Por JACK CONRAD*
O plano imediato de Trump é congelar o conflito entre a Rússia e a Ucrânia e estabelecer uma zona tampão de 800 milhas ao longo da linha de frente existente
Francamente, eu não esperava que isso acontecesse. Julguei, sim, que Donald Trump venceria em 5 de novembro. Mas não esperava que, depois de se conter por tanto tempo, Joe Biden – um presidente, afinal, vencido – daria luz verde à Ucrânia para usar seu Atacms (Sistema de mísseis táticos do exército americano). Não é de admirar que a Grã-Bretanha tenha seguido o exemplo logo depois.
O governo do primeiro-ministro trabalhista, Sir Keir Starmer, concedeu permissão para que os seus foguetes (Storm Shadows) atingissem alvos dentro da Federação Russa. Apenas alguns dias depois, a França seguiu o exemplo com seus mísseis Scalp. A Alemanha, por razões próprias, comportou-se de modo completamente diferente. O chanceler Olaf Schultz, apesar das constantes reclamações de seus belicosos colegas da coalizão Verde, recusa-se teimosamente até mesmo a fornecer os seus mísseis de cruzeiro Taurus para a Ucrânia.
Volodymyr Zelensky foi rápido em usá-los. Uma bateria de Atacms foi lançada em 19 de novembro – a Rússia afirma que abateu cinco deles e danificou um sexto. Fontes militares dos EUA, por outro lado, admitem que, embora dois deles tenham sido interceptados, seis dos oito atingiram com sucesso seu alvo, ou seja, um depósito de munição em Karachev.[1] Então, vieram as “sombras da tempestade”; doze deles foram lançados. A Ucrânia e seus facilitadores ocidentais reivindicam sucesso. De qualquer forma, esses mísseis não podem vencer a guerra… Ademais, a Ucrânia não tem um grande suprimento desses mísseis. Na verdade, os seus estoques são muito limitados. Portanto, atualmente, o seu uso é mais simbólico do que militar.
Daí a afirmação instintiva, feita pelo editorial do Morning Star, de que dar luz verde a Atacms e Storm Shadows consiste numa tentativa que visa “tentar inclinar a vantagem militar de volta a favor de Kiev, antes que Trump entre na Casa Branca”. Ora, isso revela uma ignorância verdadeiramente profunda do estado real das coisas.[2] Também reflete uma certa afeição “comunista oficial” pelos ocupantes do Kremlin; ora, o fato é que eles têm hoje uma política de extrema-direita, profundamente reacionária; eis que estão estreitamente alinhados no plano ideológico com a Igreja Ortodoxa.
A doutrina nuclear
Diante do cruzamento de outra linha vermelha com o lançamento dos mísseis Atacms e Storm Shadows, o regime Putin e aliados respondeu mudando a doutrina nuclear da Rússia. Anteriormente, a opção nuclear estava reservada para a situação em que houvesse uma ameaça à “existência” da Rússia. Agora, essa escolha pode ser feita por ocasião de um grande ataque ou ataques que “criam uma ameaça crítica à soberania e (ou) integridade territorial” da Rússia e de seu vizinho e aliado, a Bielorrússia.
