Hollywood, o altar que nos define

image_pdf

Por EUGÊNIO BUCCI*

Fernanda Torres não ganhou, mas ela é a maior de todas. Nada é maior que Hollywood, nada é maior que o Oscar. Nada, só Fernanda Torres

É claro que eu vi a cerimônia do Oscar. Noite de domingo, carnaval longínquo e eu no sofá, de frente para a televisão. É claro que me entediei com a torrente de breguices, mas nem foram tantas. É claro que explodi em vibração futebolística quando Ainda estou aqui, de Walter Salles, ganhou como melhor filme internacional. É claro que desliguei de raiva quando não deram o prêmio de melhor atriz para Fernanda Torres. Achei aquilo uma ignomínia, mesmo sem nunca ter visto o filme da outra lá que foi chamada ao palco. Nem sei o nome. É claro que liguei de novo a TV. Ainda peguei a moça agradecendo. É claro que não gostei.

O que não é claro é o resto. Vale um artigo. Walter Salles não se engalanou com um smoking. Preferiu um terno preto sumário. Fina estampa sem cores. Na segunda-feira, seu sorriso tropical encimado pelos olhos apertados carimbou a capa dos jornais. Aplaudi outra vez. Ele merece as mais altas condecorações da República. É um herói da cultura.

A começar da literatura. Seu filme deu impulso mundial para o livro de Marcelo Rubens Paiva, uma obra costurada em letras leves e memórias lancinantes, mesmo quando hilárias. É impagável a passagem em que o escritor retrata a mãe, Eunice, despejando às escondidas uísque nacional dentro de garrafas de puro malte escocês. Impagável e pungente.

A gente lê com prazer e pesar. A gente sorri. Depois do desaparecimento forçado do marido, a família Paiva empobreceu, mas a dona da casa não vacilou. Para manter para o astral da casa, oferecia aos amigos bebida suspeita, sim, mas dentro de uma imagem de fausto importado. Ela perdeu a renda, não a pose.

A cena dos vasilhames não aparece no filme. Não faz falta. A Eunice que não se dobra está lá inteira, bela, viva e valente. A interpretação que lhe deu Fernanda Torres, essa artista mais do que genial, reacende a coragem que a repressão não derrubou e nos reconcilia com a história do Brasil que o Brasil quis esquecer. Ouço contar que o filme reverteu a inércia das burocracias estatais e arrancou lágrimas de uns tipos que não tinham a menor ideia do que tinha sido a ditadura militar. Ouço, acredito e, de novo, aplaudo.

O cinema, quando arte, toca a alma. Quando entretenimento, move multidões. Como Ainda estou aqui é arte e, queiramos ou não, é também entretenimento, mudou mentalidades que já tinham se petrificado nas paredes alienadas da pátria – as paredes que não têm ouvidos. A corrida do Oscar encheu as plateias de autoconfiança e as autoridades de excitação oportunista. Tanto melhor. Eunice virou nome de prêmio do governo federal.

Pistas do paradeiro do corpo de Rubens Paiva começam a sair da escuridão. Os torturadores impunes se inquietam. Vai sobrar para eles. Tomara. Um filme íntegro vale mais do que mil comícios demagógicos. Ainda estou aqui, sozinho, realizou o que tribunos e publicistas, juntos, não conseguiram.

Isso tudo é bom, mas perturba, é meio desestruturante. Nenhum país deveria depender do Oscar para conhecer seus direitos e amar sua democracia. Nenhum país, nem mesmo os Estados Unidos. Nenhum país, muito menos o Brasil. Mas é assim que é. Um longa-metragem, desses que o espectador pacato vai ver no final de semana, antes da pizza, ou mesmo depois, veio nos devolver um sentimento de nação, a lembrança dos direitos humanos e a sede de Justiça.

Somos um mundo integrado pelo mercado, em termos genéricos, e pelo entretenimento, em termos específicos. Isso quer dizer que o altar da diversão, ou seja, Hollywood, concentra o poder de pontificar sobre o que é legítimo e o que não passa de quimera. É comendo pipoca no escurinho que se aprende a distinguir o certo do errado, o cômico do trágico, o aceitável do abominável. A emoção que se compra na bilheteria é o critério da verdade.

Somos a civilização que acredita que tudo o que acontece só acontece para nos comover. Se nos comove, a coisa existe. Se não, que vá para o lixo. Somos consumidores insaciáveis da realidade, como se ela fosse um objeto estético, ou um saco de pipoca. A nossa política se anulou, rebaixada e pífia. A nossa religião se desencantou. O entretenimento as substituiu com desumanidade, mercadoria e técnica. Somos a civilização que se reconhece no entretenimento.

