos.
Na campanha do segundo turno Guilherme Boulos deu um passo arriscado ao aceitar um convite, recusado por Ricardo Nunes, de participar de uma live com Pablo Marçal sendo o moderador. Ele foi, viu e perdeu ao legitimar Marçal como um interlocutor válido. Como se ele não fosse um representante da extrema-direita, que provocou Boulos até com um documento falso em que ele era apontado como usuário de drogas ilícitas. E enfim a morte anunciada acontece com a candidatura PSOL/PT não avançando nada na quantidade de votos dos segundos turnos de 2024, 40,65% e de 2020, 40,62%, quando o PSOL concorreu sozinho, com apoio do PT no segundo turno.
Na soma de todos os erros, se salvou a bancada de vereadores do PT, que elegeu uma bancada semelhante a que elegeu em 2020, com oito vereadores, a maior bancada na câmara. Da mesma forma o PSOL manteve seus seis vereadores.
A candidatura de Guilherme Boulos foi um erro desde sua origem. O PT resolveu ir por um caminho que nada acrescentou ao partido. O PSOL também paga parte de seus pecados. Não há mais virgens vestais no templo de vesta. Entrar no jogo pesado de uma eleição para ganhar deixa a virtude virginal de lado. O jogo é pesado. Muitos falam que o PT não teria um candidato competitivo e que lançar alguém seria repetir o fiasco de 2020. E que acabaria que nem o PSOL, nem o PT passariam para o segundo turno.
Na verdade, os que construíram a candidatura estavam de fato mais preocupados com as eleições de 2022 do que com o que iria acontecer em 2024. Esse arranjo impediu o crescimento de qualquer tentativa de candidatura. Certamente há quadros que dariam conta de ser candidato e a militância ter a combatividade que não teve, por razões diferentes, em 2020 e 2024. A história não admite “se”. Há a realidade concreta que precisa ser concretamente analisada. E a realidade concreta foi a candidatura de Guilherme Boulos. A análise concreta é que foi uma morte anunciada. No que pese a vontade e o dever de bater a direita, decisões erradas levam a resultados ruins.
Perde o PT, perde a esquerda e, principalmente, perde o povo da cidade que irá sofrer por quatro anos nas mãos de Ricardo Nunes e de Tarcísio de Freitas, com o acompanhamento de Jair Bolsonaro, que indicou o vice da chapa vitoriosa. Cabe agora o PT rever com muito empenho e seriedade para construirmos condições de, com um programa voltado para a classe trabalhadora e o povo, construirmos a crônica de uma vitória anunciada por ser construída com os olhos muito além das eleições.
Construir uma saída pela esquerda, socialista, deve estar na ordem do dia. No que pese a declaração de Jilmar Tatto que o partido deve se mover mais para a direita. A morte, no que pese ser anunciada, não poupa o sofrimento.
*Luís Sérgio Canário é mestrando em economia política na UFABC.
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