A nova doutrina de Putin também afirma que os países que ajudam e incentivam um ataque serão considerados cobeligerantes. Portanto, a Rússia está ameaçando a OTAN com uma resposta nuclear diante de ataques ucranianos fortes usando armas convencionais. Ora, essa estratégia é amplamente conhecida como “escalar para diminuir a escalada”; contudo, John Hyten, ex-chefe do Comando Espacial dos EUA, diz que isso pode ser traduzido com mais precisão por “escalar para vencer”.[3]
Para enfatizar a nova doutrina, um míssil balístico de alcance intermediário Oreshnik, projetado para transportar cargas nucleares, foi lançado da base de foguetes Kapustin Yar, na Rússia. Cerca de 15 minutos depois, atingiu alvos a 500 milhas de distância, em Dnipro. Esses mísseis não são apenas muito rápidos, 10 vezes a velocidade do som, mas também podem manobrar no meio do curso e, portanto, são muito difíceis de interceptar. O que foi lançado carregava seis ogivas direcionadas independentemente, embora, como foi depois visto, nenhuma fosse nuclear (os Estados Unidos receberam um aviso 30 minutos antes “através de canais de redução de risco nuclear”, presumivelmente porque são armas estratégicas.[4]
A propósito, Atacms, Storm Shadow, Scalp etc. são geralmente chamados de “mísseis de longo alcance” no jargão popular. Isso causa uma confusão sem fim; Afinal, eles têm um alcance de cerca de 150-190 milhas. Isso é muito, em comparação com os mísseis antitanque empregados no campo de batalha. Na verdade, eles dificilmente darão à Ucrânia a capacidade de atacar “profundamente parte do território da Rússia”.[5] O país é, afinal, bastante grande, com 11 fusos horários e 5.600 milhas de leste a oeste. O míssil balístico de alcance intermediário, lembre-se, tem um alcance de menos de 3.420 milhas. Mísseis balísticos intercontinentais atingem mais de 3.000 milhas.
De qualquer forma, o The New York Times relata que a mudança de opinião de Biden sobre os Atacms foi devido ao envio de tropas norte-coreanas para lutar em Kursk.[6] Existem lá, no momento, cerca de 12.000 norte-coreanos, mas sugere-se que seu número possa eventualmente aumentar para 100.000.[7]A própria Rússia acumulou um exército de 50.000 soldados, prontos para outra tentativa de recapturar o saliente controlado pela Ucrânia capturado em agosto.
A primeira falhou, presumivelmente porque as forças ucranianas rapidamente cavaram e plantaram dentes de dragão e outras defesas semelhantes. A Rússia supostamente contra-atacou de frente com tanques e sofreu pesadas perdas. No entanto, a Ucrânia já perdeu mais de 40% do território que inicialmente havia tomado dos russos. Em seu auge, as forças ucranianas controlavam aproximadamente 531 milhas quadradas de território russo, agora reduzido para aproximadamente 309 milhas quadradas.[8]
Mas certamente o principal objetivo de Biden com sua decisão sobre o Atacms tem menos a ver com estoques de munição russos, postos de comando e silos de combustível e mais com o novo governo Trump. Afinal, embora de uma forma hiperbólica, o candidato Trump prometeu trazer a paz dentro de 24 horas após sua eleição. Com exceção de pessoas irremediavelmente estúpidas, ninguém acreditou nisso por um momento; contudo, é claro que ele tem toda a intenção de forçar a Ucrânia a se sentar à mesa de negociações e oferecer à Rússia algum tipo de acordo.
A determinação do governo Biden sempre foi usar o conflito na Ucrânia como uma “guerra por procuração para prejudicar a Rússia”; nunca pretendeu ajudar verdadeiramente a Ucrânia a vencer a guerra. Ora, isso explica por que os Estados Unidos “não fizeram nada” para promover um cessar-fogo ou acordo de paz, conforme argumentou a campanha “make America great again”. A escolha de Trump de Keith Kellogg como enviado especial para tratar do conflito Ucrânia-Rússia ressalta, portanto, a ideia de que há um desgaste geral: “uma vez” que o conflito russo-ucraniano “chegou a um impasse e se tornou uma guerra em situação de impasse, tornou-se interesse da Ucrânia, dos Estados Unidos e do mundo buscar um cessar-fogo e negociar um acordo de paz com a Rússia”.[9]
Basicamente, o plano imediato de Trump é congelar o conflito entre a Rússia e a Ucrânia e estabelecer uma zona tampão de 800 milhas ao longo da linha de frente existente. Margus Tsahkna, ministro das Relações Exteriores da Estônia, já ofereceu “botas no chão” para esse propósito. Mas, estão previstos contingentes bálticos, polacos, britânicos, neerlandeses e nórdicos para ocupar essa zona.[10] Tenha em mente, no entanto, que as forças de paz podem não se manter como tais; eis que elas são de fato constituídas por combatentes que se mantêm ativos.
Com o fim dos combates, as negociações continuarão. Trump – isso é ventilado – insiste que a Ucrânia terá que ceder a Crimeia à Rússia e, assim, permitir o livre acesso às águas quentes do Mediterrâneo. Além desse território em particular, o acordo pode forçar a Ucrânia a conceder todo ou parte do Donbass. Alternativamente, ela deve permitir a existência de dois oblasts autônomos dentro da Ucrânia. Zaporizhzhia e Kherson também poderiam ser cedidas, divididas ou, possivelmente, trocadas em troca do enclave de Kursk. Também se fala que Trump impedirá a Ucrânia e a Geórgia de ingressar na OTAN, outra concessão estratégica à Rússia.
Um tratado seriamente desigual poderia – como argumentei em uma série de artigos recentes sob o título de “Notas sobre a Guerra” – acabar com a deposição de Zelensky por meio de um golpe dos batalhões de Azov. É possível imaginar o tenente-coronel Denys Prokopenko – também chamado de camarada ‘Redis’ – marchando sobre Kiev.
Os golpistas, se bem-sucedidos, acusariam Zelensky de ser um vendido, de ser um traidor judeu, de não ser um verdadeiro ucraniano. Mas sem poderosos apoiadores externos, qualquer regime pós-Zelensky não poderia fazer nada sério. Afinal, a Ucrânia carece de uma indústria de armamento independente. Por exemplo, embora a Ucrânia possa atualizar os tanques T-72 da era soviética; contudo, mesmo para isso, ela é fortemente dependente de suprimentos militares ocidentais.[11]
Também não se deve descartar, quando se trata do plano de paz de Trump, o fato de que existe um partido democrata-republicano em prol da guerra, o qual exerce uma influência poderosa no congresso e senado americanos: sim, há uma minoria republicana ativa no Congresso que quer guerra e mais guerra – e não conversa e mais conversa.[12] Essencialmente, o que une o partido em favor da guerra é o plano de restabelecer a hegemonia global dos EUA descrito no best-seller de Zbigniew Brzezinski de 1987, O Grande Tabuleiro de Xadrez.
Ao custo de US $ 64,1 bilhões, relativamente escassos, a Rússia, em quase três anos de “operação militar especial”, chegou naquilo que é uma versão do século XXI da Frente Ocidental de 1914-18.[13] Trata-se, na verdade, de um atoleiro que até agora custou entre 113.000 e 160.000 vidas russas.[14] E, quanto mais baixas russas, mais os cofres da Rússia são drenados, mais inflação, mais uma revolução colorida e a instalação de algum regime neocolonial frouxo se torna possível – é esse pelo menos o raciocínio em vigor tanto no Pentágono quanto na sede da CIA em Langley, Virgínia. Portanto, a Ucrânia deve ser forçada a manter o seu compromisso de continuar lutando até a retirada de todos os soldados russos de cada centímetro do território pré-2014… uma concepção estratégica dos EUA que serve ao objetivo central de conter e cercar a China e acabar com sua ascensão “inevitável”.
Lembre-se, ademais, que Trump não vem apenas com um ramo de oliveira: ele também vem com um grande porrete. Se o regime Putin e aliados rejeitar seu acordo de paz, isso acarretará provavelmente um “aumento do apoio dos EUA à Ucrânia”.[15] Assim, talvez Trump venha a abraçar o plano de vitória de Zelensky em sua totalidade… isto é, incluindo suas três cláusulas secretas. Elas implicam, supostamente, no fornecimento de mísseis de cruzeiro subsônicos Tomahawk com alcance de 1.350-1.550 milhas e, muito mais importante do que isso, o Ocidente forneceria um forte “pacote de dissuasão”, ainda que não nuclear[16]. Em outras palavras, embora Trump esteja buscando algum tipo de acomodação com a Rússia, a alternativa é “ir para a Terceira Guerra Mundial”.
A moral é importante
Os comentaristas neoisolacionistas americanos – com um eco da esquerda crédula, especialmente aquela pró-Kremlin – admitem teses do seguinte tipo: a invasão russa está tendo sucesso; a Ucrânia é terrivelmente incapaz; a incursão de Kursk foi um erro terrível; ela não passou de uma armadilha brilhante de Putin; Zelensky tolamente desviou tropas vitais da frente de Donbass etc.
Desse tipo são vários colaboradores que participaram de um simpósio sobre a guerra na Ucrânia organizado pelo Quincy Institute for Responsible Stewardship em meados de agosto de 2024 – cujos patrocinadores incluem George Soros e a Fundação Ford. Eis o disseram alguns palestrantes:
Ivan Eland: “A Ucrânia corre o risco de ser cercada por forças superiores.” Mark Episkopos: “é improvável que produza qualquer benefício estratégico para a Ucrânia e exigirá um investimento maciço sustentado ao longo do tempo de tropas e equipamentos que podem enfraquecer as defesas ucranianas”. Lyle Goldstein: “Perguntas legítimas podem ser feitas sobre a sabedoria do novo ataque.” Maitra acrescenta: Isso poderia “encorajar os linhas-duras do governo russo e dissuadir Putin de pressionar por uma negociação de paz”. Stephen Walt: “um espetáculo marginal” que “não afetará o resultado da guerra”. John Mearsheimer também: “um grande erro estratégico, que acelerará a derrota [da Ucrânia]”.[17]
Esse tipo de avaliação da incursão ucraniana bem-sucedida em Kursk anda de mãos dadas com a alegação de que os Estados Unidos atingiram seus limites na Ucrânia. Mas ninguém nos círculos dominantes da Europa, muito menos nos Estados Unidos, esperava seriamente que a Ucrânia derrotasse a Rússia e empurrasse suas forças armadas de volta às fronteiras anteriores a 2014. Isso nunca iria acontecer. Não, nem mesmo obtendo mísseis antitanque Javelin, tanques de batalha Leopard II, caças F-16 ou mísseis de cruzeiro Atacms. Na verdade, a expectativa generalizada era de rendição ucraniana em fevereiro de 2022. O equilíbrio nas frentes, mesmo que a Ucrânia esteja no momento recuando, é, portanto, uma grande vitória, no que diz respeito aos falcões do Ocidente.
Além disso, em Kursk, as forças ucranianas não apenas conseguiram manter a saliência de Sudzha. Foi a Rússia que foi forçada a desviar recursos preciosos para expulsá-los. Putin teria estabelecido um prazo de fevereiro de 2025. Se os atacantes precisam de uma vantagem de 3 a 1 sobre os defensores, isso explica os 50.000 soldados russos prontos para uma “luta massiva” em Kursk.[18] Também explica a presença desses 12.000 soldados do Exército do Povo Coreano.
Dito isso, um colapso ucraniano não pode ser completamente descartado. Não pode ser rejeitado simplesmente por causa do lento e esmagador avanço russo na Frente Oriental. Eles capturaram mais de 386 milhas quadradas entre 1º de setembro e 3 de novembro, indicando que o ímpeto russo acelerou marginalmente nos últimos meses.
Não pode também porque a presidência de Trump começa em apenas algumas semanas e ele está ameaçando cortar o fornecimento de armas a menos que a Ucrânia aceite uma perda significativa de território soberano. Em consequência, o moral das tropas deve estar muito baixo. Veja-se: as tropas ucranianas estão dispostas a morrer por terras que poderiam ser trocadas em algum grande negócio? Eles acham que ainda podem vencer?
E, uma vez que eles estão em menor número e desarmados, deve haver uma relutância crescente em sair das trincheiras para algum contra-ataque fútil. Cada vez mais eles desafiam as ordens gritadas, fogem à noite, recusam-se a voltar das licenças. Outros, talvez, procurem os “traidores” em Kiev. A expressão mais extrema de perda de moral é a ocorrência de “motins”, escreve Edgar Jones, do King’s College London…[19] no caso da brigada Azov, isso seria, ironicamente, uma expressão de seu espírito de corpo constituinte.
A moralidade é importante. É muito mais importante do que todos os tanques Leopard II, F-16 e Atacms combinados. Como Napoleão Bonaparte observou famosamente: “Na guerra, três quartos giram em torno do caráter e das relações pessoais; o equilíbrio de forças e equipamentos conta apenas como o quarto restante.”[20] O teórico militar prussiano Carl von Clausewitz colocou as “qualidades morais” no centro de seu estudo clássico de 1832, Vom Kriege (“Na Guerra”). Significativamente, ele escreve que os componentes físicos da guerra são “pouco mais do que o punho de madeira, enquanto os fatores morais são o metal precioso, a arma real, a lâmina finamente afiada”.[21]
Não surpreendentemente, a importância da moralidade há muito é explicitamente reconhecida nos manuais militares oficiais. Por exemplo, na edição de 1914 dos regulamentos de serviço de campo do Exército Britânico, está dito que “O sucesso na guerra depende mais das qualidades morais do que físicas. A habilidade não pode compensar a falta de coragem, energia e determinação… Portanto, o desenvolvimento das qualidades morais necessárias é o primeiro dos objetivos a serem alcançados”.
O manual prossegue afirmando: “A vantagem numérica no campo de batalha é uma vantagem indubitável, mas a habilidade, a melhor organização e treinamento e, acima de tudo, uma determinação de luta bem firme em todas as fileiras para conquistar a qualquer custo, são os principais fatores de sucesso. [E] a falta de determinação é a fonte mais segura de derrota. ” Ele também observa que o ponto de virada de uma batalha é alcançado quando o inimigo está “moral e fisicamente exausto”.[22]
No entanto, não há dúvida de que o soldado ucraniano médio é mais motivado por considerações morais do que o soldado russo médio. Eles, ou seja, os ucranianos de língua ucraniana, estão lutando por sua pátria, seu direito à autodeterminação, sua honra patriótica, sua família, seus amigos, seus filhos, suas antigas tradições. Enfrentam um invasor estrangeiro que nega sua própria existência nacional e já invadiu cerca de 20% do país. Apesar do aumento do número de mortos, quedas de energia, dificuldade em recrutar novos recrutas e desertar soldados, um colapso ucraniano é improvável… a menos que seja decidido desafiar as determinações de Trump.
E os soldados russos? Pelo que eles estão lutando? Por uma Rússia maior? Pela desnazificação da Ucrânia? Contra a expansão da OTAN para o leste? Dificilmente vale uma vida… talvez seja por isso que os recrutas estão oficialmente isentos de servir na Ucrânia. No entanto, a Rússia está cada vez mais se voltando para tropas profissionais para seus combates.
É-lhes oferecido: três anos de serviço, alimentação e cama e muitos benefícios adicionais, além de um salário mensal de 200.000 rublos (cerca de £ 1.500).[23] Bons salários para a Rússia, especialmente naqueles “oblast” mais pobres, de onde vem a maioria dos recrutas.[24] Naturalmente, há uma grande probabilidade de que não sobrevivam. Nesse caso, a Rússia fornece um pagamento póstumo no valor de 11 milhões de rublos às famílias.[25]Quanto à carne de canhão da Coreia do Norte, eles devem estar apavorados. Eles estão prestes a alimentar o moedor de carne para a glória do Grande Sucessor!
Quando se trata da guerra na Ucrânia, muitos comentários se concentram nos componentes puramente físicos: homens destacados; números de mortos, capturados e feridos; produção de projéteis de artilharia; capacidades de mísseis; suprimentos de caças; gasodutos; redes elétricas. É fácil perceber, portanto, por que tantas vezes se chega à mesma conclusão: a Ucrânia deve perder. Claro, é preciso ficar claro que tal avaliação ignora o fato fundamental de que a Ucrânia está travando uma guerra interposta em nome da OTAN e dos Estados Unidos pela hegemonia global. Ora, a questão da moralidade raramente é tratada com a seriedade que merece.
O fato é que, embora o moral das tropas ucranianas esteja certamente baixo no presente momento, o moral das tropas russas provavelmente está também muito baixo. Suas vidas são desperdiçadas em escala colossal em ataques de ondas humanas criminosamente irresponsáveis. A disciplina é brutal. A comida é horrível. A corrupção nos escalões mais altos é galopante.
Por suas próprias razões óbvias, as autoridades militares ucranianas distribuíram um relatório capturado na região de Kursk em agosto, que pinta um quadro vívido do moral entre as tropas russas. Ele cita o exemplo de um soldado que cometeu suicídio em janeiro deste ano. Ele teve, segundo o relatório, “um colapso nervoso e psicológico, causado por seu prolongado estado de depressão devido ao seu serviço no exército russo”.
Os comandantes da unidade foram instruídos a garantir que os soldados tivessem acesso à mídia estatal russa à sua disposição diariamente para manter sua “condição psicológica”. Em um documento sem data e datilografado, vieram mais instruções sobre como manter o moral, pedindo que os soldados recebessem de 5 a 10 minutos por dia, bem como uma hora por semana de instrução política, “com o objetivo de manter e elevar a condição política, moral e psicológica do pessoal”.[26]
A politização das tropas visa fazer com que as ordens sejam seguidas. Não é impossível que as tropas se imponham aos oficiais subalternos e aos suboficiais e elejam os seus próprios comissários políticos. Muitos soldados da linha de frente terão pais e avós com um conhecimento elementar dos escritos de Marx, Engels e, acima de tudo, Lenin. Certamente há uma memória coletiva de como a guerra imperialista se transformou em uma revolução em 1917. Sabemos que esse medo assombra palpavelmente os níveis superiores na Ucrânia e na Rússia.
O reconhecimento visceral de que os soldados têm mais em comum uns com os outros do que com seus governantes, os oligarcas acumuladores e políticos corruptos em Kiev e Moscou, certamente já existe. De fato, longe dos intensos combates em torno desta ou daquela cidade ou vila da linha de frente, tréguas não oficiais são sem dúvida observadas nas trincheiras e buracos de gelo cheios de água, enquanto os soldados cumprem aquele velho ditado de “viva e deixe viver”… Daí para a confraternização é apenas um passo.
Oriente médio
Alguns na esquerda não querem ver como a guerra na Ucrânia “poderia desencadear a Terceira Guerra Mundial”.[27] Com a Rússia possuindo 5.580 ogivas nucleares… e ameaçando usá-los contra a OTAN na nova doutrina de Putin, tal opinião é difícil de ser sustentada. Afinal, os Estados Unidos têm seu próprio arsenal de 5.044 ogivas nucleares e um orçamento militar que excede seus seis ou sete aliados e rivais mais próximos. Depois, há a Grã-Bretanha (225 ogivas nucleares) e a França (290 ogivas nucleares), ambas presas à aliança da OTAN dominada pelos EUA.
Além disso, a Rússia tem uma amizade “eterna” com a China, um país que tem a segunda maior economia do mundo e seu terceiro maior estoque de ogivas nucleares (500).[28] E, como argumentamos repetidamente – e demonstramos citando inúmeras fontes confiáveis – o principal alvo dos EUA para atolar a Rússia no extenuante lamaçal ucraniano é a China, seu único rival sério. Certamente uma receita para a Terceira Guerra Mundial.
Em vez disso, somos informados de que, embora a guerra Rússia-Ucrânia possa se transformar em uma guerra Rússia-OTAN completa, o “verdadeiro gatilho” para uma Terceira Guerra Mundial pode ser uma escalada no Oriente Médio. Por exemplo, “Com a intensificação e extensão da guerra de Israel contra Gaza e o Líbano, apoiada pelo imperialismo liderado pelos EUA e totalmente apoiada pelos governos britânicos e outros governos capitalistas, há um claro perigo de uma Terceira Guerra Mundial (nuclear)”.[29]
No Oriente Médio há apenas uma potência com armas nucleares: Israel. Embora não admita ou negue oficialmente a existência de seu arsenal nuclear, esse país segue uma estratégia de “ambiguidade deliberada”, recusa-se a assinar o tratado de não proliferação, que permitiria a inspeção periódica da Agência Internacional de Energia Atômica. Apesar disso, considera-se que Israel tenha entre 90 e 400 ogivas nucleares, que podem ser lançadas por terra, mar e ar.[30]
Israel pode tentar destruir as instalações nucleares do Irã, que produziram já urânio suficiente para esse tipo de arma. Israel, é bom lembrar, lançou ataques militares “cirúrgicos” contra o Iraque (1981) e a Síria (2007). No entanto, nem a Operação Opera nem a Operação Out of the Box desencadearam uma guerra mundial, ou mesmo uma guerra regional.
Se algo assim acontecer em 2025 ou 2026 não se espere um lance fatal: as chances de Israel usar armas nucleares para eliminar as instalações nucleares do Irã permanecem zero. As suas armas nucleares estão lá para dissuadir. Tal como o fez no Iraque e na Síria, Israel usaria mísseis e bombas convencionais. Contudo, neste caso, terá de empregar bombas muito poderosas e de precisão para destruir bunkers. O Irã construiu suas instalações nucleares mais valiosas no subsolo e as cobriu com espessas camadas de cimento e aço. Portanto, algo semelhante ou talvez o próprio Massive Ordnance Penetrator da América seria necessário, junto com o tipo de aeronave capaz de lançar tal carga útil: essa arma estratégica pesa 30.000 libras (muito mais do que o que é transportável pelos F-16 e F-35 de Israel). No entanto, um bombardeiro furtivo B2 poderia fazer o trabalho… e talvez Trump venha a concordar com um acordo de empréstimo e arrendamento para o avião.
De qualquer forma, Israel não travaria tal guerra contra o Irã: certamente não haverá invasão. Não, Israel procuraria degradar estrategicamente o Irã… e isso só poderia ser feito com a aprovação implícita dos Estados Unidos ou, até mesmo, mediante a sua participação direta. Por exemplo, um ataque “preventivo” israelense inicial seguido por uma retaliação iraniana, que, por sua vez, provoca bombardeios extensivos e intensivos dos EUA para evitar um segundo holocausto. E essa parece ser a receita que será empregada.
Nem a Rússia nem a China, nessas circunstâncias ou em circunstâncias semelhantes, correriam em socorro do Irã. Eles não vão – repito – eles não vão entrar em guerra com Israel por causa de um ataque ao Irã. Nem, para dizer o óbvio, qualquer outra potência nuclear (Índia, Paquistão, Coréia do Norte). Atacar Israel, afinal, seria atacar os Estados Unidos. Haveria protestos diplomáticos… mas pouco mais do que isso.
A liga árabe pode muito bem reagir de maneira completamente diferente. No entanto, isso é outra história.
Jack Conrad, pseudônimo de John Chamberlain, é líder do PCGB-PCC e editor do Weekly Worker.
Tradução: Eleutério F. S. Prado.
Publicado originalmente no portal Sin Permiso [https://www.sinpermiso.info/textos/algunas-notas-sobre-la-guerra-de-ucrania]
Notas
[1] abcnews.go.com/International/new-russian-nuclear-doctrine-threatens-response-ukraines-western/story? Id=115998090.
[2] Morning Star Editorial 19 de novembro de 2024.
[3] www.stratcom.mil/Media/Speeches/Article/1600894/us-strategic-command-space-and-missile-defense-symposium-remarks.
[4] www.pravda.com.ua/eng/news/2024/11/21/7485721.
[5] www.reuters.com/world/biden-lifts-ban-ukraine-using-us-arms-strike-inside-russia-2024-11-17.
[6] The New York Times, 17 de novembro de 2024.
[7] www.bloomberg.com/news/articles/2024-11-17/north-korea-may-end-up-sending-putin-100-000-troops-for-his-war.
[8] www.newsweek.com/russia-north-korea-kursk-donetsk-gains-map-1990741.
[9] americafirstpolicy.com/issues/america-first-russia-ukraine.
[10] The Guardian, 19 de novembro de 2024.
[11] mil.in.ua/en/articles/can-ukraine-produce-tanks.
[12] Por exemplo, o presidente do Comitê de Relações Exteriores da Câmara, Michael McCaul (Texas). Respondendo à decisão de Biden sobre o Atacms, ele disse o seguinte: “Antes tarde do que nunca, mas já era tarde … Há dois anos venho pedindo ao governo que desamarre as mãos e, com cada sistema de armas, eles arrastam os pés e finalmente o aprovam … Deixe-os usar tudo o que estamos dando a eles. Pare de colocar restrições sobre eles” (thehill.com/homenews/4998825-us-ukraine-missile-policy-shift-biden-gop).
[13] 20 de novembro de 2024 – www.state.gov/u-s-security-cooperation-with-ukraine. Lembre-se de que o orçamento anual de “defesa” dos EUA é de cerca de US $ 900 bilhões. Conforme www.statista.com/statistics/262742/countries-with-the-highest-military-spending.
[14] The Guardian, 22 de outubro de 2024.
[15] The independent, 25 de junho de 2024.
[16] sputnikglobe.com/20241029/zelensky-requests-tomahawk-missiles-as-part-of-non-nuclear-deterrence-package—reports-1120718428.html.
[17] responsiblestatecraft.org/ukraine-kursk-incursion.
[18] www.forbes.com/sites/davidaxe/2024/11/24/50000-russians-are-poised-to-attack-20000-ukrainians-in-kursk-ukrainian-brigades-are-bracing-for-a-massive-fight.
[19] E Jones Morale, bem-estar psicológico das forças armadas e entretenimento do Reino Unido: um relatório para a Fundação das Forças Britânicas em Londres 2012, p13.
[20] E Knowles (ed) O dicionário Oxford de citações Oxford 1999, p. 538.
[21] C. von Clausewitz, Sobre a guerra, Princeton, NJ, 1989, pp184-85. O termo moralidade é usado aqui no sentido de perspectiva psicológica, em vez de princípios éticos e certo ou errado.
[22]War Office, Regulamentos de serviço de campo, parte I, operações, 1909 (com emendas), Londres, 1914.
[23] Os soldados ucranianos recebem algo como metade desse valor. Seu salário-mínimo mensal é de 33.000 hryvnia (cerca de £ 630). Seeenglish.nv.ua/business/new-benefits-for-ukrainian-serviceman-in-2024-50432568.html.
[24] www.forcesnews.com/russia/what-are-russian-soldiers-being-paid-fight-putins-war.
[25] www.intellinews.com/how-much-is-a-russan-s-life-worth-347848.
[26] The Guardian, 20 de setembro de 2024.
[27] Tony Clark, Letters Weekly Worker 21 de novembro de 2024.
[28] en.wikipedia.org/wiki/List_of_states_with_nuclear_weapons.
[29] Ian Spencer, Bob Paul, Andy Hannah, Paul Cooper, Carla Roberts e Anne McShane, ‘Perigo da Terceira Guerra Mundial: a resposta comunista’ Weekly Worker 24 de outubro de 2024.
[30] en.wikipedia.org/wiki/Nuclear_weapons_and_Israel.
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