O melodrama de massa ocupou o lugar dos panfletos incendiários e das narrativas místicas. As igrejas se converteram em show de TV. Os autocratas, desde Hitler e Goebbels, querem controlar a indústria da diversão. Hollywood é a nova Meca, a nova Roma, a nova Delfos. A cerimônia do Oscar é o púlpito que define o antissemitismo (ou você não viu o discurso longuíssimo de Adrien Brody, vencedor da estatueta de melhor ator por O brutalista?), a solução de dois estados no mesmo pedaço de terra do Oriente Médio (com a palavra, Yuval Abraham, diretor de No other land,vitorioso na categoria de documentário) e os males da ditadura militar no Brasil (na voz de Walter Salles).

Fernanda Torres não ganhou, mas ela é a maior de todas. Nada é maior que Hollywood, nada é maior que o Oscar. Nada, só Fernanda Torres.

*Eugênio Bucci é professor titular na Escola de Comunicações e Artes da USP. Autor, entre outros livros, de Incerteza, um ensaio: como pensamos a ideia que nos desorienta (e oriente o mundo digital) (Autêntica). [https://amzn.to/3SytDKl]

Publicado originalmente no jornal O Estado de S. Paulo.


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
O segundo choque global da China
06 Dec 2025 Por RENILDO SOUZA: Quando a fábrica do mundo também se torna seu laboratório mais avançado, uma nova hierarquia global começa a se desenhar, deixando nações inteiras diante de um futuro colonial repaginado
2
Energia nuclear brasileira
06 Dec 2025 Por ANA LUIZA ROCHA PORTO & FERNANDO MARTINI: Em um momento decisivo, a soberania energética e o destino nacional se encontram na encruzilhada da tecnologia nuclear
3
Simulacros de universidade
09 Dec 2025 Por ALIPIO DESOUSA FILHO: A falsa dicotomia que assola o ensino superior: de um lado, a transformação em empresa; de outro, a descolonização que vira culto à ignorância seletiva
4
A guerra da Ucrânia em seu epílogo
11 Dec 2025 Por RICARDO CAVALCANTI-SCHIEL: A arrogância ocidental, que acreditou poder derrotar a Rússia, esbarra agora na realidade geopolítica: a OTAN assiste ao colapso cumulativo da frente ucraniana
5
Asad Haider
08 Dec 2025 Por ALEXANDRE LINARES: A militância de Asad Haider estava no gesto que entrelaça a dor do corpo racializado com a análise implacável das estruturas
6
Uma nova revista marxista
11 Dec 2025 Por MICHAE LÖWY: A “Inprecor” chega ao Brasil como herdeira da Quarta Internacional de Trotsky, trazendo uma voz marxista internacionalista em meio a um cenário de revistas acadêmicas
7
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
8
Raymond Williams & educação
10 Dec 2025 Por DÉBORA MAZZA: Comentário sobre o livro recém-lançado de Alexandro Henrique Paixão
9
Considerações sobre o marxismo ocidental
07 Dec 2025 Por RICARDO MUSSE: Breves considerações sobre o livro de Perry Anderson
10
O agente secreto
07 Dec 2025 Por LINDBERG CAMPOS: Considerações sobre o filme de Kleber Mendonça Filho, em exibição nos cinemas
11
Impactos sociais da pílula anticoncepcional
08 Dec 2025 Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA: A pílula anticoncepcional não foi apenas um medicamento, mas a chave que redefiniu a demografia, a economia e o próprio lugar da mulher na sociedade brasileira
12
Insurreições negras no Brasil
08 Dec 2025 Por MÁRIO MAESTRI: Um pequeno clássico esquecido da historiografia marxista brasileira
13
A armadilha da austeridade permanente
10 Dec 2025 Por PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS: Enquanto o Brasil se debate nos limites do arcabouço fiscal, a rivalidade sino-americana abre uma janela histórica para a reindustrialização – que não poderemos atravessar sem reformar as amarras da austeridade
14
As lágrimas amargas de Michelle Bolsonaro
07 Dec 2025 Por CAIO VASCONCELLOS: Estetização da política e melodrama: A performance política de Michelle como contraponto emocional e religioso ao estilo agressivo de Jair Bolsonaro
15
O empreendedorismo e a economia solidária – parte 2
08 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Quando a lógica do empreendedorismo contamina a Economia Solidária, o projeto que prometia um futuro pós-capitalista pode estar reproduzindo os mesmos circuitos que deseja superar
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES